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Vale tudo para destruir o STF?

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Por IELA em 24 de abril de 2019

Vale tudo para destruir o STF?

Timothy John Berners-Lee, hoje e quando estava fazendo nascer a internet.

De um lado, a grande imprensa, ainda escrita e em fase de transição para o virtual; do outro, a internet que, nestas três décadas desde sua criação, foi se diversificando e se multiplicando até chegar às incontroláveis redes sociais.
Para comemorar os 30 anos da apresentação do seu primeiro projeto que deu origem ao World Wide Web, cujo centro se encontra em Genebra, no Cern – Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear, Timothy John Berners-Lee esteve no mês passado com a imprensa e aproveitou para tecer alguns comentários sobre as redes sociais.
A decisão do Cern, de dar ao público acesso à invenção que revolucionou não só o mundo da informação como o contato entre  as pessoas, criou alguns perigos que inquietam o inventor. 
A vulgarização do uso e do controle das técnicas da web acabou por permitir a certos grupos o domínio do fluxo das informações. Hoje ninguém consegue saber como dirigir o que passa pela web, isto propiciando, segundo Berners-Lee, o risco de sua má manipulação.
A ideia de se interconectar os contatos logo se expandiu, se multiplicou e surgiram as redes sociais mais rápidas e penetrantes que os até então meios habituais de informação: os jornais, rádios e televisões. 
Nos países sem um bom embasamento cultural, as redes sociais praticamente se apossam dos computadores e celulares e rapidamente caem sob o domínio de grupos políticos, extremistas, terroristas, religiosos, além de charlatães de toda espécie, sem existir ainda a possibilidade de um antídoto.
O cientista enumera mesmo os principais perigos que infectam a web: os apelos ao ódio, os trolls (o internauta que envenena os debates na Internet com observações inapropriadas ou provocantes), as falsas informações, as teorias da conspiração, as ações de pirataria, a propagação viral da desinformação e as publicidades que se infiltram e recompensam os blogs na base de cliques.
Berners-Lee não falou, mas todos já conhecem o poder das redes sociais para derrubar e eleger governos, alimentadas muitas vezes por regimes estrangeiros. Hillary Clinton teria sido uma das vítimas. 
No Brasil, o PT ferido pela Lava Jato não reagiu com a agilidade necessária para diminuir o impacto das redes sociais comandadas por grupos evangélicos e grupos de direita e extrema-direita disparando informações inverídicas, destruindo imagens consagradas, praticamente no mesmo estilo da campanha de Trump.
Envolvida no turbilhão, a anacrônica  Justiça brasileira  ainda não dispõe dos meios legais necessários para afrontar as enxurradas das mentiras e falsas informações e interpretações despejadas sobre o povo, não acostumado à leitura de jornais e ao exercício da triagem das notícias por falta de formação cultural, além de sujeito à influência mais próxima dos seus gurus religiosos.
Para complicar, os beneficiários do caos informativo criado pelas redes sociais se defendem recorrendo ao alicerce da democracia que é o direito à livre expressão. Mas, tal liberdade será mesmo total? 
O colunista Jânio de Freitas, da Folha de S. Paulo, com sua experiência de um dos editores da antiga Última Hora do Rio de Janeiro durante os anos da ditadura, expressa suas dúvidas (vide aqui), que são também minhas.
Distante do Brasil, onde as redes sociais são dirigidas agora à destruição do Supremo Tribunal Federal, depois de eleger o presidente, com o objetivo não declarado mas pressentido de criar clima para um novo golpe, prefiro contribuir me referindo à experiência recente da Justiça francesa. 
Porém, na ausência de meios legais que defendam o Estado de Direito contra os ataques desferidos por redes sociais contra o STF, eu compreendo a necessidade da utilização da autodefesa por alguns ministros, como recurso de proteção à democracia.
