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O golpe de 64, o fio da história brizolista e a dialética da continuidade

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Por Gilberto Felisberto Vasconcellos em 12 de novembro de 2024

O golpe de 64, o fio da história brizolista e a dialética da continuidade

Surgida em 1945 nos EUA a corporação multinacional abocanha o lucro exportável em escala mundial. Depois de 1974 converte-se em agente da democracia e dos direitos humanos, é propulsora das “perdas internacionais”, expressão de Leonel Brizola que ficou desacreditada nos meios liberais e acadêmicos em 1989 com a vitória eleitoral de Fernando Collor.
O PDT de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, partido formado basicamente por uma pequena burguesia descolarizada, não conseguiu ou foi impedido de se comunicar com o proletariado concentrado em São Paulo.

Não podemos creditar tão somente à astúcia maquiavélica do general Golbery do Couto e Silva, o porta-voz da geopolítica imperialista, o corte esquizofrênico da força de trabalho entre Rio de Janeiro e São Paulo. O que na verdade separou Brizola e Lula na década de 80 foi consequência do golpe de 64 que aprofundou o desenvolvimento regional desigualitario.

Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do governo João Goulart, na década de 80 disse que o golpe de 64 foi o nosso Vietnam, só que guerra sem guerra, isto é, sem derramar sangue. Essa frase de Darcy Ribeiro, que às vezes sentia-se culpado por ter perdido o poder para transformar o país, nada tinha de diatribe. Que não seja, por outro modo, levado na galhofa a maldade do governo Jair Bolsonaro em comemorar, primeiro nos quartéis depois nas ruas e praças públicas, a “revolução de 64” como um acontecimento benfazejo para o povo e para o país.

O jornalista Cláudio Abramo, que dirigiu sem ficar rico os dois maiores jornais de São Paulo, tinha por hábito perguntar a toda pessoa que lhe era apresentada: – O que você acha do golpe de 64?

Isso para mim soava esdrúxulo como se fosse provocação de intelectual marxista. Hoje vejo a pergunta como uma lúcida radiografia da nossa enfermidade. A mesma coisa aconteceu no cinema com Glauber Rocha, o qual foi entrevistado pela socióloga Rachel Gerber e formulou o seguinte fazendo retrospectiva de sua obra:

Quando fiz Deus e o Diabo na Terra do Sol desabou em mim um golpe. Porquê? Quem me sucedeu? Eu quero saber quem são esses fantasmas todos que me armaram essa jogada desde a época em que Getúlio se matou. Eu não aceito as versões do Cebrap, dos brasilianistas, acho que essas versões são parecidas. Eu quero a versão mítica, eu quero saber exatamente por que o sangue do Getúlio correu, por que Getúlio escreveu aquela carta, o significado daquele sangue como fecundador da alma brasileira. – Qual seria a relação daquela tragédia com Villa Lobos, o projeto do desejo do som, alguma coisa que o imperialismo matou? (GERBER, 1982).

O “fio da história” de que falava Leonel Brizola frequentemente em seus comícios na Cinelândia repercutiu na metáfora glauberiana, porquanto Leonel Brizola estaria destinado ao poder por “razões místicas” no desfecho da “tragédia getulista”.

O tiro no coração de Vargas não foi diferente da derrubada do presidente João Goulart pelo imperialismo e seus coadjuvantes a exemplo da FIESP e da Igreja católica, sem deixar de aludir aos grandes jornais cujos donos odiavam o trabalhismo.

O primeiro livro escrito sobre o golpe de 64 é do trotskista Edmundo Muniz, o historiador de Canudos; o primeiro artigo que tematiza a estrutura de classe de 64 é de Gunder Frank, que aborda a história como traço essencial do marxismo. Edmundo Muniz situa o golpe de 64 como um capítulo da expansão imperialista sediada em São Paulo em seu papel subimperialista na América Latina. Gunder Frank apontou a convergência da burguesia comercial carioca, cujo representante era Carlos Lacerda, com a burguesia bandeirante da Fiesp.

