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Os fragmentos da esquerda

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Por Michel Goulart da Silva em 30 de setembro de 2025

Os fragmentos da esquerda

Crédito: Foto: Guilherme Santos/Sul21.com.br

Ouve-se com frequência a notícia de rupturas, expulsões ou outros processos que levem ao aumento na fragmentação da esquerda. Em um primeiro olhar, é praticamente impossível identificar as diferenças que justificam a o surgimento e existência de tantos grupos, afinal, no geral, as posições defendidas por essas organizações são sempre muito parecidas. Contudo, uma observação mais atenta pode mostrar divergências que trazem elementos estratégicos e apontam para as debilidades da maior parte desses grupos em compreender a própria conjuntura em que estão inseridos.

Esses grupos normalmente possuem algum grau de parentesco, direto ou indireto, sendo produtos de numerosas rupturas ou, em raros casos, de fusões ao longo de anos ou mesmo décadas. Essas rupturas comumente se dão a partir de alguma divergência tática em uma conjuntura específica, por desavenças pessoais ou, em poucos casos, por divergências teóricas substanciais. Como muitas organizações têm a tendência de dar maior importância às questões conjunturais, a maior parte das rupturas não ocorrem a partir de um debate teórico e programático realizado de forma cuidadosa, mas de tensões conjunturais que podem inclusive carregar fortes elementos pessoais.

São possíveis várias hipóteses para explicar a extrema fragmentação na esquerda, ainda que o fator determinante tenha relação com a situação política mais ampla. Existe um profundo refluxo na luta dos trabalhadores, em âmbito internacional, há cerca de trinta ou quarenta anos. Embora tenham se observado momentos de avanço em algumas lutas ou nas organizações dos trabalhadores, esses são fatos episódicos ou mesmo isolados se observados em uma perspectiva estrutural e de longa duração. No cenário posterior ao colapso dos países do chamado Leste Europeu, não houve mobilizações de trabalhadores que tenham superado a luta imediata e apontado para formas estratégicas organizativas da classe trabalhadora.

Na esquerda há um profundo retrocesso teórico, com o abandono da estratégia da revolução socialista e até mesmo do marxismo e a adaptação política às regras da democracia burguesa. Os casos mais evidentes desse processo são os partidos comunistas e social-democratas. Mas esse recuo teórico e político se aplica também às organizações que se pretendem revolucionárias, que, sem ter inserção social para disputar governos e parlamentos, são cooptados pela estrutura sindical ou por movimentos sociais, adaptando suas ações ao imediatismo corporativo das categorias de trabalhadores onde sua militância está inserida. Elas também podem ser levadas a um desvio propagandista, em que disputas teóricas que somente os dirigentes entendem são apresentadas como extremamente relevantes, ainda que totalmente deslocadas da realidade.

Desde o começo da década de 1990, no âmbito da esquerda o cenário que se coloca é o das principais direções assumindo a gestão do Estado e o dos setores pretensamente revolucionários se limitando à contenção das crises do capital por meio da intervenção nos sindicatos. Parece haver uma extrema dificuldade, por parte da esquerda, em relacionar as lutas cotidianas ao processo de exploração do capital e à sua crise. Em âmbito mundial, a classe trabalhadora vem sendo duramente atacada, se limitando a organizar resistências episódicas e fragmentadas.

Esse contexto das últimas décadas abre espaço para uma maior fragmentação das esquerdas, a partir de pequenas cisões dos grupos existentes. Essas crises e rupturas estão diretamente relacionadas ao recuo teórico e político, demonstrando a dificuldade das organizações em analisar a realidade concreta e disso desdobrar uma análise que seja capaz de explicar as contradições da realidade e de que forma se pode responder a esses fenômenos. Se antes do fim dos países do chamado Leste Europeu a esquerda girava em torno da União Soviética, seja apoiando suas pretensas conquistas ou se posicionando criticamente, havendo em diferentes países partidos comunistas e social-democratas para organizar as lutas dos trabalhadores, além de grupos maoistas e trotskistas eventualmente com alguma expressão na vanguarda dos trabalhadores, passou-se a um cenário em que praticamente todas as organizações, inclusive os grupos menores, passam por alguma ruptura.

Diante da entrada dos partidos reformistas em governos ou de suas guinadas políticas e teóricas, setores que atuavam nessas organizações criaram grupos separados, em alguns casos até mesmo usando a legalidade eleitoral, mas com pouca inserção na luta de classes. Essas pequenas organizações normalmente giram em torno de um grupo dirigente principal, nacional ou internacional, que centraliza sua elaboração política e controla de forma rígida as suas ações, supostamente garantindo que não haja desvios oportunistas e sectários. Nessas organizações, seu grupo dirigente centralizador, que supostamente encarna o melhor do legado revolucionário, em realidade é constituído por profissionais políticos afastado da luta cotidiana dos trabalhadores e que respondem não à dinâmica da luta de classes, mas à elaboração de subterfúgios que permitem sua manutenção como burocracia dirigente.

