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Quem foi Hugo Chávez?

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Por IELA em 15 de janeiro de 2015

Quem foi Hugo Chávez?

Quem foi Hugo Chávez?
Por Carla Ferreira – Doutora em História pelo PPGHIST/UFRGS, pesquisadora do HEDLA/UFRGS e membro dos conselhos das Revistas Margem Esquerda e Crítica Marxista.

 
17.04.2013  – “Chávez no murió, se multiplicó! Yo soy Chávez!” foi uma das palavras de ordem mais repetidas entre os venezuelanos que engordavam as dezenas de filas que confluíam ao local onde eram rendidas as homenagens ao líder do Processo Bolivariano da Venezuela, falecido um dia antes. As filas correram como um rio caudaloso por ambos os lados do féretro por nove dias consecutivos naquele local, enquanto dirigentes mundiais, atletas, artistas, comitivas de trabalhadores e ativistas internacionais alternavam-se, fazendo-lhe guarda de honra ao som de cantores populares em serenatas sem fim. No dia 15 de março, os restos de Chávez foram transferidos para o Cuartel del Monte, no bastião da combatividade das favelas venezuelanas, o conjunto 23 de Enero.
O simbolismo dessa prolongada despedida ou os esforços por negá-la compõem o quadro complexo das disputas pelo significado de Hugo Chávez para a história recente. A julgar pelo obscurantismo da cobertura feita pela mídia corporativa sobre a doença, o falecimento e o velório do líder popular, o desafio de quem quer compreender Chávez e a Venezuela bolivariana deve orientar-se para a busca de outras fontes – mais fidedignas. Nesse breve artigo, apresentaremos alguns tópicos que permitem entender ao menos certos aspectos do fenômeno político e social venezuelano.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir a liderança de Chávez do que é o Proceso Bolivariano da Venezuela e o Gobierno Bolivariano em si. O Proceso se constituiu como um conjunto de acontecimentos políticos e sociais que conformaram o movimento bolivariano radical de massas a partir dos episódios do Sacudón ou Caracazo (1989) e das insurreições militares de 4 de fevereiro de 1992 e 27 de novembro do mesmo ano, avançando ao longo da década de 1990 por meio de um conjunto de mobilizações de grande envergadura, que conformaram o que foi chamado de democracia de la calle, dada a falência do regime político vigente no país.
O Proceso Bolivariano se desenvolveu, assim, ao longo do tempo, como uma aliança política entre o subproletariado urbano habitante dos barrios (favelas), principalmente de Caracas, e um grupo de militares bolivarianos que elaboraram um projeto de reformas para o país. Chávez foi o principal porta-voz desse Proceso e seu líder inconteste, responsável por amalgamar uma unidade civil-militar com um projeto político constituinte, quer dizer, que foi sendo construído democraticamente ao longo do caminho e consolidado em documentos como Alternativa Bolivariana (referenciado pelo movimento dos militares bolivarianos), o texto da própria Constitución Bolivariana (2000) e ainda os Planos de governo, como o Simón Bolívar (ao longo dos primeiros anos) e os Planes Socialistas de la Nación (elaborados a partir de 2007 e com orientações até 2019).  
O Gobierno Bolivariano, por sua vez, refere-se a uma dimensão política do Proceso, sem esgotá-lo. Inaugura-se com a chegada de Hugo Chávez à presidência da república e implica uma transformação qualitativa nas contradições com as quais o Proceso teria de se defrontar. Por outro lado, com o Gobierno, o Proceso ganha projeção internacional por meio da atuação do líder que causa ruídos nos protocolos das cúpulas mundiais, quando Chávez prefere viajar duas vezes ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre e incendiar uma cúpula dos povos em Mar del Plata que terminou de sepultar a ALCA, ou ainda fazer a afirmação “Isso aqui ainda cheira a enxofre”, ao chegar ao púlpito da Assembleia das Nações Unidas que, um dia antes, havia sido ocupado por George Bush ou “Mr. Danger”, como gostava de se referir a seu colega estadunidense.
Chávez e o Proceso tendem, assim, a ser reduzidos ao Gobierno pela maior parte dos analistas. Essa confusão explica parte das dificuldades para se compreender o fenômeno político venezuelano. Outros entraves para esse entendimento devem ser tributados, entretanto, ao simples reacionarismo imperante em muitos meios, inclusive os acadêmicos. No que se refere ao Gobierno, predomina entre os analistas certo consenso de que as realizações na área econômica são restritas. Porém, cabe ponderar que a economia petroleira venezuelana entrara em colapso desde os anos 1980. Isso foi exaustivamente demonstrado pelo mais importante intelectual liberal venezuelano, Asdrúbal Baptista, em seu célebre El colapso del capitalismo rentístico. Esse colapso já havia sido prefigurado por estudos sobre a economia venezuelana realizados no final dos anos 1950 e início dos 1970 por Celso Furtado, um dos mais brilhantes dentre os nossos economistas de matriz estruturalista. Os economistas dos dias atuais, menos afeitos às análises de fundo, referem-se repetidamente à inflação alta, ao desabastecimento de produtos de consumo supérfluo, aos baixos índices de produtividade do trabalho, ao encolhimento da indústria em relação ao comércio e serviços, entre outros indicadores que, se bem são verdadeiros, não explicam o suposto fracasso desse governo, uma vez que o antecedem no tempo.
