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Um retrato da Bolívia

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Por IELA em 30 de novembro de 2006

08/11/2006

Por elaine tavares – jornalista

É cedo na grande La Paz. Devagar, os pequenos comerciantes de rua começam a abrir suas caixas de lata, onde guardam as mercadorias durante a noite. O frio dos Andes é cortante nas primeiras horas da manhã, mas, depois, o sol vai aquecendo a vida, embora as mulheres autóctones permaneçam com seus longos xales de pura alpaca. Dê o tempo que dê, elas não mudam a indumentária. Saias rodadas, que aumentam as ancas – símbolo da fertilidade e da beleza originária – chapéu preto e mantos de lã. E são elas, na maioria das vezes, as que garantem o sustento da casa com o trabalho no mercado informal. Muitas vieram do interior do país buscando vida melhor. “A gente não tem terra e lá não tem trabalho”, dizem. Ali, nas ruas, pelo menos conseguem dar jeito na comida dos filhos.

O trabalho informal na Bolívia não é tão visível quanto na Venezuela. Em La Paz, se concentra nas imediações da igreja de San Francisco, onde também está o mercado de artesanato. Também é possível se ver algumas bancas ao longo do Prado, uma larga e longa avenida que corta a cidade, ou em determinados pontos nos bairros mais pobres. Mas, no centro histórico da cidade, como na região da Praça Murillo, quase não se apresentam os ambulantes. O que se vê – e é curioso – são pessoas sentadas em frente a velhas máquinas de escrever. Elas fazem o serviço de preenchimento de guias, ofícios e até escritura de cartas.

Pela rua do comércio, que é uma espécie de calçadão central, a cidade fervilha. A gente da chamada nova Bolívia observa o governo Evo Morales com muitas reservas. E não é sem motivo. Porque, afinal, ao longo de toda a vida republicana deste povo, muitos foram os que se elegeram dizendo que iam mudar a vida de todos. Também muitos foram os tiranos, mas não houve um que não fosse lançado fora quando necessário. As gentes sempre souberam quando era hora de se rebelar e virar o jogo. Foi o que aconteceu agora, na história recente, em 2004, na caída de Sánchez de Lozada. Por isso, entre os mais pobres, não se vê aquele fervor como o que se observa na Venezuela de Chávez. Os bolivianos são mais céticos. “Está indo bem até agora”, diz a vendedora de chicha morada – uma bebida típica feita de milho – Marisol Oblitas. Abrigada do sol do meio-dia numa tenda de plástico onde oferece seu produto, ela analisa o governo de Evo com a perspicácia de quem é letrada em coisas de estado. “A gente vê que ele tem boa vontade, mas está muito mal assessorado. A gente sabe que não é do dia para a noite que se muda um país, por isso estamos vendo onde isso vai dar. Penso que o presidente precisa dar mais atenção para a questão do emprego. Tem muita gente indo embora da Bolívia porque não tem como trabalhar. Eu mesmo gostaria de ter um emprego fixo e não ficar aqui vendendo chicha. Vamos ver como vai ficar”.

Marisol sabe o que diz. Em frente ao setor que libera passaportes a fila é imensa. Centenas de pessoas deixam o país a cada dia. E não é só agora durante o governo de Evo. Faz muito tempo que é assim. A migração é um fenômeno em toda a América Latina. Em alguns países, e a Bolívia está nesse rol, são os migrantes os responsáveis por grande parte do dinheiro que circula. É que, dos países onde buscam abrigo, eles enviam dólares para os parentes que ficaram e, a partir deles, fazem girar a economia nacional. “Eu não tenho onde trabalhar. Preciso crescer, ser alguém”, diz a bonita aymara de 25 anos, Luiza Huilka, na fila há três dias esperando o passaporte. Quer arriscar a vida na Espanha, que é para onde vão centenas de bolivianos todos os anos. Ela acredita que Evo Morales vai fazer mais pelo povo. “Ele é um de nós”, diz. Mas, ainda assim, não pretende ficar para ver.

