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O que não cabe no instante que não cabe no palco que não cabe na palavra – a partir de (Um) Ensaio sobre a cegueira

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Por André Queiroz em 01 de setembro de 2025

O que não cabe no instante que não cabe no palco que não cabe na palavra – a partir de (Um) Ensaio sobre a cegueira

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Rodrigo Portela e os atuadores do Grupo Galpão convidam a que se ocupe o palco – importante atentar aos ícones de cores vermelho e verde. Porque absolutamente nada é fortuito ou casual. Nada está a solta, sequer uma tira de tecido, um cone de trânsito, sequer o veio de água-urina que escorre da garrafa no solado de madeira na que tramita à cena uma criança que chama pela mãe que não está; sequer o silêncio suspiro como quando a música e os menestréis suspendem o fole, nada está disperso ou fatiado de sentido e razão. Os passos e contrapontos, as marcações e os instantes atendem aos mandatos que arregimentam a cidade que está no palco que comporta o espetáculo e que, tantas vezes, inúmeras as vezes, ela escapole pelos lados do instante – um pedaço de minuto invisível à cidade atordoada nos seus afazeres de antão e de agora mesmo; o povaréu em pressa ao tosquio do aboio seguir em frente sempre em frente; ou aos ensaios que arrancam o couro dos atores na tessitura do justo: a precisa medida do que se vai conformando no tempo e no espaço da cena – por vezes é a graça do que é leve e sobrevoa, noutras, a intensidade expressiva de um rosto que se volta grave gravíssimo porque a cidade insiste em se manter tranquila apesar da fúria e da peste que se alastra. A cegueira é uma tira branca cerzida na pele-catarata.

Mas voltemos às gentes em chamamento. A primeira leva delas está sob os rigores do encarnado; mais para frente virão os outros. Os critérios e modos da condução atentam aos mistérios que se vai modulando. As mãos levíssimas dos atores são gestos de fazimento do mundo – faz recordar os anjos de Wim Wenders que se não são capazes de arrancar a morte do corpo-suicida, são acolhedores o bastante para que se dissipe a solidão decalcada nos que estão chegando, eles estão chegando, os atores do Grupo Galpão os estão conduzindo aqui e ali, discretos ao olhar tapado dos que não veem, gentis em toques de pluma, um jeito contorno que redesenha o abraço, um teatro se fazendo aí a uma musculatura de afetos.

Mas voltemos às gentes que elas por vezes parecem escapar do ramerrão da escrita que extrapola a palavra – que busca comunicar. Falávamos dos critérios do ingresso no aramado cênico, (Um) ensaio sobre a cegueira não avança se não houver este afluxo, sobem os de vermelho, sobem os de verde, voltemos até aí. Não importa a idade a altura o talho de inflexão da voz ou os jeitos de corpo. Não se solicita ao chegante um punhado de senhas que abram as portas – não há portas ao encerro do palco, ele convida a que se o penetre pelo lado direito de quem o vê do outro lado da parede (que não há); o palco está sob o sequestro dos atores do Grupo Galpão, não é um palco qualquer desses que se empanturra de arremedos e da frigidez dos inventos para uso e descarte; o palco está tomado de uma gravidade que irá crescendo, e crescendo e se arrastando como as moedas multiplicadas pelos efeitos sonoros sobre a mesa que será revirada de suas funções de outrora, mesa e agora escoadouro de ofertas de compra e venda no mercado de apostas; o palco está refém deste bando que se multiplica de personagens e de máscaras que se descolam de seus ajustes desnecessários se se quer encarnar outros nomes, todos os nomes, uma legião deles – que somos, uma saraivada de palavras um Saramago de parágrafos escorrendo das bocas da trupe que vem das Minas; o palco não tem portas giratórias, não há dispositivos de alarme que gritem àqueles que ousam entrar com uma voz metálica, essa voz costumeira e suficientemente impessoal na que tramitam palavras de pouca monta e valia, palavras que repetem como ladainhas o insuportável e amesquinhado pesadume do ser a esta maquinaria capitalística de moer carne, os atores do Grupo Galpão tem tesouras invisíveis nas mãos, eles cortam dissipam esmerilham em lama sanguínea os protocolos.