O fundamental, neste caso, é saber qual a saída para a crise do padrão de reprodução do capitalismo dependente petroleiro e rentista que se arrastava desde 1983, quando, no chamado Viernes Negro, houve uma hiperdesvalorização da moeda nacional, o Bolívar, e a economia venezuelana, junto com sua estrutura social, começou a ruir. Diante dessa crise, Chávez ofereceu uma resposta: rearticulou a OPEP; trabalhou para elevar os preços internacionais do petróleo e com isso maximizar a renda e redistribuí-la de forma menos concentrada, orientando uma maior parcela da mesma ao pagamento da dívida social. Também diversificou os parceiros comerciais, visando ao Oriente, dado que a projeção de crescimento da demanda por petróleo em 75% se dará nesse sentido até 2030, enquanto os Estados Unidos trabalha pela autossuficiência energética. Enfim, ganhou tempo para buscar soluções mais efetivas para os paradoxos da economia petroleira e seus entraves para a diversificação produtiva. Pois a dependência estrutural que afeta os países latino-americanos não se resolve apenas com a mudança de regime político, embora o pressuponha, e a soberania efetiva não se resume a uma diplomacia independente.
Essa foi uma resposta possível em uma conjuntura de crise internacional real e que permitiu à Venezuela pelo menos acompanhar os demais países (não petroleiros) do continente em seu desempenho médio, com redução do desemprego (que caiu de 18% em 2003 para 6,4% em 2012) e ampliação dos direitos previdenciários, além da recuperação do salário mínimo em relação ao salário total. O Gobierno ainda conseguiu reduzir as distâncias entre os maiores e menores salários em proporções superiores às do Brasil (que as reduziu em 33%) e às do Uruguai (1%, por ser um país com salários menos desiguais), ao exibir uma redução da distância entre o quintil dos 20% melhor pagos em relação aos 20% piores pagos em 9 pontos (ou 50%). E, considerando as dificuldades estruturais da crise, não deixa de ser embaraçoso para muitos críticos o fato de a Venezuela ter sido declarada pela Unesco, em 2005, território livre do analfabetismo e, em 2010, obtido o reconhecimento da FAO como um dos dez países com melhor nível de alimentação do mundo.
Porém, a transcendência de Chávez não pode ser restrita a esse papel no governo, pois sua maior contribuição deve ser creditada ao campo ideológico, na denúncia dos efeitos do neoliberalismo sobre os povos, das guerras imperialistas no Oriente Médio, da militarização da América do Sul por forças estadunidenses e sua orientação para o controle amazônico e na defesa da unidade latino-americana. Como educador de massas incansável, reivindicou os ideais socialistas e revolucionárias e construiu um movimento social e político fortemente unificado, em aliança com uma força armada nacional orientada para a defesa da soberania e avessa à repressão interna, enfim, com práticas de democracia radical.
Assim, se Chávez, Proceso Bolivariano e Gobierno Bolivariano compõem um todo diferenciado, nenhum desses elementos pode ser reduzido aos demais. Se o Proceso conformou a radicalidade do líder por meio de suas práticas de luta direta nas ruas, por outro lado, o líder popular, ao unificar o conjunto das forças sociais do Proceso em um projeto político  por meio de uma sensibilidade incomum , orientou a ação e conferiu ao Proceso materialidade ideológica e musculatura social para os enfrentamentos hegemônicos que se apresentaram. Potencializando-se mutuamente, mas também se autolimitando, a dialética Chávez-Proceso Bolivariano foi até o momento o principal motor da história recente da Venezuela. Sem a liderança de Chávez, as relações do amplo movimento de massas articulado às forças militares reformadoras contra o aparato de Estado tendem a aflorar mais abertaente. Gobierno e Proceso conformam-se como dois conjuntos com uma intersecção que os une e vastas áreas que os separam. Daí que novas contradições tendem a apresentar-se neste período de transição.
Como parte de seu amplo testamento político, Chávez antecipou-se e apontou o sentido estratégico para a solução desses novos desafios. Na autocrítica que realizou em discurso proferido em 20 de outubro de 2012, conhecido como Golpe de Timón, Chávez elevou-se à estatura de um líder popular revolucionário e apontou diretrizes para as próximas décadas. Os objetivos por ele definidos percorrem agora as reuniões nos barrios e locais de moradia, como a que testemunhei no conjunto de blocos Simón Rodríguez, de Caracas, dias depois da jornada na fila para a Capilla Ardiente. Assim, é no bojo dessas contradições em que o velho não termina de morrer e o novo não acaba de nascer que a liderança de Chávez se avulta conjurando por uma solução heroica, a exemplo de Bolívar, criativa, como diagnosticou Rodríguez, e popular, como queria Zamora, os três personagens da história do país que ele escolheu para simbolizar seu projeto.
Artigo publicado originalmente no Jornal da Unversidade (UFRGS), abril de 2013.

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