Celia: bússola na tempestade e patamar para o futuro
Texto: Anaisis Hidalgo Rodríguez - Cuba
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04/09/2007
Por Daniel Santiago Chaves- pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente / UFRJ e bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento – CNPq. Colaborou Patrícia Gomes.
À medida que avança o inicialmente discreto ano de 2007, o cenário continental de integração conhece alguns termos um tanto quanto problemáticos. O projeto das esquerdas unidas –Chávez, Morales, Lula, Vázquez, Kirchner, García– em torno de uma nova agenda social, política, econômica e cultural para a integração alternativa se depara com novos problemas. Em um panorama onde os interesses racham o bloco e os ecos da afirmação – exacerbadamente westfaliana?– da soberania parecem estar perigosa e indiscutivelmente acima da cooperação mútua, assistimos ao nosso primeiro impulso de sonho para a América do Sul unida passar por seríssimos problemas.
Em nuances do que muitos denominariam na chamada via “realista” de compreensão das Relações Internacionais, surge um quadro onde parceiros pensados em outrora agora parecem exibir conteúdos programáticos decisivamente dispares (1). Nesse sentido, a entrada alternativa –construtivista– para lidar com a fase hodierna de desconfiança mútua acabou falhando, tanto na perspectiva materialista (por via da normatização das relações cooperativas por via de instituições que almejem a convivência ideal) quanto na histórico-social (onde as relações culturais historicamente construídas seriam um caminho fundamental). Ao mesmo tempo em que esses conteúdos não conseguem chegar a um consenso viável para minimamente estabelecer um diálogo sólido e harmonioso, as barreiras culturais se apresentam muito fortes. Assim, podemos dizer que se alguns setores ignóbeis das elites do Brasil não estão mais de costas para a América do Sul, de vez em quando estas, débeis em arrogância, olham de rabo de olho.
A Bolívia é um país absolutamente exemplar nesse raciocínio, e a evolução da sua face de contato com o Brasil tem muito a dizer sobre o atual estágio da integração continental. Portanto, ao longo dos últimos 6 meses, após uma pesquisa de campo densa nos dedicamos a travar uma diagnóstico profundo, prospectivo e intensivo da realidade boliviana, afim de entender as matizes da nova democracia e do cenário político do país vizinho (2).
Entre os fractais problemas políticos, culturais, institucionais, econômicos que o paradoxal país atravessa, este trabalho tem em vista resumir brevemente um panorama no período destacado sobre Santa Cruz de la Sierra, a matriz de oposição histórica ao status quo andino. Norteamos-nos pela premissa clara de que ignorar as questões políticas urgentes de um eruptivo e emergente “nó” na rede sul-americana de desenvolvimento é ignorar o futuro do continente face à tendência irremovível de formação de grandes blocos regionais. Não se devem fechar os olhos para o que acontece na nossa fronteira, independentemente de concordâncias ou discordâncias ideológicas ou programáticas. Histórica, cultural, política e economicamente a Bolívia é um país irmão. E Santa Cruz de la Sierra –tanto a região da antiga província quanto o atual departamento– é o território portador das nossas fronteiras imediatas. E só deixará de ser assim quando os sonhadores do Brasil europeizado/americanizado colocarem o nosso país em uma jangada de pedra, rumo a qualquer outro centro “estável e desenvolvido” longe daqui.
Para tanto, lançaremos mão de uma análise de conjuntura política, econômica e social da região oriental boliviana, de tantas interpretações e tantos entre tons.
A Assembléia Constituinte: a política nacional emperrada
No tocante a Assembléia Constituinte iniciada em 2006, notaram-se muitas tarefas para muito pouco tempo. Os avanços insuficientes nas reivindicações da medialuna – a frente oriental de oposição composta por Beni, Pando, Tarija e Santa Cruz + Cochabamba – e a persistência dos MAS sobre (i) a instauração de um Estado Plurinacional – e risco de fratura institucional nas “36 nações” indígenas -, (ii) do 4º poder social, tendência de ampliação radical da democracia direta sob o controle do governo, (iii) do não-reconhecimento direto da Constituinte sobre o Referendo Autonômico e (iv) nas ofensivas sobre a legalidade da Constituinte (questão dos juízes do Tribunal Constitucional e desrespeito ao regulamento dos informes gerais) são as mais evidentes razões para o ruído político em Santa Cruz, centro de gravidade político da medialuna.
Devem-se destacar nessa direção três dinâmicas organizacionais diretamente complementares entre as elites político-economicas:
? Especial capacitação para questões locais, em exemplos como a ativação da Assemblea Provisional Autonômica de Santa Cruz em todo o processo de agitação em torno das autonomias. Dinamizam-se reuniões de cúpula, táticas de capilarização e consolidação do discurso autonomista. Além disso, a ligação com setores do proletariado e dos indígenas orientais são atuações concernentes a essa arquitetura da vida política;
? Mais organicidade para a unidade regional: Junta Autonômica Democrática = Prefeitos + Cívicos departamentais, agora com os cívicos provinciais e municipais + brigadas parlamentarias de toda a medialuna, ou seja, uma coalizão quase total das elites. É a imagem da convergência estratégica entre a soc. civil e os deputados representantes em busca de mais legitimidade.
