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Trabalhismo Brasileiro e Populismo: do consenso a uma crítica conceitual

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Por Itamá do Nascimento em 13 de maio de 2025

Trabalhismo Brasileiro e Populismo: do consenso a uma crítica conceitual

Jango, no comício onde anunciou as reformas de base  – Foto:  ACERVO LEMAD/USP

Itamá do Nascimento (i)

O presente texto tem como objetivo discutir, resumidamente, o conceito de populismo e seus limites na interpretação da experiência trabalhista no Brasil. Existem certos conceitos que com o passar do tempo, tornam-se clássicos. São conceitos que ganham força em pesquisas históricas, geográficas, sociológicas, filosóficas, antropológicas etc. No caso do populismo, sua força se mostrou no campo da História e das Ciências Sociais. Trata-se de um conceito amplo em que diversos autores (as) já debateram, seja endossando suas ferramentas teóricas ou criticando sua aplicabilidade no entendimento da realidade.

Irei discutir, especificamente, o conceito de populismo no cientista político Francisco Weffort. Acredito que suas reflexões, presentes na obra “O populismo na política brasileira”, tiveram um relevante impacto na opinião pública e, principalmente, entre o universo intelectual e político. Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), onde ficou até 1994 e saiu direto para o cargo de Ministro da Cultura do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Weffort teve um papel importante na construção ideológica do partido que viria tomar a hegemonia política da esquerda brasileira a partir do processo de redemocratização.

Weffort foi um dos fundadores da Fundação Wilson Pinheiro, antecessora da atual Fundação Perseu Abramo. As duas com o mesmo objetivo: ser uma estrutura política, cultural e intelectual do novo partido que surgia. Defendendo teses como a noção de “nova esquerda”, onde o antigo trabalhismo e o comunismo eram considerados sinônimos de atraso, Weffort participa de um processo amplo que começa a transformar a mentalidade (e consequentemente a práxis) de variados políticos, sindicalistas, artistas e intelectuais.

Formado na Universidade de São Paulo (USP), se tornou doutor em Ciência Política com uma tese chamada “Populismo e Classes Sociais”. Em suma, dentro da sua ampla produção teórica podemos afirmar que Weffort tem como carro-chefe de sua trajetória este conceito que hoje proponho uma reflexão crítica. Se o comunismo, representado institucionalmente por partidos como o PCB e o PCdoB, poderiam ser combatidos pelo conceito de totalitarismo; o trabalhismo tinha o conceito de populismo como seu principal adversário ideológico.

Outrora tradições políticas que hegemonizaram as esquerdas no Brasil do início do Século XX até o golpe militar em 1964, comunistas e trabalhistas se viram contra a parede no contexto em que Weffort cresceu enquanto intelectual orgânico do PT. Totalitarismo e populismo andaram lado a lado com um único objetivo: enfraquecer duas tradições políticas que juntas conseguiram desenvolver a plataforma mais avançada da história do Brasil: as reformas de base, defendidas pelo governo reformista de João Goulart e por extensos setores dos revolucionários comunistas.

Trabalhismo como sinônimo de populismo

Debatendo especificamente o conceito de populismo em Weffort e suas implicações práticas e ideológicas sobre a tradição trabalhista, de viés reformista e nacionalista, defendo a ideia de que suas reflexões buscaram tornar trabalhismo e populismo como sinônimos. Inclusive, misturando figuras como Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Adhemar de Barros e Jânio Quadros no mesmo balaio. E qual o problema deste movimento teórico? O problema é que, ao tratar trabalhismo e populismo como sinônimos na esfera política, Weffort esvazia todo um projeto político ambicioso (ii)  que previa: nacionalização dos setores estratégicos da economia; postura defensiva frente o capital estrangeiro; preocupação com a expansão da educação e saúde aos mais desfavorecidos; democratização do uso da terra etc.

