Início|Sem categoria|Um genocídio, um etnocídio e um memoricidio praticados contra os povos latino-americanos

Um genocídio, um etnocídio e um memoricidio praticados contra os povos latino-americanos

-

Por IELA em 15 de janeiro de 2015

Um genocídio, um etnocídio e um memoricidio praticados contra os povos latino-americanos

Um genocídio, um etnocídio e um memoricidio praticados contra os povos latino-americanos –  Por Waldir José Rampinelli
A história da destruição cultural da América Latina: Da conquista à globalização –  de  Fernando Báez

09.12.2013  – A conquista da América Latina no século XVI consistiu, não apenas na tomada do território e na expropriação de suas riquezas, mas no extermínio de determinados grupos, na destruição de culturas e na forçosa obrigação do esquecimento de seu passado, imposto pelos europeus aos povos originários. Por isso, três grandes crimes podem ser tipificados, sendo eles o de genocídio, o de etnocídio e o de memoricídio.
O genocídio foi cometido contra certos grupos étnicos, quer eliminando-os pelo trabalho escravo ou compulsório, quer assassinando-os por sua resistência armada aos dominadores. Tzvetan Todorov, se contrapondo a maioria dos historiadores, afirma que esta invasão foi um verdadeiro genocídio, chegando a dizer que nenhuma das grandes matanças do século XX pode ser comparada à hecatombe do XVI. Por sua vez, Marx mostra como se deu a acumulação originária a partir da conquista das jazidas de ouro e de prata das Américas; da escravização, do extermínio e do sepultamento de indígenas e africanos nas minas de nosso continente; e, finalmente, apresenta as razões do saque e da expropriação das riquezas que permitiram que a etapa de produção capitalista surgisse no horizonte da história mundial, cavalgando a Revolução Industrial.
Já o etnocídio é o resultado do roubo econômico que exigiu a modificação das estruturas mentais dos subordinados, negando “aos indígenas o direito à terra que já ocupavam e seus recursos naturais, o direito ao uso de sua própria língua e educação e o direito de fazer sua história coletiva com autodeterminação” (BAEZ, 133). Este desenraizamento cultural impôs a decadência dos idiomas, o preconceito contra a tradição e a negação da história. Se o termo genocídio nos remete à ideia de liquidação de uma determinada “raça”, o etnocídio nos mostra a destruição sistemática dos modos de vida, de cosmovisão e de pensamento de pessoas distintas. Enquanto o genocídio elimina o Outro por ser intrinsecamente mau, o etnocídio, pelo contrário, impõe ao ser que é distinto uma mudança na perspectiva de que ele seja melhorado e transformado. Frei Juan de Zumarraga, na cultura asteca, e Frei Diego de Landa, na maia, foram os queimadores de livros e destruidores de arte destes povos, pensando em torná-los mais humanos.
O memoricídio, por sua vez, consiste na eliminação de todo o patrimônio, seja ele tangível ou intangível, que simboliza resistência a partir do passado. Não apenas os deuses dos povos originários foram mortos, como as pirâmides superpostas por igrejas católicas, os templos pagãos trocados por mosteiros cristãos, os antigos palácios substituídos por mansões coloniais e as chinampas que abasteciam o mercado interno mudadas por grandes plantações voltadas para o externo.. “Um povo sem memória”, afirma Báez, “é como um homem amnésico: não sabe o que é nem o que faz e é presa eventual de quem o rodeia. Pode ser manipulado” (Báez, 288). Controlar o passado é a melhor forma de planejar o futuro. Por isso, as elites culturais, subordinadas aos centros hegemônicos metropolitanos, aproveitaram-se da amnésia para abandonar qualquer tipo de resistência. A transculturação ou substituição da memória foi executada com perfídia em três etapas: a) pelo estilhaçamento da memória subjugada, aparecendo nas perdas e nostalgias; b) pela incorporação forçada da cultura dominante; c) e, pela elaboração, por parte dos sobreviventes, de estratégias de resistência e integração assinaladas pelo grau de contato (Báez, 37).