De Minas Gerais o banco de Magalhães Pinto surgia como coadjuvante na constelação regional golpista. O historiador Nelson Werneck Sodré, que atuou na ala de esquerda do ISEB junto com o filósofo Álvaro Vianna Pinto, nunca deixou de se referir em todos os seus livros ao golpe de Estado, principalmente no que concerne ao papel das Forças Armadas, associando-o à guerra do Paraguay.

A vanguarda da direita é a São Paulo multinacional, que atua cada vez mais como agente do capital estrangeiro, embora não sejam paulistas ou paulistanos os respectivos presidentes da república. O maranhense Franklin de Oliveira, casado com mulher gaúcha, em um livro premonitório de 1961, prefaciado pelo então governador Leonel Brizola, Rio Grande do Sul O Novo Nordeste, foi inspirado na metodologia do capital monopolista de Paul Sweezy e Paul Baran.

Glauber Rocha foi o historiador do período João Goulart com o seu ensaio inédito Jangarana e o seu dramaturgo com a peça de teatro intitulada Jango uma Tragédia. Aproveito o ensejo para registrar que Jangarana está sob censura até hoje, por isso não é publicado. Há 20 anos no Templo Glauber, rua Sorocaba, Rio de Janeiro, cheguei a folhear algumas páginas dessa Jangarana, que é um elogio rasgado ao presidente da república e a tentativa de mostrar por que houve um complô da intelectualidade brasileira contra Jango. O mais significativo personagem dramático da história recente do país. Drama na acepção marxista, segundo György Lukács, é o conflito entre o indivíduo e o destino que é o tema essencial do teatro clássico e moderno.

A palavra “místico” ou “mística” nem sempre tem a ver com idealismo religioso.

Atente-se que no pensamento glauberiano a história do Brasil, depois do cinema falado em 1930 e sobretudo depois de 1945, está condicionada cada vez mais à comunicação de massa que reverbera a luta de classes, ou seja, a contradição povo e imperialismo.

De olho nos gestos e na roupa dos militares brasileiros golpistas, verifica-se a partir de 1965 a influência do cinema roliudiano que, um ano após o golpe, promoveu a empresa Globo a fim de legitimar a ditadura. A telenovela há meio século produz no público o esquecimento de 1964. A televisão tem sido o principal cabo eleitoral das eleições. As cabeças cortadas pelo golpe não são curtidas pelas historietas telenovelizadas. Outros são os heróis.

O ano de 1989, do ponto de vista do resultado eleitoral, revela a permanência da ditadura. Fernando Collor é eleito. Lula em segundo lugar. Brizola em terceiro, o único candidato pré-televisivo. A televisão faz a política em um país analfabeto. Daí em diante a TV vence todas as eleições. Jair Bolsonaro abre o jogo numa entrevista: a TV Globo é sua aliada natural, porque ambos apoiaram o golpe de 64 que foi a favor do capital estrangeiro e das privatizações. Não por acaso o neto de Roberto Campos dirige o Banco Central, o ministro Paulo Guedes foi o enfant gaté protegido da TV Globo.

O golpe de 64 continua em seus efeitos até hoje na chamada democracia promovida pelo doutor Ulisses que odiava João Goulart e Leonel Brizola. O que nos vem à mente são as lideranças políticas e intelectuais que sofreram a ação repressiva do golpe. São as lideranças do trabalho: João Goulart, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, todos mortos. A propósito de 1964 fala-se em golpe militar, mas é preciso lembrar que teve intensa e decisiva participação civil, a exemplo dos empresários de São Paulo. Não é por acaso que a partir de 1964 São Paulo – dentre todos os Estados – foi o mais favorecido pela política econômica da ditadura.