Ele realiza muito bem essa mistura conceitual no texto “Políticas de Massas” de 1963 (modificado em 1965) em que analisa a experiência trabalhista não com essa nomeclatura (utilizada pelos partidários do antigo PTB desde 1945), mas como “populistas” que teriam surgido após a combinação de três fatores: 1) massificação, causada pelo advento da classe trabalhadora na política nacional via processo de urbanização; 2) perda da representatividade dessa classe trabalhadora, agora dominada por manipuladores; 3) líder carismático, responsável direto por colocar em prática tal manipulação (iii).

E se como populismo entendemos um aparato político em que, liderado pelo Estado autoritário e organizador, o líder carismático utiliza as massas para pacificá-las e assim garantir o status quo da classe dominante; logo a experiência trabalhista de 1930 a 1964 (iv) seria resumida a uma mera manipulação de uma massa amorfa e passiva. Segundo o próprio Weffort em setembro de 1963, antes do golpe militar triunfar, assim ele interpreta o movimento iniciado em 1930:

O célebre slogan de Antonio Carlos em 1930 – “Façamos a revolução antes que o povo a faça” – constitui a divisa de todo o período histórico que se abre com aquele movimento e se encerra com o golpe de Estado de 1964. Por força da clássica antecipação das “elites”, as massas populares permaneceram neste período (e permanecem ainda nos dias atuais) o parceiro-fantasma no jogo político (v) .

Ou seja, toda a experiência histórica em que a classe trabalhadora brasileira vivenciou dois grandes partidos políticos (PCB de viés revolucionário e o PTB de viés reformista); a legislação trabalhista, via CLT; empresas estatais estratégicas, como Eletrobras e Petrobras; defesa nas ruas pelas reformas de base, com claro aguçamento da luta de classes; desenvolvimento de uma intelectualidade crítica e orgânica, via instituições como o ISEB é reduzida no termo “parceiro-fantasma” de um jogo político em que o tabuleiro seria organizado por um grande líder manipulador.

Não contente em tentar limitar um período histórico tão fecundo, Weffort continua afirmando que “É desnecessário aqui sobre a manifesta incapacidade de penetração popular dos partidos” (vi) naquele período, mesmo o PCB tendo elegido um senador (Luis Carlos Prestes com mais de 157 mil votos) e várias bancadas Brasil afora nas eleições de 1945 e o PTB tendo saído de 22 deputados federais eleitos em 1945 para 116 em 1962 (vii). Da mesma forma que subestima os partidos políticos do período, mesmo que isso seja contrário aos números, Weffort realiza crítica semelhante aos sindicatos que na verdade mobilizaram “setores minoritários dos agrupamentos sociais”(viii) , desconsiderando a explosão de greves após 1945 e, principalmente, durante o Governo Jango. Como mostra Moniz Bandeira:

Nas principais cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, as greves atingiram quase todos os setores da produção e categorias profissionais, envolvendo não só trabalhadores na indústria de petróleo e petroquímica, mas, também, telegrafistas, radiotelegrafistas, servidores do Estado e da Legião Brasileira de Assistência, ferroviários, carregadores e ensacadores de café, funcionários dos Institutos de Previdência Social, do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, Arsenal de Marinha, Light, serviço de gás etc. Ao longo de 1953 houve 50 greves no Rio de Janeiro. Só em 15 dias de janeiro de 1964 houve 17. (ix)

Esse cenário descrito foi observado nos grandes centros urbanos. No campo, a explosão se repetia, como afirma o autor:

E as greves não se restringiram às cidades. Alcançaram o campo. Em novembro de 1963, 4 dos 200.000 trabalhadores agrícolas, que paralisaram os engenhos de açúcar do município do Jaboatão (Pernambuco), tombaram em tiroteio com a polícia. Em fevereiro, a greve se alastrou por todo o Estado e abrangeu 300.000 trabalhadores agrícolas, muitos dos quais, armados com paus, foices, peixeiras, velhas espingardas de caça e outros petrechos, interditaram as estradas de acesso aos engenhos e às usinas, lançando sobre elas tambores de óleo. (x)

Como podemos perceber, as principais teses de Weffort sobre o período histórico em questão não se sustentam após uma breve análise mais acurada. Porém, encerrando as falsificações deste consagrado autor da Ciência Política nacional, segue sua avaliação sobre o balanço político do populismo (sinônimo de trabalhismo): “Se nos lembrarmos que desde 1950, com o governo Vargas, o nacionalismo vem se tornando uma espécie de ideologia oficial, constataremos, com surpresa, que seu único resultado de vulto é o monopólio estatal do petróleo” (xi). Depois de associar trabalhismo e populismo, desconsiderando as diferenças conceituais de ambos, e rejeitar todos os avanços do período histórico em debate, o autor simplesmente limita a criação da Petrobras como a única vitória prática do trabalhismo desde 1950.

