Início|Brasil|A Civilização dos Trópicos Além do Apenas Moderno

A Civilização dos Trópicos Além do Apenas Moderno

-

Por Gilberto Felisberto Vasconcellos em 18 de julho de 2023

A Civilização dos Trópicos Além do Apenas Moderno

Livro sobre Gilberto Freyre

Jubilosa oportunidade o convívio durante dois anos no Recife, início dos anos 80, trocando cartas, bilhetes, telefonemas. Embarquei com mulher e filhos para morar no porto de Cabedelo, Paraíba, a fim de escrever um ensaio sobre Gilberto Freyre, de que resultou O Xará de Apipucos, infelizmente vindo a lume depois de sua morte, mas ele teve tempo ainda de lê-lo: criticou, corrigiu quase todos os capítulos onde a imitação é homenagem.

Eu já o havia encontrado em São Paulo, entrevistando-o pelo jornal A Folha. Nessa ocasião fui com ele junto de carro até o portão do Palácio Bandeirante, onde iria encontrar-se com o governador Paulo Maluf. Eu desci do carro quando chegamos ao portão, numa atitude anti-jornalista, pois não queria presenciar o encontro dele com o governador no Palácio. Arrependo-me amargamente.

Depois escrevi no Jornal da Tarde um artigo cotejando USP e Apipucus, intitulado A Diáspora da Sociologia Brasileira. Aí tive a sorte de cair nas graças do xará, fui depois recebido por ele no Recife como se fosse um ministro de Estado. Vestido de gravata borboleta, gentil, bem-humorado, convidou-me para almoçar em sua casa no solar de Apipucus, o que em Pernambuco equivalia a um ritual privilegiado.

Tomamos vinho branco português, depois do almoço ofereceu-me uma caixa de charutos Dannerman, dizendo que era um presente cheio de aura dado pelo maestro Villa Lobos. Sorrindo, observando-me atentamente: “- O destino do charuto está na maneira de acendê-lo.”

Aí ele me perguntou se havia eu privado com Sérgio Buarque de Holanda em São Paulo e com Rolland Barthes em Paris. Eu fiquei atônito com a pergunta ligando São Paulo e Paris. Respondi a verdade: não. Mas, pensando bem, isso poderia ter acontecido. Fui amigo do Sérgio e do Álvaro, os dois filhos do Serjão; destarte, frequentei o Riviera, bar que ficava a 500 metros da rua Buri, onde morava o autor de Raízes do Brasil. E em Paris com Rolland Barthes? Aí é outra história, como dizia Kipling.
Rolland Barthes qualificou Gilberto Freyre de escritor místico-erótico, um Loyola tropical. Olhar guloso. Evitando o peremptório em seus ensaios. Sociologia do gosto e do paladar. Saboreando sempre um sisyfros, na definição de Nietzche.

O crítico sergipano João Ribeiro percebeu na década de 30 que Casa Grande & Senzala não conclui, é uma narrativa inconclusa, polimórfica, descartando a ideia de clímax tal qual recomendava o poeta Paul Valèry. Para Sérgio Buarque de Holanda o xará de Apipucus não escreveu senão um só livro, Casa Grande & Senzala. Tudo o mais seria reverberação ou do primeiro livro “totêmico”, como dizia Oswald de Andrade sublinhando o método da saudade. O Proust da sociologia brasileira traz o íntimo da cultura patriarcal e popular, cuja base é menos o negro do que luso, afastando-se nesse aspecto antropológico de outros “tropicalismos” da indústria cultural.

Gilberto Freyre gostava de se defrontar intelectualmente com o paradoxo. O representante máximo da sociologia patriarcal das culturas escreve um livro com a perspectiva do órfão e amante. Casa Grande & Senzala é a visão do menino na história do Brasil e os segredos dos filhos de criação.

