Estados Unidos: mais forte ou em queda?
Texto: IELA
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Num continente sufocado pelo imperialismo, o cinema latino-americano sempre teve que enfrentar leões de várias cabeças para construir narrativas que respondessem aos desejos populares, e desvelassem as causas do eterno estado de miséria em nossas fronteiras. Na tentativa de construir uma cinematografia que não fosse apenas um apêndice das classes dominantes, os cineastas latino-americanos voltaram suas lentes para a realidade de seus países com suas histórias, personagens, silenciamentos e ilusões diante da condição periférica da América Latina na divisão internacional do trabalho. Todas essas contradições, inerentes ao processo de um cinema que tateia novos caminhos, estão em Cinema e luta de classes na América Latina, o mais recente livro do escritor, cineasta e filósofo, André Queiroz.
Mesmo sendo uma forma artística criada e digerida pela burguesa como um fast-food, o cinema ainda se apresenta como um veículo que potencializa a imaginação e difunde ideias capazes de transformar sociedades, ou numa visão pequeno burguesa, indivíduos. Mas apesar da propaganda que a acompanha, e a popularização dos novos instrumentos de captação de imagens, o cinema continua sendo uma indústria que necessita de um extenso processo de produção e distribuição para existir. Como o mercado do audiovisual é dominado pelas grandes produtoras, e achatado esteticamente pelas multinacionais do streaming, surge a pergunta: ainda é possível fazer um cinema revolucionário, um cinema que proponha uma construção dialética com o público, diante da uniformização estética das produções contemporâneas, e a utilização das mais avançadas tecnologias para reforçar a passividade do espectador contemplativo? Ou até que ponto o cinema latino-americano dialoga com seu público sobre os fatores que historicamente impedem o progresso da região, se os filmes que a representam parecem tergiversar essas questões para conseguirem circular nesse mercado?
Nos ensaios que compõem o seu livro, André Queiroz partirá dos dez filmes escolhidos para analisar, entre outros temas, o desenvolvimento narrativo do cinema latino-americano ao longo de seis décadas, os limites da representação, e como a luta de classes é projetada nas telas. Não demora muito para percebemos a dificuldade dos cineastas da região – invariavelmente filhos da burguesia- em esmiuçarem a questão da luta de classes dentro do sistema capitalista dependente da América Latina. Na verdade, a discussão sobre a luta de classes passa quase despercebidas em alguns casos, independentemente do país ou do período mostrado, o que causa, no mínimo, um estranhamento, pois é impossível falar sobre os golpes de Estado que dominaram a América Latina ao longo do século XX, por exemplo, sem debater o principal motivo para sua implementação. Num diálogo com Theotônio dos Santos, um dos principais teóricos latino-americano, André Queiroz dirá: “repovoar os conceitos abstratos e soltos é encarná-los da matéria viscosa que se arranca ao solo turbulento da luta de classes. Apurar os ouvidos da atenção é escutar os timbres distintos do que estava posto aos combates. O teórico nos indicou o caminho, O de que o Estado e o capital não caminham por percursos inteiramente outros. Tampouco que a liberdade possa ser associada à liberdade de mercado e à livre iniciativa sob o primado da propriedade privada. Em certo momento, o teórico acrescentará outra pista, a de que o autoritarismo a ser combatido é aquele que se empareda no grande capital monopólico, no modelo de desenvolvimento econômico concentrado nos oligopólio locais e/ou internacionais, e fundado sob os critérios da dependência periférica que é, intrinsicamente, subalternizada, marginalizadora, e não democrática”.
Se a discussão em torno luta de classes costuma ser deixada de lado, consequentemente o papel da burguesia no financiamento das ditaduras civis-militares em seus países também seria. Outro ponto que André Queiroz chama a atenção em seus textos, é para posição secundária do povo nessas películas, uma atitude, consciente ou não, que esvazia o protagonismo das massas na luta contra a barbárie promovida antes, durante, e depois dos regimes de exceção. Em “As Veias Abertas da América Latina”, Eduardo Galeano escreveu que a riqueza dos países da região foi o primeiro passo da sua ruína diante da sanha imperialista; o segundo foi o estabelecimento de uma burguesia parasitária e subserviente a sedução externa. Por isso, não chega a ser uma novidade que em alguns filmes o povo tenha uma participação quase alegórica, onde ele é o outro que nunca se apresenta, uma massa uniforme em busca dos porta-vozes das suas vontades.
