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Passando a Boiada: a Conexão Cerrados-Amazônia

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Por IELA em 27 de maio de 2021

Passando a Boiada: a Conexão Cerrados-Amazônia

Essa pequena reflexão que oferecemos ao leitor tem por objetivo chamar a atenção para a relevância de levarmos a sério uma leitura geográfica da sociedade. Sabemos como expressões como “a economia brasileira” ou “a sociedade brasileira” costumam ignorar a geograficidade do social tanto quanto (1) às conexões socioespaciais entre as regiões que se constituem pelas relações sociais e de poder, como são condicionadas por elas, e (2) pela inscrição da sociedade na natureza, para além de uma leitura que, colonizada pela economia, só vê recurso natural.
Ao longo de várias investigações que vimos estabelecendo acerca da dinâmica capitalista no campo brasileiro fazemos referência às conexões sociais, econômicas, políticas e ambientais existentes entre áreas consolidadas pelas atividades agropecuárias e os fronts por onde se espraiam o complexo de poder através de atividades de extração de madeira, criação de gado e extração mineral (garimpo, por exemplo). Esse conjunto socioespacial constitui o complexo de poder que, desde os anos 1970, tem a soja como principal atividade.
De toda terra cultivada no Brasil em 2019, 78% correspondiam a somente três produtos: a soja, o milho e a cana de açúcar. Enfim, somente 3 produtos eram responsáveis por mais de ¾ de toda área cultivada no país (78%) e somente um deles, a soja, se aproximava da metade de toda a área cultivada no país (44%)! A cana de açúcar, por exemplo, vem ocupando amplas áreas no Centro-Sul do país que, em grande parte, eram áreas de pastagens e criação de gado e, com isso, vem contribuindo para a expansão dessa atividade para os fronts dos Cerrados e da Amazônia. O mesmo se dá com a soja que vem ampliando exponencialmente suas áreas [1]  e, com isso, empurrando a atividade pecuária para os fronts da Amazônia, haja vista que a soja tomou os cerrados como seu palco privilegiado já adentrando o Maranhão, Tocantins, Piauí e a Bahia (MATOPIBA) e também o Pará, Rondônia, Amazonas, Roraima e Amapá.
E o fez explorando a geomorfologia das áreas de Cerrados do Planalto do Brasil com seus amplos chapadões e chapadas de terras planas, haja vista os altos custos energéticos de numa agricultura altamente industrializada e terras planas implicam menor custo energético; do Sol de cada dia que as regiões tropicais oferecem, energia gratuita (fotossíntese) de que se apropria tanto mais quanto maior a propriedade e; pela ampla disponibilidade de água não só das aguas superficiais – os cerrados são a “caixa d’ água do Brasil” – como dos aquíferos.
Dada a visão colonial que ainda domina esquecemos que essas áreas não são “vazios demográficos” sendo os cerrados ocupados a mais de 11.500 anos – Luzia, o fóssil humano mais antigo do Brasil habitara os cerrados de Minas Gerais – e a Amazônia brasileira a mais de 11.200 anos, conforme inscrições rupestres de Serra Pintada, em Monte Alegre no Pará. Trazemos isso ao conhecimento não por erudição, mas para alertar que ao se ignorar esses fatos (esses feitos) estamos desperdiçando experiências humanas, haja vista que ninguém vive, em qualquer lugar que seja, sem conhecimento, pois para comer é necessário saber coletar, saber pescar, saber caçar, saber plantar, saber cozinhar, enfim, desenvolver suas culinárias; é necessário saber construir suas arquiteturas para se proteger das intempéries e é necessário saber fazer suas medicinas para se curar das doenças. Enfim, ninguém vive sem saber.
Portanto, os Cerrados e a Amazônia, que aqui vão nos interessar mais de perto, não são apenas dois biomas, pois abrigam conhecimentos e culturas forjados por seus povos e comunidades. Passemos, pois, ao fato que nos mobilizou escrever essas notas.
No dia 19 de abril de 2020, a TV Globo publicara uma reportagem que nos revelaria de modo emblemático, diríamos quase conceitual por seu caráter generalizante, a dinâmica socioespacial desse complexo de poder protagonizado pela soja, no caso com a conexão entre os Cerrados e a Amazônia. 
A equipe de reportagem registrou a invasão de terras indígenas no Pará por grileiros que a lotearam e por garimpeiros que a ocuparam. Tal como determinara o Ministério Público Federal, os técnicos e funcionários do IBAMA, destruíram “os 76 motores, tratores e retroescavadeiras encontrados nas aldeias indígenas”. No dia seguinte, o servidor responsável pela ação, o Sr. Olivaldi Azevedo, foi afastado do cargo sem nenhum esclarecimento público. 
A reportagem captou com detalhes as relações de poder que se estabelecem nessa dinâmica socioespacial identificando as conexões entre as escalas local, a regional e nacional implicadas [2]  . Como as escalas não são externas às relações sociais e de poder que as engendram, mostrou com riqueza de detalhes as implicações que o caso revela. 