A letra reveste-se de traço jesuítico, é o exacerbação grafocêntrica do patriarcalismo colonial burguês. Vale recordar que ele garatujava ao escrever à mão no papel branco de Mallarmé, conforme o belo título Vida, Forma, Cor.
Não obstante a admiração por Sérgio Buarque de Holanda, carioca apaulistado, de quem foi amigo na juventude, agitado, boêmio dionisíaco e intelectualmente apolíneo. Gilberto Freyre considerava-o estilisticamente abstrato, no sentido de que Sérgio descreve o paraíso sem nele entrar dentro.

A essência da sociologia de Apipucus é o retrato da cópula meta-racial entre o luso e o trópico, uma espécie de sinestesia sociológica. Os marujos de Cabral, falando a língua de Camões, pisando em índias nuas. O amavio translinguístico. A cópula do senhor com o escravo seria um arcaísmo pré-burguês, além do sentido óbvio de exploração da mais-valia absoluta.

Entusiasta do novo mundo que o português criou nos trópicos, Gilberto Freyre não curtia Caio Prado Júnior por este ter considerado predatória a colonização portuguesa. Os autores marxistas, incluindo Darcy Ribeiro e Nélson Werneck Sodré, se insurgiram contra a interpretação gilbertiana de que a escravidão teria sido mansa e doce, quase que um benefício para os escravos, abordando menos o escravo que o escravo doméstico. Isso não deixa de ser verdade: o fluxo sexual miscigenado neutraliza a exploração social, o mito do sexo supera a drenagem da mais valia para o além-mar.

À maneira de Oliveira Vianna, o colonialismo para Gilberto Freyre não era uma categoria decisiva, como se estivesse em segundo plano a dominação externa, tanto que ele chegou a afirmar que o escravo no Brasil foi um co-colonizador.

O xará revolucionário está justamente em sua tropicologia, de que era admirador Bautista Vidal, o logos sobre a natureza tropical o levou a observar a inexistência de quintal nos romances de Machado de Assis. E, como se sabe, nossos sociólogos e economistas nos últimos 50 anos, formados na paidéia transoceânica da Cepal, são dendrofóbicos e insensíveis à contemplação de um pé de couve, ou seja, são cientistas sociais munidos de um discurso feio e anti-erótico, com raiva de quem sabe escrever e preza o valor da expressão, cingido apenas à variável monetária e inteiramente desconectado da flora, da fauna, do sol e da água. Enfim, essa alienação desvitalizante em relação à natureza dos trópicos é um fato escandaloso e de conseqüências políticas desastrosas, conforme se verifica pelo desnacionalizado percurso Cepal-Cebrap-Palácio da Alvorada. O escândalo é o fetichismo da moeda ocultar a natureza, a energia, a tecnologia, portanto, a dependência do país.

O saudoso Severo Gomes, intelectual paulista burguês e arguto, foi um dos primeiros a perceber o caráter inovador da tropicologia gilbertiana, a ciência dos trópicos atenta à importância decisiva da energia vegetal nos rumos da civilização brasileira. Civilização dos hidratos de carbono. Isso quer dizer o seguinte: em Gilberto Freyre o ideólogo da apropriação da riqueza feita pelos senhores de Engenho não deve no entanto deixar de lado como irrelevante o logos multidisciplinar da ciência dos trópicos elaborada nos meados dos anos 60. Eis o que há nele de revolucionário como sociólogo: foi pioneiro em juntar energia da natureza e trabalho, enfatizando a necessidade de se criar uma autêntica civilização dos trópicos, e não uma mera e reflexa civilização nos trópicos. Nessa diferença energética está o cerne de um roteiro descolonizado para o Brasil: o “sócius” dos trópicos, e não nos trópicos.

À semelhança do espanhol Miguel Unamuno, ninguém como Gilberto Freyre era tão zeloso em permanecer imortal. Tinha verdadeira loucura pela posteridade. A ressalva que lhe faço é não ter ele se aproximado intelectualmente de seu vizinho Luís da Câmara Cascudo. Para mim o nome de seu instituto de pesquisa no Recife, ao invés do dândi senhorial Joaquim Nabuco, deveria chamar-se Manuel de Oliveira Lima, o assombroso Dom Quixote gordo que sonhava o Brasil um país rico, e não um país de ricos.

Últimas Notícias