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A democracia agonizante

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Por IELA em 15 de fevereiro de 2005

A democracia agonizante
Por Elaine Tavares – jornalista no OLA/UFSC
“Más temprano que tarde, volverá el pueblo a las grandes alamedas”
(Salvador Allende)
15/02/2005 – O Fórum Social Mundial viveu a sua quinta edição, em janeiro de 2005, na cidade de Porto Alegre, completamente transformado. Toda a estrutura, composta por enormes lonas brancas, ficou montada nas margens do rio Guaíba, com figurões e figurinhas tendo que conviver – de forma igual e horizontal – com um calor de mais de 40 graus e os pés sujos de poeira. O centro do complexo foi o acampamento da juventude e todas as suas contradições. O mundo “possível” se explicitou, dando espaço, inclusive, para suas chagas, mostrando que, talvez, como já ensinara El Che, o melhor seja lutar – e sempre – pelo impossível. Humanizar o capitalismo ou transformar radicalmente o mundo seguiu sendo a dicotomia já explicitada desde o primeiro fórum. Críticas de que o fórum virou um festival juvenil sem compromisso com a mudança também apareceram, como se não fosse possível viver a alegria da festa cultural e social junto com o compromisso revolucionário. Ao que parece, ainda se respira o ar viciado e putrefato das propostas de uma militância vivida sem riso, sem encontros ternos e sem calor.
Do ponto de vista dos grandes debates, o tema que aqueceu a maioria das barracas foi a discussão do conceito de democracia. Falaram disso os grandes nomes como Saramago, Petras, Galeano etc…até os desconhecidos que se dispersaram nas mais de duas mil oficinas. Pelo que se viu, está mais do que na hora de romper com essa falsa questão que coloca a democracia como “santa de altar”, como disse Saramago. É em nome dela que os Estados Unidos fazem a guerra, por exemplo, ou que o capital financeiro governa o mundo. “Não foram os povos que decidiram isso. Então, que democracia é essa?”, inquiriu o escritor português.
Muda o mundo, mudam os conceitos
A necessidade de novos conceitos não nasce só do desejo de alguns. Ela urge a partir da realidade contemporânea. Uma olhada para o planeta hoje vai dar conta de que a exploração dos trabalhadores pelo capital não é mais a única variável, lembra o professor peruano Aníbal Quijano. “Temos um desemprego crescente porque o capital não precisa mais do ser humano tanto quanto já precisou. E no mundo sub-desenvolvido vemos o crescimento cada vez maior da escravidão. Há mais de 200 milhões de escravos na Ásia, África e América do Sul”. Ele ainda lembra que existe a expansão de um trabalho que não passa mais pelo mercado formal. Assim, o capitalismo não pode ser analisado simplesmente como a relação capital x trabalho, mas como uma rede bastante complexa que inclui a escravidão e o mercado informal.
Com base nisso, Quijano propõe que é preciso fazer nascer um outro tipo de conhecimento, nascido das práticas sociais. Segundo ele, a América Latina deve sair de seu eurocentrismo, criar outra forma de fazer ciência social e re-inventar o conceito de democracia que, hoje, nada mais é do que uma igualdade de desiguais. “Apenas 20% das seis bilhões de pessoas têm acesso aos bens produzidos no mundo. Isso é uma acumulação jamais vista”. Com ele concorda o escritor português José Saramago que, dizendo-se um não-utopista, desancou a democracia alegando que, dela, ninguém mais espera milagres. Para ele, a democracia há tempos foi seqüestrada e amputada pelo capital financeiro que governa o mundo. “Por isso, é urgente discutir a democracia. De que democracia falamos quando falamos democracia?”
Edgardo Lander, da Venezuela, também se coloca a favor de um novo padrão de conhecimento que não esse trazido pela modernidade, que significou conquista, escravidão, submissão, genocídio. Para ele, a cara luminosa das novas tecnologias é o revés da cara da destruição. “O povo fica achando que isso é normal e que qualquer oposição a esse projeto de modernidade seja uma patologia. Mas não é. O padrão do norte não serve para todos os povos”. Lander alerta para a análise do hoje. A democracia liberal e suas conquistas estão em franco declínio. O modelo social-democrata está fazendo água, a esfera pública, a liberdade de pensamento, os direitos conquistados, tudo se esvai. O controle dos meios de comunicação impede novas formas de pensar. “O modelo de democracia em vigor é o padrão de poder. Nega a diversidade da história, da cultura, da forma de ser e estar no mundo. A democracia precisa ser re-pensada na totalidade das operações de poder, inclusive nas relações individuais”. Para o professor venezuelano, o padrão moderno fracionou o ser humano, o separou do tecido social, abriu um abismo entre cultura e natureza. “Nosso papel é resistir a essa maneira de viver. Ela não é a única forma de vida possível. Desde outras culturas e saberes há experiências radicais de relação da natureza e pessoas que precisam ser divulgadas, conhecidas e vivenciadas”.