A nacionalização do gás

É segunda-feira, dia 30 de novembro de 2006. Nada nas ruas diz da revolução que acontece no interior dos centros de poder bolivianos. Só os jornais gritam a manchete em letras garrafais. “Fechado o acordo com as petroleiras”. Depois de várias semanas de completo terrorismo midiático, no qual as grandes redes e jornais falavam de uma fuga em massa das empresas petroleiras da Bolívia, o governo logra um acordo histórico. As doze empresas estrangeiras que exploram o gás no país e que vinham fazendo declarações bombásticas sobre juízos na justiça, indenizações milionárias por quebra de contrato etc.., cordialmente assinam novos contratos em que a parte do leão da exploração e comercialização do gás fica com o Estado boliviano. Não há fugas, nem processos. A oposição se obriga a declarar que o acordo é mesmo muito bom para a Bolívia que vai ficar com quase 85% da renda do gás. As vozes que antes vociferavam contra o “autoritarismo” do governo boliviano, se calam diante do pacífico acordo. Evo Morales fala à nação dizendo que agora não haverá mais cláusulas de confidencialidade nos contratos, o que significa que todo mundo vai poder saber o que dizem as “letras pequenas”.

Aqueles que até então se faziam donos dos recursos naturais da Bolívia, passam a condição de sócios. É outra relação. Há muito para avançar, diz Morales, mas vai ser pouco a pouco. Mais de um bilhão de dólares devem ser investidos no setor e o governo já pensa até em discutir um projeto de industrialização, buscando oferecer mais empregos para o povo. “Essa era a promessa principal da campanha do Evo. Por isso derrubamos Lozada. Por isso votamos por uma nova Bolívia”, diz um militante mais exaltado na Praça Murillo. Ele é um dos que tem muita esperança de que as coisas realmente mudem. “A Bolívia é um país riquíssimo em prata, estanho e gás. Temos recursos e a gente é miserável. Isso precisa mudar. Penso que o presidente vai fazer a riqueza da Bolívia se estender para todos”.

Dentre todas as petroleiras a que mais relutou em aceitar o acordo foi a Petrobrás, que leva o selo do Brasil, embora grande parte da empresa já não esteja mais no controle do governo brasileiro. Na verdade, ela se comporta, na Bolívia, como uma típica transnacional e talvez por isso seja tão antipatizada pela população. Não é à toa que, agora, a empresa está realizando uma campanha massiva de mídia, mostrando os projetos sociais que desenvolve na Bolívia. Ainda assim, fechado o acordo, as informações são desencontradas. O governo boliviano insiste em dizer que a Petrobrás vai prestar serviços ao país, já a empresa afirma que isso não está em questão, mantendo uma posição arrogante, apesar de ter capitulado ao acordo. Resta ao Congresso boliviano ratificar todos os contratos e isso deve ser tranqüilo porque, nem mesmo a mais ferrenha oposição consegue enxergar furos no acordo. “É bom para a Bolívia”, dizem os deputados do PODEMOS (partido de oposição).

A revitalização das minas

E é nas entranhas da terra que se esconde uma outra batalha. Naqueles dias de começo de novembro de 2006, na região mineira da Bolívia, os trabalhadores amanheceram armados. Muitos encheram os bolsos de dinamite e se dispunham a atos extremos caso o governo decidisse ocupar as minas, no processo de nacionalização divulgado pelo presidente. Por incrível que possa parecer, os mineiros estão na defesa das multi e transnacionais, não querendo permitir que as minas passem para as mãos do governo. O maior rechaço é dos mineiros da Mina Porco, a qual era do ex-presidente Sanchez de Lozada. Como a maioria dos trabalhadores do setor está organizada em cooperativas – são 56 mil mineiros nessa condição – há o medo de perder o controle do processo de produção, daí a relutância em aceitar uma parceria com o governo. “Se todos passam a ser trabalhadores públicos, isso significa o fim das cooperativas”, dizem.

Em função da crise que se avizinhava e buscando evitar novos conflitos como o da região de Huanuni, onde em outubro deste ano vários trabalhadores acabaram mortos no confronto entre mineiros assalariados e cooperativados, o governo de Evo Morales decidiu adiar o processo de nacionalização das minas. Assim, enquanto todos esperavam que, fortalecido pela vitória diante das petroleiras, ele anunciasse a decisão, o que aconteceu foi o anúncio do que o presidente chamou de “revitalização do setor”. A primeira medida foi a reativação da COMIBOL (Corporación Minera de Bolívia) e é a partir dela que serão contratados os trabalhadores para a extração do estanho das minas de Huanuni. Já no dia primeiro de novembro, o governo anunciava o fechamento de acordo com várias cooperativas e o investimento de 10 bilhões de dólares no setor. No lado dos assalariados houve aprovação. Segundo o presidente da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores em Minas da Bolívia, Próspero Mamani, esta foi a melhor decisão, pois garante salário digno aos trabalhadores e evita o confronto desnecessário. “De qualquer forma estaremos vigilantes para que os recursos naturais do país sigam administrados pelo Estado”. É na região de Huanuni que está uma das maiores reservas de estanho do mundo.