Se no passado as obras culturais foram derretidas e destruídas, mais tarde passaram a fazer parte do tráfico de bens artísticos do continente, sendo superadas em valores apenas pela venda de armamentos e pelo comércio de entorpecentes. Por conta disso, os museus e as bibliotecas das principais metrópoles do mundo aumentaram os seus acervos e ampliaram o seu número de documentos raros, chegando ao ponto de trabalhos simbólicos dos povos originários figurarem em suas exposições, como o cocar de Tupinambá, a coroa de Moctezuma, o Pop Wuj (que é o “Livro dos Acontecimentos” dos maias) e a “carta ao rei de Espanha” de Felipe Guamã Poma de Ayala. “Mais de 60% da arte latino-americana pré-hispânica que sobreviveram estão fora de suas respectivas regiões.”.
Os Estados Unidos efetuaram um saque cultural na América Latina, para tanto utilizaram-se dos seguintes mecanismos: a) legitimação do tráfico ilegal de bens culturais pertencentes às instituições públicas, privadas e de grupos de colecionadores; b) destruição de obras de arte por meio de invasões armadas, como as ocorridas em Cuba, no Haiti e no Panamá; c) utilização da guerra ideológica anticomunista para estimular a perseguição e a destruição do elemento cultural adverso; d) debilitamento das concepções culturais latino-americanas de resistência ao modelo de mundo estadunidense; e) e contribuição para o etnocídio de comunidades indígenas com o objetivo de controlar suas reservas energéticas (Báez, 243).
Na América Latina, cerca de 80% dos museus e sítios arqueológicos sofreram algum tipo de espoliação, sendo o patrimônio histórico um bem não renovável. Daí que o dano causado à identidade e ao acervo de nossos povos é incalculável. A maioria de nossas peças roubadas – 70% – estão em poder de instituições reconhecidas na Europa e nos Estados Unidos que por sua vez se negam a devolvê-las. Alegam, vergonhosamente, que lá estão mais bem cuidadas. Outras fazem parte de coleções particulares, desconhecidas do grande público, como é o caso de Minor Cooper Keith (1848-1929), o homem que construiu o império da United Fruit Company e reuniu mais de 15 mil objetos recoletados em toda a região centro americana. Todo este saque cultural exige, urgentemente, que se faça um inventário para se apurar um levantamento exato daquilo que foi surrupiado de nosso continente. Chegou-se a criar a profissão ilegal do huaquero, geralmente um nativo que se apropria de um bem cultural repassando-o ao traficante por um preço irrisório que o revende ao colecionador por uma soma exorbitante.
Estratégia semelhante adotou Washington quando invadiu o Iraque, queimando milhares de livros da Biblioteca Nacional de Bagdad e de outras do interior do país; roubando cerca de treze mil obras de arte do Museu Nacional Arqueológico da capital daquele país; pilhando sete mil sítios arqueológicos, dos quais levaram cerca de 150 mil peças de arte antiga. Não bastasse todo este monstruoso memoricídio, universidades, academias, clubes e escolas converteram-se em ruínas deixando milhares de estudantes sem seus locais de estudos e pesquisas.
As ditaduras civis ou de segurança nacional que marcaram grande parte do século XX em toda a América Latina também exerceram um papel fundamental na dominação cultural e na destruição de arquivos e documentos relacionados com a repressão, buscando duas estratégias: a) evitar o julgamento por conta dos crimes de violação aos direitos humanos; b) negar o direito das vítimas às indenizações. As ditaduras não reprimiram a cultura apenas para submeter um setor e subordiná-lo aos seus interesses, mas tratou-se de uma depuração sistemática e organizada com a finalidade de modificar a memória histórica. Na Argentina, o almirante Emílio Massera, integrante da primeira junta militar que deu o golpe de Estado em 1976, afirmou que naquele país se tratava de “uma guerra das culturas e das contraculturas” (Báez, 167).
Diante deste quadro de destruição massiva dos bens culturais da América Latina, sejam eles tangíveis ou não tangíveis, este livro faz um chamamento a lutar contra o genocídio, etnocidio e o memoricídio.

Últimas Notícias