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A emergência social na Bolívia durante a pandemia: O que querem os manifestantes e bloqueadores?

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Por IELA em 13 de agosto de 2020

A emergência social na Bolívia durante a pandemia: O que querem os manifestantes e bloqueadores?

É de conhecimento internacional a renúncia do ex-presidente boliviano Evo Morales no dia 10 de novembro de 2019, alegando insegurança, depois que Williams Kaliman, ex-comandante das Forças Armadas bolivianas, pediu que renunciasse à presidência. A polêmica de uma suposta fraude durante as eleições de outubro que reelegeram Evo Morales mobilizou alguns movimentos das classes médias e altas que saíram às ruas solicitando a renúncia do presidente reeleito. Junto com Evo Morales o vice-presidente Alvaro García Linera, a presidente do senado Adriana Salvatierra e o presidente da Câmara dos Deputados Victor Borda também renunciaram.
Escolhida em uma sessão legislativa que não possuía quórum suficiente para a determinação, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Añez Chávez, assumiu a presidência provisória e com ela a responsabilidade de realizar as eleições em até 120 dias, apoiada por setores agroindustriais e do empresariado boliviano.
Os movimentos das classes médias e altas que provocaram a saída de Evo Morales foram liderados pelo empresário cruceño Luis Fernando Camacho, apoiado pelo representante cívico potosino Marco Pumari. Camacho entrou ao Palácio de Governo logo após a saída de Evo Morales portando a bandeira republicana da Bolívia e uma bíblia, a mensagem provocou a retirada dos símbolos indígenas (como a bandeira Wiphala) das instituições oficiais e das insígnias dos policiais, além disso, alguns policiais amotinados queimaram a bandeira Wiphala como sinal da vitória dos setores contrários ao modelo plurinacional.
Estes atos provocaram a indignação da cidade de El Alto, cidade composta majoritariamente por indígenas das comunidades andinas, e de setores da cidade de Sacaba (Cochabamba), que saíram às ruas no dia 11 de novembro em defesa dos direitos adquiridos e também em defesa dos símbolos originários que foram desrespeitados por setores à direita e das forças armadas.
Jeanine Añez foi posicionada como presidente interina no dia 12 de novembro, devido a isso, as mobilizações se intensificaram cortando a distribuição de gás proveniente da planta da empresa YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) que se localiza na região de Senkata, El Alto. Como medida de pressão contra a presidente interina os habitantes de Senkata cercaram a planta distribuidora de gás. A falácia discursiva do governo, em resposta ao ocorrido foi de que esta população pretendia explodir a planta de gás, taxando de uma ação terrorista elaborada por pessoas afins ao Movimiento al Socialismo (MAS), embora muitas pessoas não tivessem afinidade com o Partido de Evo Morales (MAS), tecendo, pelo contrário, críticas aos (muitos) erros dos 14 anos de governo MAS.
A presidente direcionou as forças armadas para este espaço e provocou o assassinato de 10 manifestantes e diversas pessoas ficaram feridas com o confronto. Neste contexto, surgem discursos do governo para estereotipar a cidade de El Alto como: “selvagens”, “terroristas” e “masistas”. O massacre aconteceu também na zona de Sacaba, Cochabamba, deixando mortos e feridos.
Jeanine Añez determinou a data das eleições para 3 de maio, mas com a chegada da pandemia do novo corona vírus em território boliviano e com o posicionamento da interina como candidata para as eleições presidenciais pelo partido JUNTOS, a permanência de Añez foi alargada e, diante do cenário de crise sanitária, a presidente associou as políticas sanitárias com a própria campanha eleitoral, o que incomodou os setores sociais bolivianos.
