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A bolsa ou a vida

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Por IELA em 14 de julho de 2020

A bolsa ou a vida

Não é a primeira vez que nos vemos diante da disjuntiva entre a bolsa ou a vida, agora entre manter a economia ou combater a pandemia. De comando de ladrão que intima sua vítima, o “a bolsa ou a vida” já vinha se impondo como política antissocial com a hegemonia das políticas comandadas pela troika (OMC, BM e FMI) em que o superávit fiscal deveria ser garantido com a regressão dos direitos sociais. Com isso, a previdência social deixou de ser previdente e destinada às grandes corporações segundo as regras do mercado, esse deus que governaria tudo. Os sistemas de saúde tiveram o mesmo destino. Nos países da periferia uma suburbanização de grandes proporções demográficas gerou o grande fenômeno sociogeográfico contemporâneo, o das periferias urbanas, onde a precarização das condições de vida não as torna nada atrativas para os grandes investimentos necessários em saneamento básico, saúde, educação, habitação e cultura.
Hoje, 7 de cada 10 habitantes urbanos do planeta estão na África, na Ásia, na América Latina e Caribe. E, sabemos, as condições em que vivem essas populações da periferia da periferia não é bem o urbano que nos foi prometido. E não só as populações sub-urbanizados, precarizadas, pois vivemos hoje no mundo o paradoxo de, apesar da explosão da desruralização-suburbanização nos últimos 60 anos, a população rural do mundo, em 2020, ser maior, em termos absolutos, do que era em 1960 (1.8 bilhões de habitantes, em 1960, para aproximadamente 3.6 bilhões em 2020). 
Esse quadro implica um enorme desequilíbrio no metabolismo planetário. Afinal, a demanda de matéria e energia para saciar as necessidades básicas e da fantasia implica uma enorme pressão sobre as condições materiais de produção/reprodução da vida – a terra, a água, a vida, a fotossíntese, o ar puro – que não são fruto da criatividade humana e de seu trabalho. E não separemos as necessidades básicas daquelas que derivam da fantasia, pois ninguém come a fórmula química das proteínas e das calorias ou sacia a sede simplesmente com o H²O da água, mas sim com as necessidades tal como são socioculturalmente elaboradas. Os indianos têm lá suas razões para não comer a vaca que lhes é sagrada, do mesmo modo que em muitas sociedades não se come cachorros mesmo tendo necessidade de proteínas. 
Sabemos como as necessidades de alimentação vêm sendo manipuladas por grandes corporações que fabricam desejos e nos embalam com suas embalagens sedutoras que fazem os gostos serem mais gostosos, assim como nossos pais e avós um dia nos deram comida mandando abrir a boca para passar o aviãozinho ou o trenzinho. Ninguém come sem fantasia, deixemos isso claro, e o problema passa a ser quem a maneja, quem conforma nossos desejos e gostos. Segundo o historiador inglês E. T. Thompson, estamos entre as primeiras gerações da história da humanidade em que os grupos de socialização primárias – a família e a comunidade de vizinhança – perderam a prerrogativa de conformar os gostos e os desejos de seus filhos.
Em 1960 tínhamos 1.4 bilhões de habitantes urbanos, segundo a ONU. Hoje temos aproximadamente 4 bilhões de populações não-rurais, segundo a mesma fonte. Praticamente triplicou essa população que, separadas metabolicamente das condições de reprodução da vida, dependem da mediação não do mercado, como se diz, mas das grandes corporações que mediam a relação entre nossos desejos e a sua realização. Para isso, a mídia se torna essencial. Com tanto produto ocupando as gôndolas do supermercado há que se tomar todas as providências para que não se deteriorem pois, assim, perdem seu valor de uso. Afinal, produto estragado, sem valor de uso, não pode realizar seu valor de troca e, desse modo, satisfazer o objetivo de seu dono, de seu proprietário que, como sabemos, não produz primeiro para suas necessidades para, depois, vendê-los, mas sim que, desde o início, visa os ganhos medidos por um valor abstrato, um equivalente geral: o dinheiro maior do aquele que investiu inicialmente. Para que os produtos possam ter o máximo de sobrevida nas gôndolas dos supermercados em condições de uso e, assim, possam ser vendidos, há que se adicionar substâncias químicas essa sobrevida (aromatizantes, colorantes, oxidantes, ….) onde, até mesmo, uma estética dos gostos é industrialmente fabricada.