O brasileiro Luis Alberto Gomes da Silva acredita que a mudança do mundo e das relações de poder passam pela mudança de viver no cotidiano. E dá como exemplo a revolução – que conceitua como um eterno revolver – que fizeram as mulheres, desde a década de 60. Segundo ele, não há que esperar por eleições, ditas democráticas, muito menos por chegar ao poder instituído. “Precisamos inventar agora novas maneiras de decidir, novos jeitos de ser no mundo, na comunidade. Sei que não é fácil mudar conceitos, que ainda sobrevivem velhas teorias, mas é preciso caminhar nessa direção. A história, fazemos nós!”
James Petras também criticou a democracia burguesa afirmando que, nela, tudo está delimitado pelo poder financeiro. Há limites e políticas muito bem definidas para o poder eleitoral. Escolhe-se – e todos sabem como – o governante, mas o sistema não consulta o povo sobre as mudanças na previdência, a intervenção na Amazônia, ou sobre qualquer grande tema nacional. “Se a população passar do limite, o estado burguês intervêm. Por isso, só se pode derrotar o estado se o povo se organizar”.
Inventando novas canções
As velhas teorias, ao que parece, já não dão conta do mundo multifacetado, tecnocrático e cheio de novas contradições. Mas, em meio às brumas, novas liras dão seus primeiros acordes e propõem formas alternativas de decidir e viver em comunidade. Um exemplo disso, são os novos zapatistas da região de Chiapas, México. Nas cinco mil comunidades que congregam mais de 70 mil pessoas, a forma de exercer o poder passa pelas Juntas de Bom Governo. Lá, as pessoas se reúnem em grupos de quatro, cinco, e colocam o tema em discussão até chegar a um consenso. Depois, vão para o grande grupo formar outros consensos. Todos os problemas e mudanças relacionados com educação e saúde são resolvidos pelos coletivos. Como também há uma estrutura militar e clandestina, esta também passa pela mesma maneira de exercício do poder. Ninguém manda mais ou menos. Tudo é decidido em comunhão. Os novos zapatistas não acham que sua forma de organização seja melhor ou pior. É diferente. Não passa pela eleição, por exemplo. “Tudo o que queremos é mudar esse mundo. Sair dessa lógica capitalista, opressora. Nós aparecemos como uma falha na matrix, mas, acreditamos que, com ela, faremos um barco com o qual vamos todos nos encontrar”, diz o representante chiapaneca presente no Fórum.
Outras formas decisórias em marcha são as proclamadas pela República Bolivariana da Venezuela. A constituição de 1998 instituiu os plebiscitos, nos quais o povo tem a chance de mudar tudo o que quiser. Desde o presidente até as decisões do legislativo. No plano da organização comunitária, os Círculos Bolivarianos e as Missões também apresentam novas maneiras de exercício do poder que se explicitam como pequenos coletivos de democracia direta. “Só há uma maneira de acabar com a pobreza e a exclusão: dando poder ao povo. É o que estamos construindo na Venezuela”, alega o presidente Chávez.
Os trabalhadores bolivianos de El Alto, com suas gigantescas marchas e seus protestos, os cocaleiros, os piqueteiros argentinos, os indígenas do Equador, os camponeses do Paraguai, todas essas são experiências de novas formas organizativas e de reação ao mundo do pensamento único. Novas liras para novas conjunturas. Os trabalhadores e gentes de todo o mundo que já perceberam as mudanças, que compreenderam que o espírito do tempo mudou e exige novas respostas, as estão dando. Os exemplos pipocam por todos os lugares. Basta que se tenha sensibilidade para ver.
A democracia liberal está nos seus estertores. Já não serve mais. Uma vez que tem se prestado a respaldar o terrorismo de estado, perde o pouco de força que ainda lhe restava. Em nome dela, os Estados Unidos invadiram a Guatemala em 54, a República Dominicana em 65, o Chile em 73, Granada em 83, o Panamá em 89, a Colômbia em 92, o Afeganistão em 2002, O Iraque e o Haiti em 2004, financiou os mercenários na Nicarágua, tem financiado o terror em tantos outros cantos do mundo e, agora, anuncia pela televisão que vai destruir o Irã, Cuba, Venezuela. Tudo isso empunhando a bandeira da “democracia e da liberdade”. Só isso já bastaria para pôr o conceito em xeque. Mas, o certo é que as gentes de “Nuestra América” já perceberam que a democracia que lhes cabe é unicamente a do voto a cada quatro ou cinco anos, e ainda tutelado pelo poder econômico. As novas experiências mostram que o povo quer mais e vai criar as condições para que novas formas de poder sejam gestadas de forma direta e libertária.

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