Muitas foram as irregularidades do governo provisório, alguns exemplos são: a compra de respiradores por um preço acima do mercado – sobre preço – por parte do ex-ministro da saúde Marcelo Navajas escolhido por Añez; e declarações racistas de parte dos ministros escolhidos pela interina, como é o caso do Ministro de Governo, Arturo Murillo, que manifestou que a medicina tradicional utilizada pelas populações indígenas, frente às políticas insatisfatórias do governo, são “estupidezes”. Além disso, durante a pandemia de COVID-19 os hospitais que recebem pacientes infectados não foram abastecidos com os equipamentos e materiais necessários, o número de camas de hospitais públicos bolivianos para cada 1000 pessoas é muito menor que a porcentagem média latino-americana, chegando a 0,14 no Hospital Norte da cidade de El Alto, hospital público que recebe atualmente o maior número de pacientes. As farmácias da cidade de El Alto tampouco foram abastecidas com remédios como ibuprofeno, paracetamol e dipirona.
Depois de diversos pressupostos de irregularidades promovidas pelo governo provisório de Añez, postergando as eleições por quase um ano, movimentos sociais de moradores de El Alto (Juntas Vecinales), de gremiais e de pessoas auto-convocadas saíram às ruas no começo de agosto para exigir a data das eleições para o dia 6 de setembro e denunciar corrupções por parte do governo. Estas primeiras manifestações foram convocadas pela Central Obrera Boliviana (COB), organização afim ao MAS. 
A população saiu às ruas para bloquear e manifestar em muitos departamentos bolivianos, especialmente as comunidades indígenas de La Paz e Cochabamba, mas também zonas da cidade de El Alto e de Cochabamba, como Senkata e Sacaba que sofreram os assassinatos provocados pelo governo em novembro de 2019, colocando seus corpos em perigo de contaminação pelo COVID-19 e também podendo sofrer os perigos da violência que este governo já mostrou que é capaz de provocar contra a população boliviana, especialmente os povos indígenas. Nós, autores deste artigo e moradores da cidade de El Alto, estivemos nos pontos de bloqueio e decidimos escrever para divulgar as vozes das pessoas que estão nas ruas de El Alto, vozes totalmente desconsideradas pelos meios de comunicação nacionais e internacionais.
Porque o bloqueio é uma estratégia de luta?
Os bloqueios de estradas na Bolívia, especialmente na cidade de El Alto, carregam um legado histórico dos movimentos de 1781 liderados pelos aymaras Tupak Katari e Bartolina Sisa contra as explorações do governo situado na cidade de La Paz direcionadas às populações indígenas. A estratégia consistia (e consiste) em fechar as rotas de entrada de alimentos, transporte e todo o vínculo do espaço rural ao espaço urbano –tendo em vista que o campo nutre as feiras das cidades. Hoje em dia esta estratégia tem como propósito cortar o vínculo da sede do Governo com os Departamentos, por este motivo espaços como Senkata são zonas estratégicas para provocar um incômodo nos governantes, uma vez que se posiciona na rodovia principal para a entrada e saída aos demais Departamentos.
Os bloqueios são organizados pelos próprios habitantes dos lugares, muitas vezes convocados pelas organizações dos bairros (como as Juntas Vecinales e organizações gremiais), deste modo existe uma rotatividade para manter os pontos de bloqueio, criando uma permanência de pessoas que ocupam as estradas bloqueadas. A grande diferença desta estratégia com relação às marchas é que os bloqueios mantêm o protesto por maior tempo que as manifestações.
Quais são as demandas dos bloqueadores?
Diante da ineficácia do governo transitório em criar políticas sanitárias no contexto da pandemia e a manutenção de um governo que é visto pela população como ilegítimo e racista, os manifestantes foram às ruas exigir em um primeiro momento que as eleições não sejam mais postergadas, porque o cenário da pandemia exige políticas de um governo eleito democraticamente.
É importante situar que o que leva pessoas às ruas em um momento de pandemia é a indignação com relação a um governo que não dialoga com as necessidades dos setores sociais populares e que posicionou como Ministro do Planejamento o empresário cruceño de família croata, Branko Marinkovic, que foi presidente do Comité Civico Pro Santa Cruz responsável por conformar a Media Luna, projeto separatista que buscava dividir a parte oriental da parte ocidental boliviana, as terras baixas dos Andes, provocando a indignação da população alteña.