Como se vê, a ética do bandido – “a bolsa ou a vida” – se impõe por todo lado e todas as escalas e, assim, coloca a vida em seu sentido pleno, biológico e cultural, em colapso. Afinal, para que toda essa dinâmica sociometabólica impulsionada pelas grandes corporações funcione é preciso toda uma complexa logística que, também, reduza o tempo da circulação e distribuição que liga as duas pontas da produção propriamente dita ao consumo. Afinal, time is Money, mas como o tempo não é uma variável separada da matéria em sua corporeidade, em seus espaços concretos da vida, a aceleração do tempo pela concorrência dos monopólios visando a acumulação, implica romper com os tempos ecogeográficos das múltiplas relações biotas-biocenoses que conformam as paisagens, inclusive das culturas que veem seus territórios invadidos. 
A sucessão de pandemias em tempos cada vez mais curtos já se constitui numa nova normalidade e, com isso, as gripes aviária e suína, a doença da vaca louca e zoonoses constituem parte do vocabulário do novo senso comum, embora nomes menos familiares tentam substituí-los como H1N1, MERS, SARS. E, até mesmo, novas expressões, como comorbidade, renomeiam a fragilidade dos nossos corpos que, no fundo, mostram toda a geografia da exploração/opressão social, expressão atenuada pela ideia de desigualdade, haja vista que é nas periferias das periferias que há mais comorbidades, mais casos de contaminados pelo coronavírus, mais mortos. As comorbidades não atingem somente os mais velhos que, por isso, são expostos a mais riscos, mas também aqueles que ficam mais velhos mais cedo pelas condições de exploração/opressão, por isso morrem mais os trabalhadores e, entre os trabalhadores, os negros.
A pergunta que fica é até quando continuaremos a ser embalados, como se fôssemos uma criança, para que dormindo no embalo da propaganda e da publicidade realizemos, acordados, o sonho que sonharam para nós. Reduzir nossos desejos à satisfação pelo consumo nos convida ao egoísmo, no sentido bem preciso, do ismo do ego, ao individualismo, o único ismo que o liberalismo parece aceitar. Afinal, ninguém pode satisfazer meu gozo, desfrutar a minha vida, senão eu mesmo. O corpo é, assim, individualizado e muito bem instrumentalizado no mercado da publicidade com seus modelos. Não sem sentido, vivemos um tempo de regressão do sentido coletivo, do comum, do comunitário. Talvez a linguagem popular nos ajude a superar essa limitação, pois em sentido comum, tapado é aquele que não é inteligente, que não tem aberturas que, como indicam nossos corpos, têm poros. “A tua presença entra pelos sete buracos da minha cabeça” já nos disse o poeta Caetano Veloso. E ter aberturas indica que somos incompletos e essa incompletude de todo ser vivo (n)os obriga a buscar a água, o oxigênio, a ser polinizado e fecundado pelo outro. E, mais, nós os humanos, só pensamos e sonhamos através de uma língua e a língua é, sempre, construção de sentidos em comum (comum/n+cação). Não existe língua individual. 
Talvez devamos nos inspirar em algumas ideias daqueles que, para serem colonizados pelos europeus, foram inferiorizados, como é o caso dos povos andinos quéchuas e aimarás que, sequer, têm uma palavra para indivíduo porque acreditam que todo ser é relação e relação de relação. São povos que também não têm uma palavra para natureza. O equivalente que oferecem, Pachamama, não é traduzível como tal. Pacha é espaço e tempo ao mesmo tempo já que não têm uma palavra para espaço e outra para tempo. E, quem sabe, aprendamos algo com isso, pois não ter uma palavra para designar natureza, implica que não se vejam separados dela, enfim, que não seja algo de que não façam parte. Seu conceito de comunidade envolve eles próprios, seus parentes, os animais, a cordilheira, o vale, os glaciares, o espiritual, o visível e o invisível enquanto comunidade de vida. Como vemos, o fato de não terem uma palavra para indivíduo, para natureza ou para espaço ou para tempo não é por nenhuma inferioridade, mas por indicarem uma outra racionalidade.
É preciso decifrar as embalagens e não só as que embalaram as mercadorias, mas também a que nos embalaram a nós mesmos. Há um momento da vida em que é preciso rebentar a bolsa para que a vida comece a ganhar sentido. E os horizontes de sentido para a vida são, sempre, construções de sentido comum que se conformam quando vimos à luz.
 

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