Agora, diz Evo Morales, a prioridade vai ser para o fechamento definitivo dos acordos do gás. A questão das minas vai ficar para mais tarde e todo o processo vai se amparar em quatro pilares: A COMIBOL, do Estado; as Cooperativas que reúnem mais de 56 mil mineiros, a Associação dos Mineiros Medianos e a Câmara Nacional da Mineria , estas duas reunindo um número menor de trabalhadores. A idéia é trabalhar com a normatização do setor no que diz respeito a extração, transporte e tributação que, segundo o ministro Guillermo Dalence, “está uma bagunça”.
A política de assistência

A propaganda da televisão dá conta das mudanças na política boliviana. Um menino, indígena, caminha por entre os enormes prédios coloniais do centro de poder de La Paz. Ele olha, extasiado, as enormes construções. Logo, passa pela porta do palácio presidencial. Vai entrando, sem que ninguém o detenha. O seu olhar é de assombro e encantamento. Ele perscruta as paredes, os quadros, vai entrando a passos lentos. A câmera mostra os pés pequenos, calçados com um chinelo velho. O bonezinho na cabeça, meio virado, dá um ar de picardia. Então, ele abre lentamente uma porta e espia. Lá dentro está o presidente Evo Morales em sua mesa de trabalho. O homem sorri e o chama para sentar em frente a ele. Então, sentados, o pequeno aymara e o presidente estabelecem um conversa alegre e fraterna. “Evo promete, Evo cumpre, Bolívia Cambia”, fecha o institucional.

É assim que o governo boliviano mostra o início do projeto “Juancito Pinto”, uma espécie de bolsa-escola. A partir de agora, todo garoto ou garota que esteja cursando da primeira até a quinta série do ensino fundamental terá direito a 200 bolivianos, o equivalente a 30 dólares. Com isso, pretende o governo, vai ser possível manter as crianças na escola. Para Juana Rodriguez, que tem três filhos na escola e mora no bairro Chamoco Chico, esse dinheiro é uma benção. “Agora vamos ter dinheiro para comprar o material escolar e também para comer”. Segundo Evo Morales, este projeto se configura como uma medida de emergência. “Com a entrada de recursos da nacionalização do gás e a revitalização do setor mineiro a Bolívia vai poder desenvolver sua indústria e isso significa trabalho. As medidas assistenciais caminham junto com as estruturais”. Para Mário Duran, morador da cidade de El Alto, o “juancito” é só um salva-vidas. “Não podemos ser rentistas, viver do dinheiro do Estado. O governo tem que gerar emprego”.

Os pontos de estrangulamento

Mas nem todas as notícias são boas. No dia três de novembro os jornais de La Paz anunciaram a ida de uma tropa de soldados bolivianos para o Haiti, participar da chamada “força de paz”. O tom do discurso midiático era o mesmo que foi usado no Brasil. Embarcavam os bolivianos para ajudar os haitianos. Mas, sabem-se muito bem a quem servem as forças militares no país de Toussaint Louverture: aos interesses estadunidenses que ficam se escorando nos “países gerentes”, para evitar mais desgaste do que o que vive no Iraque. Foram as forças estadunidenses que desestabilizaram o Haiti, agora usam os “exércitos amigos” para fazer o serviço sujo. Na Bolívia, nenhuma voz se ergueu para condenar a decisão.