Nas eleições de 1989, a primeira eleição presidencial depois de 1964, Leonel Brizola ficou em sétimo lugar, atingindo apenas 1,51% dos votos. A herança trabalhista pré-64 não ressurgiu, embora Leonel Brizola estivesse no âmago da história. Já foi ventilado a hipótese de que o impiti de Fernando Collor, o qual não deixa de ter algo nebuloso e enigmático, se deveu em grande parte à possibilidade de vir a se aproximar de Leonel Brizola, digamos um Collor em transe que poderia, evocando o seu avô ministro de Getúlio Vargas, Lindolfo Collor, bandear-se para o campo progressista, caso ficasse seduzido pela proposta educacional dos CIEP’S concebida por Darcy Ribeiro. Debalde isso não aconteceu. Collor se corrompeu pelo último modelo automobilístico.

Não é também de todo descartável a conjectura de que Lula teria cumprido sua missão histórica ao derrotar o trabalhista de origem getulista em perfeita convergência com o propósito feagaceano de ser o coveiro da era Vargas. É por isso que numa análise do primeiro governo Lula é fundamental levar em conta o que Leonel Brizola formulou a respeito em seus Tijolaços publicados na imprensa atacando a “pseudoreforma da previdência” e as suas afinidades com o “neopetista” José Sarney. Condescendente com os graúdos e poderosos, Lula teria se esmerado em castigar os pequenos e a classe média trabalhadora, o que revela uma atitude inibida e paralisante diante do patronato, cujos representantes não estariam apenas fora, mas sim dentro do PT. Fato é que, segundo Brizola, o espectro da tibieza rondou o presidente Lula e seu governo. Apraxia, digamos.

A tônica da análise brizolista incidiu na fraqueza do Presidente. Convém aqui abrir um parênteses para fazer um cotejo, ainda que ressaltando as enormes diferenças com o governo João Goulart, o qual foi analisado por Leonel Brizola à altura de 1962 pelo ângulo de um presidente que só tinha nominalmente o poder com a sua política de conciliação, acometido de perplexidades e de vacilações, compelido a negociar com as forças políticas que o derrubariam, embora tivesse tido duas vezes a oportunidade do poder pleno em suas mãos com o movimento da legalidade e o plebiscito.

Não é minha intenção sugerir que haja qualquer tipo de semelhança psicológica entre Jango e Lula, nem tampouco comparar as reformas de base, agrária e remessa de lucros, com o fome zero. O que merece reparo é que Leonel Brizola estava familiarizado com a fraqueza das lideranças políticas, e no caso de Lula no poder apontou-lhe um complexo de inferioridade diante do patronato nacional e transnacional, além do medo de enfrentar a televisão dominante. Houve a mistificação icônica do operário de carne e osso, a respeito do qual não faria sentido colocar a distinção dialética da classe em si e da classe para si. O curioso é que esse fetichismo acompanhou a “teoria” do populismo made in USP. A origem social humilde do presidente fará parte do credo espelhado pela Igreja a fim de se opor ao trabalhismo laico de Leonel Brizola e de seu programa educacional baseado em Anísio Teixeira. Na década de 70 Glauber Rocha, que se autointitulava o “ultimo janguista”, advertia que a igreja deu sinal verde para o golpe de 64 em meio à paranoia do anticomunismo. Nesse balaio golpista entraram CIA, embaixada norte-americana, burguesia, latifúndio e setores sub-culturais da classe média. Ainda não saímos até hoje deste quiasma.

Bibliografia
FRANK, Andre Gunder. The Development of Underdevelopment. DOI: https://doi.org/10.14452/MR-018-04-1966-08_3.
GERBER, Raquel. O mito da civilização Atlântica – Glauber Rocha, Cinema, Política e a Estética do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982.
Lukács, György. A teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades, n/d.
RIBEIRO, Darcy. Tempos de Turbilhão: Relatos do Golpe de 64. São Paulo. Global, 2014.

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