? O papel central do Comitê Cívico pode ser entendido por diversos fatores; no entanto, levamos conta à fluida institucionalidade do Comitê Cívico enquanto órgão público, o que lhe rende bastante liberdade de atuação em termos de rejeição ao governo nacional em contrapartida. Destaca-se o empresário Branko Marinkovic na liderança: o filho de um importante casal de imigrantes croatas (muitos na região, deve-se dizer) é um crucenho moderno, empresarial, pragmático, sem “vida cívica”, que para alguns setores tradicionais da sociedade representaria simbolicamente uma possível perda da identidade provinciana a ser conservada.
Autônomos ou Cambas?
Podemos destacar também que as preocupações hoje orbitam em torno da legalidade do único espaço decisivamente legítimo e representativo que resta nessa altura do campeonato para o consenso, ou seja, a Constituinte. Nesse sentido, a ampliação dos prazos na constituinte e o eventual desrespeito à autonomia departamental vinculada em 2006 ocasionaram (i) a convocação da Assembléia pela Bolívia Democrática no aniversário do referendo, mobilizando 60 mil pessoas; (ii) a reunião de cúpula da medialuna em 7/7/2007 e a consolidação dos pactos políticos regionais entre cívicos e prefeitos; (iii) a Assemblea de la Cruceñidad como carta na manga para definir medidas de pressão; (iv) e ultimato e subseqüente ativação da autonomia de facto.
Foram mencionados claramente dois futuros possíveis para a autonomia em termos legais:
a) Caso a Constituinte aceite os termos rigorosamente votados no Referendo Autonômico, a assembléia legislativa departamental aprova o estatuto apresentado em 02/07 em conformidade com a Constituição Política do Estado, mesmo que esse texto não seja tido como definitivo pelos setores autonomistas. Feito isto, passa pelo crivo do Tribunal Constitucional, por referendo e homologação do Congresso Nacional, que não poderá alterar o seu conteúdo. O processo político perde o seu problema regional mais relevante e se forma o que as posições moderadas em Santa Cruz almejam: o Estado Associado, ou seja, uma acomodação dos quatro departamentos do “sim” em assimetria harmônica do ponto de vista político-administrativo com os departamentos do “não”, que continuariam sob a lógica centralista e poderiam aderir posteriormente. Além disso, fica estabelecida a concordância em permanecer no Estado boliviano, sem risco possível de clivagem e com criação de um fundo de assistência para os departamentos mais pobres;
b) Em caso de veto da Constituinte sobre as autonomias estritamente departamentais, se ameaça cumprir a estratégia de radicalização, assinalando o desrespeito ao Referendo Autonômico. Elaborar-se-á um estatuto a partir do documento apresentado no início de Julio e pelo Informe de Minorias da Comissão de Autonomias da Constituinte. Esta “norma pactuada” será submetida a outro referendo departamental convocado pela Prefeitura. Aprovado, o departamento se declarará automaticamente autonomico. Buscarão alternativas de convivência com o Estado nacional a fim de estabelecer as relações, e são previstas ações judiciais em escala internacional. É chamada de “Plano B” a alternativa de resistência caso em 14/12/2007 não esteja integrada a autonomia na Constituinte. Os conhecidos porta-vozes da prefeitura Carlos Dabdoub (médico, ex-ministro da saúde e articulador político) e Juan Carlos Urenda Diaz (advogado constitucionalista organizador da autonomia pregada por Santa Cruz) entram em ação para explicar o Plano B, na mesma medida em que o justificam em torno do respeito ao voto democrático no Referendo.
Nesse sentido, deve-se assinalar a força das elites de Santa Cruz no aniversário do Referendo. Nesta data comemorativa do referendo – o último dos 3 cabildos do século XXI, agora revalorizados – ocorre também a importante porém duvidosa concertação política entre os indígenas de Santa Cruz e as elites institucionais. Existe, para estas, a constante ameaça da CIDOB (Confederação dos Indígenas do Oriente Boliviano) e do Movimiento Sin Tierra, além dos avanços programados pela lei INRA.
Os movimentos autonômicos começados na década de ’80 ganham agora muita força, já enraizados na sociedade local que participa com entusiasmo na empreitada. Nota-se grande esforço para adesão popular e também continuidade na articulação crucenha desde a greve de fome de Dezembro/2006 de ampla adesão popular, passando pelo auge da crise dos 2/3, os conflitos em Cochabamba em Janeiro/2007 e a ameaça atual de fusão com as autonomias indígenas. O terreno da Constituinte se mostra definitivo para o possível acordo, ainda que irrisórias sejam as possibilidades.
