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O último gênio a visitar Prelúdio e Fuga do Real

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Por IELA em 27 de novembro de 2019

O último gênio a visitar Prelúdio e Fuga do Real

Marxizar Cascudo e cascudizar Marx

Do meu amigo Vicente Serejo vem por telefone o amável convite e, ao mesmo tempo, intelectualmente espinhoso, para evocar o último gênio a visitar Luis da Câmara Cascudo no assombroso livro “Prelúdio e Fuga do Real”. 
Na casa da rua Junqueira Aires subindo as escadas o convidado é anunciado pela empregada:
– Seu Cascudo, tem aí um homem barbudo, gordo, falando uma fala que não é daqui. 
Já entrando, cordial e bem educado, mas sem o cerimonial burguês. Era Karl Marx, o autor de O Manifesto do Partido Comunista. 
– Frederico Engels não veio? 
– Não – respondeu Marx – Ele está cuidando da edição do segundo volume de O Capital.
O diálogo interpessoal desfaz o mal entendido epistemológico. Marx considera Cascudo o intelectual socializado no amor pelo povo. 
Quem teria amado o povo tanto assim? 
O socialismo do povo está em você, don Luis, amar e conhecer em profundidade, 150 volumes sobre a produção e a reprodução das gentes brasileiras.
É preciso dialetizar o tempo e o espaço, além do cotejo biográfico e das preferências subjetivas. O paradigma é Honoré de Balzac, revolucionário no romance e conservador em termos políticos. 
– Você nunca me citou em seus livros. E teve do comunismo a deformação stalinista corrente na década de 30. Isso, no entanto é aparência, não a essência das coisas. Quanto à necessidade da ciência para distinguir a essência da aparência, você escreveu um tratado materialista com originalidade daqui de Natal. 
Sentado na rede de dormir Karl Marx refere-se à ciência do povo extraída da tradição, que é o lugar culturalmente revolucionário em país colonizado. 
Não há dissídio entre folclore e marxismo, a não ser no salão burguês, conforme evidenciou Edison Carneiro, pesquisando Umbanda nos terreiros de Salvador. 
A oralidade folk antecede a erudição letrada. Na Itália o subversivo Pier Paolo Pasolini juntou no cinema épico o marxismo com a cultura popular. “Eu sou uma força do passado”, dizia ele. O novo Dante do folclore escreveu um longo poema sobre Antonio Gramsci. 
Equívoco é identificar tradição (o que se transmite oralmente) com defesa da propriedade privada.
O historiador potiguar mostrou que o dia a dia supersticioso do povo gira em torno da força de trabalho, a qual não deveria ser sacrificada à acumulação de capital. Resulta daí a expressão lúdica, o homo ludens na cultura popular, que se traduz pela predominância do valor de uso, digamos, a economia política do solidarismo. No regime socialista o mutirão é uma espécie de adjutório sem os donos dos meios de produção.
O trabalho é meio de vida, não de morte. Essa frase está em um dos livros do mestre que corrigiu o aforismo nababo de Lombard Street: time is money, mas – atenção – dinheiro não é tempo. 
Absolutamente não importa que não houvesse operário e fábrica na Natal plebeia de Fabião das Queimadas. 
O filósofo Epicuro era comunista na Grécia, segundo tese de doutorado de Karl Marx. A educação do desejo. Os sentidos se educam. 
O mundo é meu amigo, segundo o filósofo do jardim das delícias. 
A filosofia da miséria é a miséria da filosofia recusada pelo folclore. Vale a frase de Luis da Câmara Cascudo: viva a fartura que a miséria ninguém atura. 
Karl Marx tinha razão de visitar o Epicuro do Nordeste.
Marxizar Cascudo e cascudizar Marx, eis a diretriz revolucionária para o povo brasileiro. 
Saravá.
Karl Marx desceu as escadas como subiu naquela tarde de verão.
 

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