O vereador Silvio Alves Coelho, do município de Senador Porfírio – PA, onde ocorreram os fatos reportados, era um dos protagonistas que atuava aliado ao Sr. Jassônio Costa Leite, grileiro-fazendeiro de Tocantins, região de Cerrados, que atuava no Pará. A reportagem conseguiu, ainda, documentar um encontro entre o Senador da República Zequinha Marinho, diretamente ligado ao caso, o tal fazendeiro-grileiro e o Presidente da República. Na reportagem, o jogo das escalas de poder aparece.
O fazendeiro, doublé de grileiro, “é um homem de camisa vermelha listrada que aparece em frente ao Palácio da Alvorada abordando o presidente” [da república], diz a reportagem. O Senador Zequinha Marinho aparece dizendo: “Tá comigo aqui o Jassônio que, mesmo morando no Tocantins, mantêm (aqui) suas relações, seus negócios, suas terras”. 
Como esclarece mais adiante a reportagem, o fazendeiro-grileiro é “bem relacionado em Brasília, ele aparece no gabinete do senador Zequinha Marinho do PSC do Pará”: “Nós ficamos agradecidos, senador, de ter uma pessoa como o senhor empenhado a resolver uma situação dessas”, diz o fazendeiro-grileiro. Esse mesmo Senador, informa a reportagem “é autor de projetos para suspender a criação e demarcação de terras indígenas. Em fevereiro, ele tentou barrar uma operação do Ibama em Ituna Itatá. Mas não conseguiu. A Justiça manteve a operação” [3] .
A manipulação pelos poderes fáticos dos procedimentos eleitorais formais aparece de modo explícito no depoimento de um posseiro na reportagem: “Todo mundo que foi para Senador José Porfírio (PA) teve que transferir o título de eleitor para o município” [4] . Ou seja, todo aquele ou aquela que foi atraído/a para aquela aventura, mesmo que de boa-fé, deveria transferir seu título de eleitor para o novo município, de tal modo que a ilegalidade se constituísse no poder legalizado na próxima eleição. E, assim, a democracia é manejada como forma de perpetuação do poder de facto – do Fazendeiro-Grileiro, do Madeireiro, do Miliciano, do Jagunço, do Capitão do Mato – com suas conexões legais com vereadores, prefeitos, deputados e senadores. Mais uma vez, como vimos acusando em outros trabalhos, o ilegal e o legal estão imbricados.
De fato, as promessas de campanha do atual presidente Jair Bolsonaro de legalizar garimpo em área indígena, diminuir suas áreas, estão sendo levadas à prática, mesmo antes de qualquer formulação legal. É o que se vê no depoimento do vereador Silvio Alves Coelho implicado no caso: “O próprio presidente vem sempre falando que vai diminuir o tamanho das áreas (indígenas – CWPG), que existe uma demanda prá diminuir, que igualmente existe garimpo dentro dessas áreas que existe uma possibilidade de legalizar parte dessas áreas. E todo mundo trabalha na esperança, esse povo aí”. Ou ainda, no depoimento de uma posseira, Claudina de Souza, que comprara um lote na Terra Indígena Araweté, em São Félix do Xingu, no Pará, que nos diz: “Que aqui era (terra) da união, que não era terra indígena, que tava tudo ok, que a gente tinha apoio do governo, que a gente podia entrar pra trabalhar que o governo estava nos apoiando”, conta.
Ainda segundo a reportagem, mais de 600 pessoas foram atraídas por esse discurso. “Dentro de um mês espalhou na região. Aí veio gente de Maranhão, de Parauapebas, de Marabá, de Tucumã. Até de Brasília, Goiás tem pessoas aqui, né?”, diz o posseiro Arilson Brandão.
Assim, a prerrogativa que garante ao estado o monopólio da violência legítima, vem sendo manejado por poderes de facto, nada legítimos na medida em que se impõe pela força com jagunços e milícias. O Poder Judiciário e o Poder Legislativo [5] têm sido historicamente baluartes na defesa da propriedade que, no Brasil, não é a defesa da propriedade simplesmente, mas da grande propriedade. Dos 1965 assassinatos cometidos no campo brasileiro, entre 1985 e 2018, cujas vítimas foram os que lutam para permanecer na terra ou para conquistar um pedaço de terra para viver, somente 117 casos foram a julgamento e somente 33 mandantes foram condenados, segundo a CPT. Em suma, somente 8% do total desses casos [6] de assassinatos foram a julgamento! Um verdadeiro escândalo que nos autoriza a falar da falência das instituições (que deveriam ser) públicas, posto que atuam a favor dos “donos do poder”, conforme a consagrada expressão do jurista Raimundo Faoro.
Eis o chamado desenvolvimento desigual e combinado na geografia da sociedade brasileira onde a chamada acumulação primitiva se mostra como a contraface da acumulação civilizada ou, ainda, nos mostra como civilização e barbárie caminham juntas sob o capitalismo. Não esqueçamos que no fundo da reportagem estavam os povos indígenas. Passemos a palavra a um deles, Ailton Krenak, que nos propõe outras conexões.
“Nossos territórios estão sendo invadidos por garimpeiros e madeireiros. Tem bandidos armados invadindo as terras indígenas e matando os índios. E o resto dos brasileiros fica assistindo isso como se nós continuássemos, ainda, em uma guerra colonial, de ocupação do Brasil. Está na hora de os brasileiros tomarem vergonha na cara e ficarem de pé, e se fazerem respeitar. Se vocês acham que os índios devem ser mortos logo, então tornem público isso. Se não, vocês se levantem juntos com índios e enfrentem essa corja que está tentando nos matar” (Ailton Krenak).