Os processos de crescimento das lutas normalmente levam à construção ou ao crescimento de uma direção política onde convergem os interesses da classe. Em grande medida essa organização ganha influência na vanguarda, incorporando em suas fileiras amplos setores dos trabalhadores ou, pelo menos, assumindo uma influência em setores da classe. Esse processo mostra que os trabalhadores procuram a direção política mais consciente, seja se colocando sob seu programa, seja fortalecendo organizativamente essa direção. Os trabalhadores entendem a necessidade do coletivo e da organização, ainda que muitos dos grupos pretensamente revolucionários prefiram definir tudo e todos como traidores ou revisionistas.

Os setores de massas dos trabalhadores acabam por se colocar em torno daquelas organizações que, mesmo de forma difusa, apontem para a transformação social. Esse processo pode levar à construção de sínteses políticas, que, de início, expressam certa pluralidade de estratégias. Contudo, apesar de seus limites, a serem superados na luta de classes, essas organizações podem expressar a consciência de amplos setores da classe trabalhadora, mostrando organizativa e estrategicamente as possibilidades concretas de luta dos trabalhadores em determinado momento histórico. Essas formações de massa, ao terem como base uma certa amplitude de setores da classe trabalhadora, potencialmente podem se constituir em ferramentas de transformação social e de luta pelo socialismo.

Se esse processo permite a construção de sínteses estratégicas na luta dos trabalhadores, na medida em que amplos setores da classe se colocaram sob uma direção política, deve-se analisar o que pode acontecer em um cenário em que há uma completa fragmentação da esquerda, com o aparato reformista representando uma alternativa eleitoral e os revolucionários espalhados em dezenas de minúsculas siglas. Em meio à fragmentação das últimas décadas, é óbvio que cada sigla pretensamente revolucionária não possua um efetivo enraizamento na classe. São pequenos grupos que ou possuem militantes espalhados em diversas categorias profissionais ou possuem um relativo peso político em uma única categoria, quase sempre de caráter local. São grupos pequenos, em sua esmagadora maioria com poucas centenas de membros. Normalmente possuem uma estrutura financeira limitada, mantendo-se principalmente a partir da contribuição de seus militantes e apoiadores, tendo uma imprensa com uma pequena inserção entre os trabalhadores. Expressam, assim, apenas fragmentos de consciência da classe, o que leva a dois desvios principais.

O primeiro, o impressionismo, tem relação com o fato de se deixar influenciar pela consciência imediata da categoria que constitui sua principal base social. Com isso, o conjunto das táticas está voltado unicamente para dar resposta aos interesses desses segmentos. Além disso, as respostas que se dão aos problemas da conjuntura visam uma ação imediatista, limitada à ordem burguesa, minimizando a importância de uma estratégia de longo prazo. O segundo desvio, o parcialismo, está relacionado ao fato de considerar o nível de consciência de uma categoria específica como se fosse o todo da classe trabalhadora. Neste caso, suas políticas não são pensadas em seu aspecto mais amplo, mas a partir de um pequeno fragmento. Com isso, se a categoria está em avanço ou refluxo, mobilizada ou inerte, a avaliação geral da conjuntura será dada somente pela percepção da realidade que a organização tem a partir desse limitado segmento.

Esses problemas fazem com que os grupos pareçam cultos ou seitas descoladas da realidade. Como sua visão é limitada à base social onde estão inseridos, interpretam que as posições das outras organizações, que também expressam outros fragmentos de classe, é equivocada. Como cada qual está isolado em se ponto de vista particular, começam a centrar seus embates na luta contra os outros grupos.

Essas organizações pregam o marxismo para uma base social ínfima dentro do conjunto da classe. Nenhuma delas, mesmo aquelas com discursos mais arrogantes, tem o monopólio de uma verdade dos trabalhadores. Essas organizações se limitam a contendas que servem apenas para que cada grupo marque posição e não se abra realmente a um efetivo debate, fazendo com que estejam fadadas a nunca vir a ter qualquer relevância política para a luta de classes, mantendo-se isoladas ou mesmo vindo a desaparecer depois de sucessivas cisões.

Enquanto os trabalhadores não se colocarem numa ampla ofensiva e construírem um instrumento de organização e luta de massas, que abranja os mais amplos setores da classe, estará muito longe de superar sua fragmentação. Sem essa organização, portanto sem um espaço onde se possa discutir e construir sínteses programáticas dentro da mais ampla democracia, continuará a existir um mosaico de posições espalhadas por centenas de grupos minúsculos que, a despeito de suas falas megalomaníacas, não passam de pequenas seitas que conseguem dialogar apenas com elas mesmas.

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