Além disso, na mesma semana, o embaixador estadunidense, Filip Golbert, saiu-se com a proposta de trazer para a Bolívia uma tropa de marines para realizar “serviços comunitários”. Segundo ele, as negociações já estariam adiantadas e também estaria prevista a construção de uma base militar no país. Mas, ao contrário do envio das tropas para o Haiti, essa notícia rendeu confusão. Dirigentes ligados ao partido de Evo Morales, Movimiento al Socialismo, logo deram entrevistas dizendo que aquilo era impensável. “Isso não se justifica politicamente, nem ideologicamente”, dizia o deputado Javier Zabaleta, do MAS. Por outro lado, fontes ligadas ao governo admitiam que, há tempos, os governos bolivianos têm aceitado recursos dos EUA para o que chamam de campanha anti-drogas. Só no ano passado foram mais de 90 milhões de dólares.
A coca como fronteira frágil

Este é um tema bastante polêmico na Bolívia. Com uma maioria de população autóctone que faz o uso regular da folha, o assunto coca não tem como ficar de fora das preocupações do governo. No dia da sua posse, o presidente – que foi dirigente cocaleiro – deixou bem claro aos plantadores da folha sagrada que esta é uma cultura a ser respeitada. “Não haverá a coca zero”, insistiu, referindo-se ao desejo dos estadunidenses de que ninguém mais pudesse plantar a folha na Bolívia. Mas, fez um acordo com os agricultores. Cada plantador terá direito apenas ao “cato de coca”, ou seja, uma área de 40×40 metros. Nada mais que isso. Com essa extensão ficaria caracterizado o uso para o consumo próprio. Não há quem não masque a coca na Bolívia, até porque, a folha, além de ser sagrada, serve para enganar a fome e ajuda as pessoas a suportarem a altura.

Nas regiões da Yunga e Chapare, onde se concentra o plantio, fala-se em mais de 27 mil hectares de plantação, embora o chamado cultivo legal só seja permitido até 13 mil hectares. O certo é que há muitos agricultores que ficaram fora do acordo e não aceitam plantar apenas o cato de 40×40. Não é à toa que pela região andam as ditas forças anti-drogas e muitos conflitos já se registraram, inclusive o seqüestro de um vice- ministro – que durou um mês – pelos cocaleiros que não fazem parte da Federação. Isso mostra o quanto a política da coca ainda não está solidificada e segue apresentando muitos conflitos nas duas regiões.

Não é sem razão que as notícias de uma base militar e tropas estadunidenses despertem um aviso de alerta. A tal base seria consolidada no espaço de plantio da coca e os “trabalhos comunitários” também. Para quem acompanha o processo de intervenção estadunidense na Colômbia – sob o argumento de combate ao narcotráfico – fica fácil reconhecer na oferta “humanitária”, a conhecida “guerra de baixa intensidade” que o governo dos Estados Unidos promove na região. Por conta de uma invenção que não saiu da cabeça do povo originário, agora, declara-se a guerra ao plantio da coca. “Não foram os indígenas que inventaram a cocaína. A folha é sagrada para nós. Isso tem de ser respeitado”, dizem os cocaleiros.

Nos corredores palacianos fala-se a boca pequena que há uma espécie de acordo entre a mídia, o governo e as transnacionais – onde se incluem então os interesses estadunidenses – e que esse acordo se expressa nos projetos via USAID, a Agência Internacional de Desenvolvimento dos Estados Unidos. Esse braço econômico e político se espraia a partir de projetos ligados a Organizações Não-Governamentais, sobre os quais os governo não tem controle. A ação das ONGs financiadas com dinheiro estadunidense é um ponto frágil deste mapa de poder na Bolívia. Tampouco é por acaso que esses projetos se concentrem nas regiões cocaleiras e na cidade de El Alto, espaço primeiro da rebeldia boliviana. Não vai ser fácil para o governo boliviano manejar esse tabuleiro.

A terra madre

Além dos problemas relacionados ao plantio da coca, o governo de Evo Morales enfrenta outra frente de luta e reivindicação. São os pequenos e médios camponeses que batalham por mudanças na Lei de Terras, que já leva 10 anos e não se cumpriu. Esta lei permitia sanear as terras agricultáveis, mas, passado todo esse tempo, sequer 15% conseguiu ficar pronta para produzir. O maior problema se concentra no ocidente boliviano, visto que no oriente abundam os latifúndios da soja. Praticamente mais de 60% das terras estão com a monocultura e é grande a presença de fazendeiros brasileiros. Algumas línguas afiadas do setor intelectual boliviano acusam o vice- presidente Álvaro Garcia de manter “boas relações” com os latifundiários enquanto os pequenos agricultores ficam a ver navios. “Ele funciona como um alvarito-mágico. Acorda com os grandes”, dizem, aludindo à figura de uma varinha-mágica que tudo apascenta.