Utilizando uma escrita poética referencial e, porque não dizer, didática, André Queiroz situa o leitor no processo histórico projetado em cada um dos 10 filmes analisados, e nos dois estranhos no ninho que compõem o anexo (um coreano e um Francês) seja no texto principal ou nas notas do livro. Notas, aliás, que vão além do simples complemento ou citação, são extensões que reafirmam a abordagem do autor sobre o tempo histórico, e suas consequências no cotidiano que se esvai. André discorre sobre a construção imagética desses cineastas, com todas as pedras e armadilhas do caminho, sem deixar de salientar a dicotomia entre discurso e realidade, entre o querer e o fazer, entre os gritos e sussurros que a narrativa não verbaliza, mas a memória entrega. Utilizando trechos de arquivos oficiais, ou de autores como Rodolfo Walsh, Octavio Getino, Glauber Rocha, Florestan Fernandes, ou mesmo ampliando o próprio discurso, André Queiroz aponta para o colapso dessa criminosa conciliação de classes, comandada pelas burguesias locais com a benção do imperialismo, e que mantém a América Latina como a região mais desigual do planeta.
Ao escolher filmes com espaço-tempo tão amplos, o primeiro é da década de 1960, e o mais recente de 2020, o autor nos oferece também uma reflexão sobre as narrativas que se perderam ao longo dos anos, aquelas que ganharam banho de loja, ou as que foram reavaliadas sob o olhar crítico e a verve dissimulada do agora. Da ilusão desenvolvimentista que impulsionou os voos de galinha das economias periféricas, a alienação de não querer compreender que a farsa é o moto contínuo dos nossos dias, o que assistimos é o início, o fim e o meio de uma história contada e recontada independentemente de qualquer intenção fílmica. Em seus ensaios, André Queiroz aprofundará também as discussões em torno da precarização do mercado do trabalho, o desmantelamento dos sindicatos, e o labirinto em que os trabalhadores são lançados diante das políticas neoliberais que avançam na superexploração da força de trabalho, ao mesmo tempo em que estigmatizam a noção de classe operária, depreciando o sentido de coletividade, e as próprias relações afetivas.
Como apontou Ruy Mauro Marini em seu Dialética da Dependência, a América Latina se insere no sistema de divisão internacional do trabalho a partir da invasão europeia, onde seu território fica subordinado aos interesses dos países centrais, inicialmente pelo colonialismo e, posteriormente, por um modelo de capitalismo dependente, causando todo tipo de pilhagem e exploração da classe trabalhadora. Sendo assim, ao situar um filme em determinado período histórico, como o golpe de estado de uma presidenta, o massacre dos povos originários pela máquina de matar do Estado, ou a jornada de um preso político pelos porões da ditadura, é necessário explicitar os motivos de tamanha perseguição. É preciso esclarecer que isso só acontece para manter os preceitos liberais da lógica democrática burguesa. É preciso deixar claro, mesmo sendo uma “verdade inconveniente”, mesmo correndo o risco de perder os financiamentos que sustentam a própria vaidade, que todos os processos de emancipação dos países da América Latina foram sabotados pelo imperialismo e seus sócios minoritários, com o auxílio dos seus grupos de extermínio oficiais, os exércitos e polícias nacionais. É preciso reafirmar que o terrorismo de Estado não foi uma resposta burocrática à insurreição popular organizada, ou um sintoma da patologia humana, e sim um complexo e eficiente plano de opressão e espoliação capitalista.
Além de se afastarem das premissas que mantém o nosso subdesenvolvimento, alguns filmes sequer apontam os dedos para a superestrutura opressiva que constituem o modelo de exploração existente. Diante disso, André Queiroz desconstruirá esse conveniente silenciamento questionando: Afinal, para que serve um golpe de estado? Ele pergunta para logo em seguida responder: “Para que o acionar de tropas armadas desde dentro das casernas, senão para o desdobrar das artimanhas de conformação dentro das lutas de classes?! Reordenar a balança de pagamentos, impor um regime de lucro às empresas sacado às custas de enormes sacrifícios impostos aos trabalhadores – reprimindo-lhes no seu direito de organização, perseguindo lideranças populares, proibindo greves e assembleias, reordenando o corpus legislativo ainda que no marco da constitucionalidade liberal.”
O livro, Cinema e Luta de classes na América Latina, se insere na bibliografia de um dos mais contundentes autores contemporâneos; alguém que faz da memória não apenas a base dos seus mais variados projetos, mas o ponto de partida de um profundo trabalho crítico e militante sobre as contradições históricas requentadas na contemporaneidade. Seja nos seus mais de quinze livros publicados – entre ensaios, contos e romances- seja realizando filmes como: “El Pueblo que falta”, “Araguaia, Presente”, “Solanas explicado às crianças”, “João Parapeito”, ou nos cursos ministrados no Instituto de Arte e Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde é professor titular, André Queiroz produz uma das obras mais corrosivas e inconvenientes da atualidade. E no momento em que um filme que representa o que se convencionou falar sobre a ditadura civil-militar brasileira ganha telas e prêmios ao redor do mundo, o livro Cinema e Luta de classes na América Latina, de André Queiroz, se torna ainda mais relevante e necessário
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