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Os veículos como moradia nos Estados Unidos

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Por Demétrio Coelho em 09 de julho de 2025

Os veículos como moradia nos Estados Unidos

Foto: (Aurelia Ventura/La Opinión)

Comumente, os algoritmos das redes sociais nos entregam vídeos de pessoas morando em “casa sobre rodas”. Somado a esse fenômeno, as famosas road trips se tornaram um nicho comum entre aqueles que carregam um sentimento de espírito livre, desgarrado das amarras da sociedade. De fato viver em um ‘motor-home’, viajando pelos mais diversos cantos do mundo, criando conteúdo e ainda por cima sendo remunerado por relatar suas aventuras não se parece uma má ideia – e de fato não é.

Segundo o Department of Housing and Urban Development (Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano, HUD), no ano de 2024 mais de 400 mil pessoas moravam em veículos nos Estados Unidos. A esmagadora maioria deles não é produtor de conteúdo e não ganha um centavo sequer por viver em seus carros, até porque provavelmente não disponha de tempo para relatar as situações que estão vivendo. Passam a maioria do tempo trabalhando e não vivem uma vida “interessante” a ponto de relatá-la para as redes sociais. Todas essas 400 mil pessoas que vivem nos mais variados tipos de veículos são, na verdade, sem-teto, e alguns deles nem são donos de seus próprios veículos, precisam pagar mensalmente um aluguel. Segundo o jornal Los Angeles Times, “um número cada vez maior [de pessoas] paga aluguel mensal, variando entre US$ 400 e US$ 1.000 (R$ 2.200,56 a R$ 5.501,40), para os proprietários que os anunciam online. Muitos desses veículos estão em estado precário, alguns até mesmo sem motores”.

O brasileiro Fernando Lopes é um privilegiado no meio dessa epidemia que envolve as habitações nos Estados Unidos. Ele possuí um carro que é dele mesmo e, ainda por cima tem motor em seu veículo. Contudo, continua entrando para a estatística do número de pessoas sem-teto. Em seu canal no Youtube ele relata como é a sua rotina, em um de seus vídeos de mais acessos,  Fernando cita as 5 vantagens de morar em um carro. Com a escalada dos preços dos alugueis em quase todos os Estados estadunidenses, alugar apenas um quarto se torna uma dura missão. Para Fernando, os carros são uma alternativa mais viável,  além de que, para aquelas pessoas que trabalham entre 12 e 14 horas por dia, haveria um baixo tempo de uso do seu imóvel. Ele justifica, portanto, que “se trabalha muito por dia e depois você vai chegar em casa e dormir depois de 1 ou 2 horas, não vale a pena pagar 800 dólares por isso”.

Outros pontos destacados no vídeo envolvem foco e disciplina. Bem incorporado ao estilo de vida estadunidense que prioriza o trabalho à dignidade, ele sabe que, em uma casa ele poderia ficar mais preguiçoso: “no carro antes das 6 da manhã  você é obrigado a fazer dólar”. Além disso, dentro de um carro você não fica suscetível ao consumo desenfreado promovido pela sociedade estadunidense. O pouco espaço para guardar as coisas faz com que seja possível economizar uma “grana”, segundo ele. A última vantagem colocada por Fernando se relaciona à liberdade geográfica. Por morar em um carro ele pode trabalhar como motorista de aplicativo. Então, quando uma região não está muito boa, ele pode se deslocar para outra que apresenta um maior potencial para o trabalho.

Se a vida se resumisse apenas às vantagens de seu vídeo, isso parecia indicar que as mais de 400 mil pessoas que moram em seus carros não foram obrigadas a estar nessa situação, mas sim escolheram por livre e espontânea vontade. Contudo, não cairemos em ilusão. Eles sabem que o que estão vivendo é uma clara falta de amparo social por parte do Estado, que deveria protegê-lo. Fernando tem outro vídeo similar em seu canal, porém, ao invés de citar as vantagens, ele cita as desvantagens. Elas basicamente se resumem a dormir mal, comer mal, se higienizar mal, não ter privacidade para as necessidades. Outro problema, não citado por ele, está relacionado com a segurança. Estacionar em uma rua qualquer deixa sujeito a perturbações e ameaças durante toda a noite, tanto da polícia  como de possíveis assaltantes e pessoas mal-intencionadas. Nos últimos anos não são raras as notícias que mostraram incêndios e explosões em carros. Isso se deve ao fato da criação de um mercado paralelo dos automóveis, pessoas compram veículos completamente deteriorados e vendem para pessoas em condição de rua por até mil dólares. A princípio, parece um bom negócio, mas a realidade é que você está morando dentro de uma bomba relógio.

O que nos resta, então, é refletir sobre como uma estética de liberdade e desapego pode esconder, uma das faces mais cruéis do colapso habitacional nos Estados Unidos, pessoas idosas, com problemas graves de saúde são sujeitas a essa situação, como o ex-fuzileiro naval Lawrence McCue, que foi forçado a se mudar com sua esposa e um cachorro para um motorhome. A mesma imagem que vende autonomia e espírito aventureiro para alguns, representa, para muitos outros, o retrato de uma sociedade que normalizou a precariedade como escolha de vida. É preciso questionar quem realmente tem o privilégio de transformar um carro em lar e quem, por outro lado, é empurrado a isso por pura falta de alternativa. Viver em um veículo pode parecer um ato de rebeldia contra o sistema, mas, para centenas de milhares de pessoas, é justamente o resultado da violência silenciosa que o sistema estadunidense perpetua. Não se trata de estilo de vida, e sim de sobrevivência. E quando sobreviver se torna o limite máximo da dignidade humana, a falha escancara um problema estrutural.

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