Notas
1 – Enquanto a área total cultivada do Brasil aumentou em 44%, entre 1989 e 2019, a soja aumentou sua área cultivada em 193%, no mesmo período.2 –  O escândalo da exportação de madeira ilegal, que veio a público em maio de 2021, acusa o envolvimento do Ministro do Meio Ambiente, Sr.  Ricardo Salles, e vários funcionários do Ibama, inclusive seu Presidente, o Sr. Eduardo Fortunato Bim, revelaria, ainda, a escala internacional. 3 –  Consultar a reportagem “Áudios e vídeos revelam detalhes de esquema de grilagem dentro de terras indígenas” em https/www.facebook.com/pachamamaeditora/posts/2654420298163056. Acesso em 23 de abril de 2020.4 –  O município de Senador Porfírio citado na reportagem e que recebera centenas de posseiros localiza-se na Amazônia, na região de Altamira, no Sul do Pará.5 –  Nos últimos anos várias leis vêm sendo aprovadas regularizando terras ilegalmente apropriadas, através das MPs da Grilagem como vêm sendo sucessivamente chamadas. 6 –  Entre 1985 e 2019 foram registrados 1965 assassinatos que correspondem a 1463 casos, pois em algumas dessas ocorrências foram assassinadas mais de uma pessoa. Os 8% acima indicados foram calculados sobre o total de casos, 1463, e não pessoas assassinadas, 1965.
 

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