O certo é que a tradição de luta do povo boliviano se expressa muito rapidamente, para além das vontades governamentais. Assim, reivindicando mudanças na lei, exigindo expropriações, distribuição de terra e investimento para os pequenos produtores, centenas de camponeses saíram em marcha desde Santa Cruz de la Sierra até La Paz. Devem chegar ao centro do poder político – o Congresso – no início de dezembro e exigem que os deputados tomem uma posição. A oposição, caracterizada pelo PODEMOS, acusa o governo de estar promovendo a marcha. Mas, na verdade, esta é mais uma ação autônoma, de franca rebeldia, das gentes da Bolívia, sempre dispostas à luta pelo que consideram os seus direitos. E lá, no ocidente, a terra é um valor inestimável. Vencer a monocultura, garantir o abastecimento interno e gerar empregos no campo faz parte das promessas do MAS. Agora é ver como se comporta mais essa queda de braço. O povo não fica passivo e tampouco está cooptado. Como já vimos lá no início da reportagem, a posição diante do governo é de uma cética esperança. “Se não faz o que prometeu, derrubamos”, dizem os trabalhadores.

A constituinte re-fundando a nação

Enquanto todos esses pontos de tensão vão se fazendo e desfazendo ao longo dos quase nove meses de governo, na cidade de Sucre, capital institucional, uma outra batalha política, igualmente titânica, se faz. É o trabalho da Assembléia Nacional Constituinte, chamada para “re-fundar o país”. Apesar de o Movimiento al Socialismo (MAS) ter a maioria dos constituintes, a oposição tem feito seus estragos. Cenas de agressão já foram protagonizadas e expressões visíveis de racismo também apareceram. Tudo isso porque na conformação da Assembléia, a maioria é de povo originário, trabalhadores, lutadores sociais e afro-descendentes, gente que, até então, não tinha tido a chance de estar numa posição como essa.

Por conta destes conflitos muito pouco dos trabalhos conseguiu avançar. Na última semana a batalha foi pela formação de comissões temáticas. Até agora, os constituintes já deliberaram por quatro grandes cenários de discussão: Os princípios e valores constitucionais, direitos e garantias; o Estado, sistema de governo e reformas políticas; a organização territorial e autonomias e o modelo de desenvolvimento. Mas, apesar de deliberados os temas, quase nada caminhou.

O fato é que não vai ser fácil mudar a cara do país, embora a participação popular seja firme e intensa. São muitos os atores sociais em disputa. O primeiro deles são os partidos, organizações políticas, e o Estado. Depois, aparece o grupo das organizações corporativas, setoriais e movimentos sociais. O terceiro grupo é o das Organizações Não-Governamentais, intelectuais e propostas particulares. Cada um desses setores tem apresentado propostas e tudo isso precisa ser sistematizado e discutido. A idéia é fechar os trabalhos em um ano, mas pode ser que ultrapasse o prazo.

Entre os deputados constituintes – na maioria – se percebe a grande vontade de mudar a forma como o Estado se organiza, dando-lhe uma cara popular e participativa. Mas, também é possível perceber uma certa fragilidade no que diz respeito a um projeto global de nação. Cada deputado, eleito pelas comunidades ou grupos sociais, tem suas demandas específicas e vai ser necessário muito trabalho político para articular todas essas necessidades. Re-fundar a Bolívia como uma república livre, soberana e inter-cultural, baseada na autodeterminação de seus povos vai ser uma tarefa gigantesca, num país ainda muito marcado pelo preconceito e pelo racismo.

Os desafios para o futuro

Estes são apenas alguns dos aspectos de uma “mirada” sobre a nova Bolívia. Há muito caminho para percorrer. Reorganizar a polícia e o exército sob novas bases, por exemplo, já que a formação do aparato militar é toda baseada na Escola das Américas. O poder judiciário, que ainda está na mão de uma maioria conservadora, fruto do passado, também precisaria de mudanças reais. Outro tema em pauta – e bastante polêmico – é o processo de racialização da política. Declarações racistas – de ambos os lados – estão se tornando comuns e isso pode provocar uma divisão perigosa. “Há que se pensar em construir uma nação para todos, sem que haja uma guerra étnica”, diz Mário Duran, morador de El Alto.

Assim vai caminhando a Bolívia, entre avanços e recuos. E, com ela, vai boa parte da esperança de uma Abya Yala verdadeiramente soberana, onde o povo autóctone e os novos filhos da terra possam viver em harmonia.

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