Neste sentido, vem a calhar a recente condenação, pela Corte Suprema francesa, de um  reincidente negacionista do Holocausto (Alain Soral, conhecido militante da extrema-direita francesa), por suas declarações racistas e antissemitas, mascaradas como anti-sionistas, negando que os nazistas tenham praticado um extermínio sistemático de judeus.
Ao contrário do Brasil, onde, ao que parece, não existe um instrumento legal, uma lei, capaz de proteger o STF contra os ataques, há na França uma lei reconhecendo a existência do Holocausto (mesmo porque milhares de franceses foram vítimas) e punindo quem procura diminuir o impacto dos crimes nazistas com sua negação. Tal lei possibilita a ação judiciária.
Compreende-se também o porquê de uma infeliz declaração do presidente Bolsonaro, dizendo ser possível perdoar o Holocausto, ressoou muito mal em Israel e em todos os países que punem os negacionistas. 
É que o perdão leva ao esquecimento, mas o Holocausto nunca deverá ser esquecido, para assim evitar-se sua repetição.
Ainda na França, um artista e humorista que se tornou amigo de Alain Soral costuma utilizar seus “one man shows” para negar o Holocausto e afirmar seu antissemitismo. Há alguns anos, num show na prestigiosa sala Zenith, Dieudonné M´Bala M´Bala homenageou um notório neonazista francês, Robert Faurisson, com o prêmio de Insolência, entregue no palco por um ator trajando a roupa dos deportados judeus em Auschwitz, e pediu para o público aplaudir.
Condenado a uma multa pesada por injúria de caráter racial, Dieudonné apelou à Corte Européia de Justiça, argumentando tratar-se de um espetáculo no qual se serviu da sua liberdade artística de expressão. E a corte deu uma resposta àquela nossa pergunta inicial, sobre se a liberdade de expressão é uma liberdade total.
Vejamos. Para a Corte Européia de Direitos Humanos, invocar a liberdade de expressão numa tal situação (a de ridicularizar o Holocausto e suas vítimas) constitui um abuso de direito. Segundo o tribunal, Dieudonné tentou deturpar a compreensão da Convenção Européia dos Direitos Humanos, de sua letra e de seu espírito.
Já que tocamos na questão dos crimes contra a humanidade, como foi o Holocausto, podemos, por comparação e aproximação, lembrar os crimes cometidos pelo aparelho repressivo militar durante os 21 anos da Ditadura no Brasil. 
E disso inferir que existem no Brasil pessoas e entidades que negam o golpe de 64 e a ditadura militar. São os nossos compatriotas negacionistas, um dos quais chegou a homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, do Doi-Codi, numa sessão extraordinária do Congresso Nacional transmitida para toda a população brasileira.
Esse ato de apoio a um torturador e o negacionismo do golpe e da ditadura militar não foram punidos. No caso da homenagem ao torturador porque faltou uma denúncia à Justiça; no caso do negacionismo porque não existe uma lei a respeito. Fica a sugestão aos legisladores para uma época mais propícia.
Enfim, retornando às redes sociais e ao debate sobre os limites à liberdade de expressão, qual foi a decisão da Declaração dos Direitos Humanos e dos Cidadãos da Revolução Francesa em 1789? Sintetizando, “todo cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente”.
Porém, com o tempo a liberdade de expressão foi tendo seus limites, não incluindo a difamação, a injúria, a provocação ao ódio (que inclui o racismo e o antissemitismo) e a apologia do terrorismo.
Há uma diferença nítida entre a proteção das pessoas e as críticas relacionadas com crenças religiosas ou posições políticas. E não existe mais no Direito francês o delito da blasfêmia, razão pela qual a revista satírica Charlie Hebdo pode ironizar as religiões, sem correr o risco de condenação. Pode-se caçoar, ironizar os sinais, as representações e os ritos de qualquer religião sem estar sujeito a uma pena. O que se pune é a apologia do terrorismo.
É provável que, na atual legislatura brasileira, os deputadores e senadores criem leis repressivas relacionadas com o chamado respeito às religiões , com censura de livros, peças teatrais, filmes e processos aos autores de artigos antirreligiosos na imprensa ou internet. Mais um retrocesso a se temer.
 
Publicado originalmente no sítio Náufrago da Utopia. 
 

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