Como presidente do Comité Civico Pro Santa Cruz, Branko Marinkovic se referia às populações indígenas andinas como “raça maldita” e ao posicioná-lo como Ministro do Planejamento este governo reafirmou sua posição racista, nas palavras de um bloqueador da zona Río Seco, El Alto: “Estou totalmente indignado, ontem este personagem foi opressor do povo e agora é ministro dos bolivianos. Mas não esquecemos, como bolivianos, o que ele é” (tradução nossa, entrevista do dia 6 de agosto, aniversário da fundação do Estado boliviano).
As eleições assumiram em um primeiro momento uma centralidade como demanda dos bloqueadores, que exigiram a data do dia 6 de setembro como impostergável. O governo de Añez, para justificar o adiamento das eleições, alegou que este contexto os obriga a tomar ações que privilegiam a “defesa da vida” mais do que um processo eleitoral. Com a permanência das mobilizações a presidente Añez e seus ministros qualificaram as ações políticas como terroristas, selvagens e masistas, afirmando que os bloqueadores estavam atentando à vida em contexto de pandemia e solicitando um posicionamento do Movimiento al Socialismo.
Diante disso, o governo interino chamou as organizações sociais e representantes dos partidos políticos para um diálogo no dia 9 de agosto, os representantes da COB não participaram do diálogo, assim como os principais candidatos à presidência de diversos partidos políticos, como os candidatos Luis Arce (MAS) e Carlos Mesa (Comunidad Ciudadana).
A determinação do Tribunal Superior Eleitoral enunciada pelo presidente do TSE Salvador Romero foi que a nova data para as eleições seria 18 de outubro, a argumentação dada por Romero é que um Comitê Científico analisou que o pico da pandemia aconteceria nos primeiros dias de setembro, ainda que nada comprova um decrescimento do número de contágios para o mês de outubro. O partido MAS acatou a data indicada pelo TSE e pediu às suas bases que aceitem a data de 18 de outubro, no entanto as manifestações se intensificaram e a demanda principal passou da data das eleições para a renúncia da presidente.
Neste contexto ressurge a liderança de Felipe Quispe Huanca (El Mallku), historiador e ex dirigente sindical aymara que encabeçou as mobilizações sociais que derrocaram os governos neoliberais de Hugo Bánzer Suárez (2001), Gonzalo Sanches de Lozada (2003) e Carlos de Mesa Guisbert (2005). Felipe Quispe foi um grande crítico do governo de Evo Morales e atualmente é contrário ao governo provisório de Jeanine Añez. Deste modo, como representante político, está mobilizando setores camponeses que não possuem vínculo com o Partido de Evo Morales e que exigem a renúncia do governo de transição, sendo tanto a presidente quanto os ministros escolhidos por ela. 
Desde o começo de junho os meios de comunicação nacionais denunciaram a escassez de oxigênio para os pacientes com COVID-19, no entanto os representantes do governo provisório criaram um discurso culpabilizando os bloqueios, que tiveram início em agosto, pela falta de oxigênio nos hospitais e pelas mortes decorrentes disto, ainda que uma das políticas dos bloqueios é permitir a passagem de ambulâncias, carros funerários e caminhões que transportam materiais para o abastecimentos dos hospitais, informação que não é divulgada pelos principais meios de comunicação bolivianos. Como estratégia para debilitar os bloqueios e alegando a “luta pela vida” o governo provisório enviou um comboio de oxigênio que saiu do Departamento de Santa Cruz com destino a Cochabamba, Oruro e La Paz, tal comboio irá recorrer os principais pontos de bloqueio e está acompanhado por forças militares.
Para nós é importante a difusão internacional dos acontecimentos atuais na Bolívia, porque sabemos que estas informações dos pontos de bloqueio não chegam aos meios de comunicação nacionais e muito menos internacionais. Denunciamos os discursos produzidos pelo governo para deslegitimar a luta dos nossos irmãos e irmãs que estão expondo seus corpos em meio a uma pandemia, e queremos enfatizar nosso temor de uma possível violência provocada pelo governo de Jeanine Añez que já tem as mãos sujas de sangue pelo massacre de novembro de 2019.
 

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