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A Questão Indígena e a Descolonização do Brasil: a relevância da criação do Ministério dos Povos Indígenas

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Por Carlos Walter Porto-Gonçalves em 25 de janeiro de 2023

A Questão Indígena e a Descolonização do Brasil: a relevância da criação do Ministério dos Povos Indígenas

Foto: Vincent Bosson/Fotoarena/IMAGO

A Amazônia entrou definitivamente no centro do debate político mundial o que aumenta a responsabilidade dos estados e dos povos que têm soberania sobre a região. Para que possamos dar conta da complexidade das questões que implicam a Amazônia e seus povos haveremos de considerar o caráter de ser uma região periférica de países periféricos no sistema mundo capitalista\moderno-colonial. E mais grave ainda é a condição dos grupos\classes sociais em situação de subalternização\exploração da região cujas vozes quando são escutadas são imediatamente submetidas a lógicas e práticas que lhes são alheias quando não contrárias a seus interesses mais profundos. É o caso dos povos originários, das diversas campesinidades (seringueiros, quilombolas, extrativistas de várias denominações, assentados) e populações das periferias urbanas. No meio dessa complexa situação alguma luz emerge e devemos ser capazes de trazermos ao debate para destacarmos sua relevância que pode inspirar outros rumos para a região, para os países diretamente implicados e para o planeta e a humanidade como um todo. Refiro-me aqui à recente criação (2023) do Ministério dos Povos Indígenas pelo governo brasileiro.

Esta iniciativa, talvez não tenhamos nos dado conta de seu caráter profundo e estratégico, vem se somar a toda uma série de propostas que, nas últimas décadas, foram postas na mesa por esses grupos\classes sociais, sobretudo pelos povos originários. Trata-se de todo um legado teórico político que vem sendo proposto como o Estado Plurinacional, os Direitos da Natureza e o Bem Conviver (Sumak Kausay, Sumaq Qamaña, Ubuntu entre muitas denominações). Pela primeira vez ganha o debate político mais amplo uma contribuição que não emana do repertório civilizatório eeuurocêntrico que nos colonizou. E isso não é qualquer coisa na medida em que significa o reconhecimento do legado desses povos que são responsáveis por nada mais nada menos do que essa Amazônia com que hoje a humanidade pode debater algum modo de evitar a debacle ambiental que está em curso. Registremos que os Povos Originários vivem com a floresta há, pelo menos 12 mil anos, o que valeu a caracterização da floresta como Floresta Tropical Cultural Úmida por parte de dois pesquisadores do porte de Darrell Posey e William Balle. E ninguém vive tanto tempo num ambiente sem saber pescar, sem saber coletar, sem saber se curar (criar suas medicinas), sem saber construir suas moradias (arquiteturas), enfim, ninguém vive sem saber. E esses saberes são uma fonte insubstituível para qualquer política com a Amazônia.

Quis o destino, me permitam a licença de linguagem, que a criação do Ministério dos Povos Indígenas tenha vindo à baila no mesmo contexto que viu emergir uma crise militar envolvendo a demissão do Ministério do Exército e a crise humanitária envolvendo o Povo Yanomami. Na verdade, a questão militar tem sido um dos principais obstáculos para o reconhecimento dos direitos indígenas na medida em que ela enfeixa de modo emblemático a colonialidade que tão bem caracteriza a sociedade brasileira. Explicitemos essa relação.

O Exército brasileiro toma como referência de sua origem a batalha de Guararapes de 1648 quando são expulsos da colônia portuguesa chamada Brasil os holandeses. Sublinhe-se que, à época chamava-se de brasileiro o português que vivia de explorar o Brasil, conforme nos informa o historiador José Carlos Reis em seu livro As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC (Ed. FGV, 1999). O contexto da Batalha de Guararapes se inscreve na luta de Portugal para se emancipar da Espanha e voltar a ter o controle de suas colônias, entre as quais o Brasil. É, no mínimo, estranho que se invoque a origem de uma instituição tão central na formação de um Estado, como o Exército, num momento em que sequer se colocava no horizonte a invenção do Brasil. A mentalidade colonial salta à vista muito embora se veja ali na Batalha de Guararapes a união das três raças, um dos mitos da fundação da brasilidade. A perseguição aos “negros fujões” e a justificativa de tomada dos territórios indígenas com “guerras justas”, os massacres da Cabanagem, da Balaiada, de Canudos e do Contestado contaram com Pacificadores, e mostram que a colonialidade sobreviveria ao fim da colonização. Dizer que não se demarcaria nem um centímetro de terras indígenas ou quilombolas durante o governo militarizado recém-derrotado nas urnas atualiza essa tradição. A crise atual humanitária evolvendo o povo Yanomami expressa essa violência histórica inominável.

Os militares, é claro, não estão sozinhos nessa prática. Um nacionalismo colonizado vem afirmando os riscos que seria a demarcação de territórios indígenas para a unidade territorial do Brasil. E invocam a presença de ONGs internacionais que seriam instrumentos desse risco. Assim se negam os direitos desses povos e a tão decantada união das três raças se esvai ou, na melhor das hipóteses, deve ser diluída num brasileiro genérico que nega toda diversidade do povo brasileiro. Ou seja, continuamos pensando e agindo de acordo com a colonialidade que sobreviveu ao fim do colonialismo discriminando o não-branco como um não-ser.

A iniciativa do atual governo de criar o Ministério dos Povos Indígenas vai pela primeira vez na nossa história integrar na prática os povos indígenas nas estruturas do Estado e, assim, reconhece que o Brasil é um estado plurinacional, o que tem relevantes efeitos jurídicos, políticos e pedagógicos para a sociedade brasileira. A Constituição de 1988 já havia incorporado esses direitos sem nenhuma consequência prática.

Afinal, está mais do que na hora de definitivamente nos descolonizarmos, o que não é fácil dada a sobrevivência da colonialidade em nossa formação. Somos um país cujo nome – Brasil -deriva da primeira matéria-prima com que os de fora viviam de nos explorar. E não é do passado que estamos falando haja vista que continuamos, até hoje, sendo exportadores de matérias primas ou bens primários. E nossas classes dominantes bem poderiam ter escolhido outro adjetivo pátrio que não brasileiro um dos poucos adjetivos pátrios terminados em eiro que tal como madeireiro ou mineiro é aquele que vive de explorar a madeira ou o minério. Tudo indica que a escolha retrate bem nossas classes dominantes que tal como os portugueses no período colonial é aquele que vive de explorar o Brasil. Vida longa aos Povos Indígenas! Descolonizemo-nos, pois! A criação do Ministério dos Povos Indígenas bem pode ser um passo decisivo nessa direção.

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