A perspectiva de consenso relega a um plano sutilmente marginal a potencialidade do Movimento Camba, bifurcando as lideranças entre autonomistas orgânicos como Carlos Dabdoub (prefeitura) e Jimmy Ortiz (comitê) ou agitadores livres, de relativa mobilidade e fluência como Sergio Antelo. O movimento pede a dissolução da Constituinte e o deslocamento direto para os pontos radicais do Plano B. Porém eventual aquiescência de falha da constituinte (algo que já é cogitado em editorial de opinião do Los Tiempos, de Cochabamba) deve render novo impulso a essa aspiração, e o incerto futuro de muitos problemas e pouco tempo em vista na Assembléia deve conjeturar uma convergência interessante a este grupo. Mesmo com essa bifurcação, o movimento persiste no ideário local.
Por uma Santa Cruz próxima ao Brasil
Preocupa aos crucenhos a distância no contato com o Brasil. Comumente as lideranças locais se referem como possível aliado ou mediador ao vizinho onde estudaram na juventude, além de registrarem uma preocupação significativa a respeito do plantio e produção de drogas no seu território (80% da droga boliviana vão para o Brasil). Sob a lógica dos interesses nacionais e do invólucro de integridade territorial do Brasil, definitivamente não se deve encarar com temor a Questão Camba em Santa Cruz, por mais que esta caia na teia de secessão. As questões devem se orientar naturalmente ao cuidado sobre eventuais problemas na sua fronteira, mas não há evidências claras no sentido de que algum território brasileiro seja desejado e incorporado. O mais perigoso é o potencial explosivo de um confronto onde interesses venezuelanos e estadunidenses se encontram, em uma democracia frágil e uma história de guerras bastante trágica.
Ainda devemos recordar que se demonstrou um ato de antipatia por parte do governo Morales quando faltou gás para Cuiabá, tal como nos atos do 1º aniversário das nacionalizações hidrocarburíferas e a tomada das refinarias. O governo boliviano menciona problemas operacionais em estação do gasoduto na região de Rio Grande: mesmo não reconhecendo, acobarda-se que o problema na emissão do gás possa ser uma tática do governo boliviano para assustar Cuiabá. Dentro dessa dificuldade no tocante ao gás boliviano seguem perspectivas antagônicas entre os dois lados para compreender o problema: o sistema proposto pela YPFB de “take and take” (inadequação dos volumes de gás e de preço sob valores estáveis) vai de encontro às demandas de Cuiabá, disposta a incluir uma cláusula de segurança para assegurar uma mínima impressão de que há seguridade jurídica e confiabilidade. Por conta da instabilidade na parceria ficou ameaçada a sustentabilidade do sistema energético mato-grossense.
Não obstante, há concordância significativa na agenda do Etanol, impulsionada na região pelas câmaras independentes de comércio exterior e consolidada após parecer positivo da ONU. Apresenta-se ainda oferta brasileira de cooperação para a geração de biocombustível na Bolívia via Embrapa (cultivo e sistema produtivo). Santa Cruz se apresenta engajada e organizada no planejamento estratégico tanto para se precaver em possíveis desastres como no uso de biocombustíveis quanto para questões ambientais. Após a venda da refinaria de Guillermo Elder Bell esse é um ponto interessante para enlace futuro na área de energia entre Santa Cruz e o Brasil.
A influência venezuelana (i) nos US$10 MI investidos nas FFAA’s bolivianas, (ii) na presença técnica acusada nos campos crucenhos pelos locais (iii) e no projeto de ajuda para construção de um porto civil em Quijarro e um quartel em Riberalta assusta e se faz notar rapidamente a divergência entre setores das elites brasileiras contra Hugo Chávez como um possível eixo estratégico para reagir à pressão. As parcas possibilidades de defesa em caso de conflito são uma problemática muito importante para os crucenhos que eventualmente busquem a clivagem. Apesar disso, pode-se esperar nestes a expressão da sua face organizada e guerreira nos campos de Santa Cruz, onde já foi acusada –sem provas– a presença de grupos estranhos à integridade do monopólio legítimo da violência nas mãos do Estado.
Deve-se atentar muito bem à questão norte-americana com o péssimo momento das já incipientes relações entre os EUA e o governo Morales (vide questão ATPDEA sem panorama viável). Além disso, a presença de Philip Goldberg como embaixador –após incursão decisiva no Kossovo– é constantemente acusada pela mídia e por políticos de esquerda como possível suporte para a balcanização do território boliviano, em um cenário de clivagem.
2 Ver o capítulo 2, “O Realismo” em: MESSARI, N. & NOGUEIRA, J. Teoria das Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005
3 Ver projeto “Da Selva à Cordilheira”, parceria do TEMPO PRESENTE com a Urca Filmes: www.tempopresente.org, seção de mesmo nome. Além disso, deve ser acompanhado o projeto “Conjuntura: América do Sul”, uma etapa diferente mas que tem relação umbilical com o projeto anteriormente citado.
Texto: Anaisis Hidalgo Rodríguez - Cuba
Texto: IELA
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Texto: João Gaspar/ IELA
Texto: Elaine Tavares