Weffort esquece, talvez propositalmente, que a própria vitória eleitoral de Vargas em 1950 já foi um “resultado de vulto” tendo em vista que já durante a campanha eleitoral um projeto nacionalista era ardorosamente defendido. Basta analisarmos os discursos durante a campanha e que não terei condições aqui de detalhar (xii) . A fundação da Eletrobras, realizada oficialmente durante o Governo Jango mas com projeto iniciado durante o Segundo Governo Vargas, não seria outro “resultado de vulto”? As vitórias eleitorais de Jango como vice-presidente nos pleitos seguintes ao suicídio de Vargas, defendendo o mesmo projeto nacionalista, também não seriam considerados “resultado de vulto”? O próprio suicídio de Vargas, retardando um golpe militar, não seria outro “resultado de vulto”? Ou talvez “resultado de vulto” para Weffort e tudo que ele representou nas Ciências Sociais, seja participar de um governo nos anos 1990 que foi sinônimo de privatização, incluindo de estatais estratégicas do período 1930-1964 como a Vale do Rio Doce.

Do consenso a uma crítica conceitual

Muitos aspectos acima mencionados, poderiam ser facilmente desenvolvidos. Infelizmente, os limites deste formato de texto não permitem tal empreitada. De qualquer forma, o texto convida o autor a ler os escritos de Francisco Weffort, comparar com a realidade concreta e refletir sobre a utilidade prática do conceito de populismo na análise da tradição trabalhista. O objetivo do texto foi introduzir e incentivar o aprofundamento dos leitores sobre um tema que considero central: o uso do conceito de populismo e seu impacto na historiografia nacional, criando falsificações e estereótipos sobre uma fecunda tradição política nacional.

Ademais, se o trabalhismo é uma tradição política reformista, nacionalista e anti-imperialista que, mesmo com suas diversas contradições, contribuiu com o aguçamento da luta de classes no Brasil e ajudou numa conscientização da classe trabalhadora; populismo em Weffort seria nada mais que um insulto disfarçado de teoria política e aplaudido por um ambiente intelectual superficial com nenhum compromisso com as históricas bandeiras dos desfavorecidos.

Questionar o consenso populista, inclusive alargando o debate sobre outros autores que buscam alimentar tal receita teórica, é um importante exercício intelectual das novas gerações a ser desenvolvido. Só assim poderemos, criticamente, disputar a memória de personalidades e projetos políticos preocupados verdadeiramente com a autonomia do Brasil e de seu povo.

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Notas

i  Sociólogo e Historiador. Mestre e Doutorando em Sociologia (PPGS/UFPE).
ii  Dentro da realidade brasileira, marcada por um violento capitalismo de tipo dependente e agroexportador, um projeto verdadeiramente reformista acaba tornando-se ambicioso e causando atrito frontal com as classes dominantes locais.
iii  WEFFORT, F. O populismo na política brasileira: Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 26, 2003.
iv   Exceto os governos de Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, não pertencentes a esta tradição política.
v    WEFFORT, F. O populismo na política brasileira: Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 13, 2003.
vi   WEFFORT, F. O populismo na política brasileira: Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 18, 2003.
vii  DELGADO, L. A. N. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: LTr, p. 182, 2011.
viii WEFFORT, F. O populismo na política brasileira: Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 19, 2003.
ix   BANDEIRA, M. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, p. 154-55, 1983.
x   BANDEIRA, M. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, p. 155, 1983.

xi  WEFFORT, F. O populismo na política brasileira: Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 41, 2003.

VARGAS, G. Getúlio Vargas. Brasília: “Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.

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