Não se solicita ser geômetra como condição ao ingresso – ao palco. Não precisa que se traga consigo o lastro quatrocentão da arroba acumulada em pesagem-latifúndio de uma aristocracia fastidiosa. O palco está disponível aos que se propuserem à aventura da recriação dramatúrgica. Não se exige os penduricalhos dos títulos ou galardões, sequer se notifica, à boca de cena, os acordes a um telão de juízo consensual. Mas nada é gratuito, nem moldado sob o arranjo de véspera; não é ao acaso que se encontrará as baquetas de orquestração aos movimentos daquele que chega. É mister o governo dos vivos até que. Até que. Até que. E emperra a palavra que não encerra a frase. A palavra não cabe no palco e no instante. E se instala a gagueira ao tráfego de sentido. A frase tem muros que a circundam e a tutelam. Respeitemos o corte abrupto.

Está-se ao ingresso às turbulências que apenas o teatro é capaz de avivar, os atuadores do Grupo Galpão talvez tenham cochichado àqueles que chegam a necessidade de se saber o manuseio de martelo e prego, talvez que fosse imperioso o fôlego de lenhador, os atores do Grupo Galpão quiçá tenham dito qualquer coisa que tenha a ver com o romper da passividade plasmada às consciências (de todos) que transitam como autômatos à cidade que está tranquila apesar dos rumores de que a guerra esteja na ordem do dia, de que o arsenal bélico e uma carrada de mercenários esteja se alastrando, pegajosos, mórbidos morredouros, aos mares do Caribe, o teatro tem seus segredos que metade se conta, outra metade se inventa, e o que restar como caco é ensaio e mentira, mas sigamos atentos aos avisos de apertar os cintos. Talvez seja a convenção a ser seguida. Talvez.

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É que se trata de ordenar o ingresso ao manicômio – espaço no qual a regência da ordem se esboroa. Não de brusco como se o mundo inteiro se voltasse de pernas para o ar no aceno de um gesto peremptório. Não a um sopro extemporâneo como se a fúria da natureza, transfigurada num tornado, fosse varrendo tudo o que encontrasse pela frente – o cais o porto a embarcação, a draga infértil desnecessária, o hospital eivado de órfãos e inválidos, o campo de refugiados saturado, e fosse levantando pelos ares os humores de náufragos marinheiros desposados de véspera, a solidão de algum passageiro incongruente, um braço desprendido de corpo em pleno ato aceno de espera ao regresso doutro alguém – que não chega que não chegará. A desordem o desmantelo tem raízes e se enxameia de afluentes.


É que se tem fome. Os atores fabulosos do Grupo Galpão assim como o plantel de seus personagens estão cegos, mas enxergam os longes. Eles manipulam refletores de luz fria e quente. Eles extraem sonoridades aos cascos batidos em afronta ao chão do palco. Eles encarnam a fome que não cabe no instante que não cabe no palco que não cabe na palavra.

A criança que procura a sua mãe e não a encontra está gritando que tem fome. Melhor que se diga – a fome é continente avesso às entradas e bandeiras. A fome é cheia de assaltos e de estupros que rasgam o ventre, a casa de lava do filho de nunca, as paredes do útero devastando de uma vez por todas a filiação a solidariedade a comunidade dos que não tem.

Não cabe no instante a fome do mundo tão pouco casual, fome assassina promovida em escala industrial e assimétrica, fome palestina alargada ao corpo diminuto daqueles que morrem como se fossem cachorros ao sacrifício. Não cabe no instante a fome que desnutre a linha de frente toda formada de recrutas a um exército de libertação dizimado pelas bombas de fósforo branco de um Estado-entidade-terrorista. Não cabe no palco o estaqueio da resistência, toda e qualquer, tomada às práticas hediondas e cirúrgicas e aterradoras por tropas de ocupação. Não cabe na palavra o grito que incendeia ao avesso, desde dentro e profundo, grito cheio de pernas, um grito de pança murcha, a mulher arrastada para fora da cria que lhe era e que se assassina impiedosamente sob o sofisma das mortes colaterais.

Há um teatro para isso que nos acostumamos a ver e a ningunear? Palavra estranha essa na que cabe a presteza do olhar e o cinismo de uma cegueira conveniente ao ensaio de agora.

A peça que não cabe no palco, desce para os meios da plateia e a convoca a tomar os espaços da rua – lugar das gentes assomadas ao ímpeto de sacar dos olhos as vendas, e mirar profundo as urgências que estão aí ao assalto contumaz de um tempo que urde compromissos, as tarefas da revolta.

 

 

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