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A tarefa do filósofo

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Por IELA em 18 de maio de 2010

A  tarefa do filósofo
Por Raquel Moysés – jornalista
18.05.2010 – As noites de Encuentros do Instituto de Estudos Latino-Americanos fazem diferença na UFSC. Elas abrem espaço para diálogos àquela parte da  universidade que trabalha na perspectiva de uma “ciência ativa”, que, na definição de Bacon, é a ciência impregnada de compromisso com a transformação social.
O inglês Francis Bacon (1561/1626), foi contemporâneo de  René Descartes (1596/1650), cuja vida, pensamento  e obra foram o tema  da conferência do historiador  Pedro de Alcântara Figueira nos Encuentros do IELA de abril. Ambos os filósofos, cercados pelos muros da escolástica, se contrapunham  à  filosofia de seu tempo que, para eles,  nada mais acrescentava à vida humana.
Pedro Figueira apresentou acenos do pensamento do filósofo francês, que ele   esmiúça no livro de sua autoria,  “Descartes – nascimento da ciência moderna” (Editora Uniderp).  O historiador apresenta na obra, e expôs na sua palestra,  a sua leitura interpretativa do universo do pensamento e das atitudes do  filósofo francês,  que  também era conhecido pelo nome latino de Renatus Cartesius. 
Além de filósofo, Descartes foi físico e matemático, e representou papel fundamental na chamada revolução científica. Notabilizou-se, sobretudo,        pelo trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, obtendo ainda reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria – fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje perpetua o seu nome. Um  dos filósofos  mais influentes pensamento ocidental, sua vida e obra inspiraram  contemporâneos e várias gerações de filósofos que o  sucederam.
Em primeira pessoa
O Descartes de Pedro Figueira não é o  filósofo racionalista como muitas das biografias o descrevem. O historiador traz à luz um homem que pensa o seu tempo na perspectiva da luta social. “Todos os contornos do pensamento de Descartes contém algum elemento da luta que se travava no momento em que ele escrevia”, constata Pedro.
Descartes foi um homem que teve a ousadia de escrever, em sua obra, uma  autobiografia intelectual. “Em seu Discurso do método, por exemplo,  ele  sempre fala em primeira pessoa. “Usa ‘eu’, ao contrário de certos   metodólogos de hoje,  que definem metodologia como algo que não depende da subjetividade”, comenta Pedro. É, portanto, sujeito ativo de seu próprio pensamento, ao contrário  de  filósofos,  que escrevem como se fosse “o pensamento que pensasse”. 
Mas,   para que pudesse escrever com liberdade, foi preciso que Descartes  escapasse  para a Holanda, saindo do “quintal do Vaticano” e do mundo escolástico,  que o aprisionavam. Pedro lembra que,  naqueles anos, qualquer tipo de divergência era fatal para um pensador que discordasse do que a Escolástica impunha. Essa linha da filosofia  medieval respondia apenas às exigências da fé, ensinada pela igreja católica, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a sociedade daquele espaço de mundo.
Qualquer pensador que destoasse desses princípios e questionasse as verdades impostas, era tratado como inimigo, e o lugar de hereges, naqueles tempos tenebrosos, era a fogueira. “A ideias servem aos seus donos. Não foi por outra razão que Giordano Bruno foi parar na fogueira da Inquisição e Galileu esteve a pique de ter o mesmo destino. Ambos resolveram desrespeitar os donos contrariando suas idéias”, escreve o historiador.
Uma lei que nos obriga
A  Escolástica não dava conta de explicar  o que estava em discussão em uma Europa que começava a rachar.“Nesse caldeirão era difícil sustentar os princípios consagrados, que correspondiam a uma época que tinha envelhecido,  a idade média.  Já era impossível manter o temor de Deus como princípio da ciência”, que era o que impunha a Escolástica, como explica Pedro Figueira.
Mas havia, como escreve Descartes em sua obra, “uma lei que nos obriga,” uma espécie de imperativo categórico definido pelo filósofo.  E essa “lei que nos obriga”, na interpretação do historiador,   é a inserção do homem no mundo e o seu  agir  consequente com a  insatisfação diante daquilo que é dominante.
Descartes, no entanto, era prudente, pois os casos de intolerância, de perseguição e de execuções de desafetos era algo tão presente para os que já tinham  se posto a tarefa de contribuir para as mudanças,  que a cautela se tornara seu estilo de vida. Assim, o filósofo  pensa poder driblar a vigilância do inimigo,  apresentando as novas questões  com uma roupagem discreta. 
Discreta,  mas impiedosa com a velha filosofia,  que já não servia a seu tempo. Daí Descartes declarar, como lembra o historiador,   que a inspiração de suas “opiniões”, isto é, sua filosofia, provinha de forças novas, do homem comum, precisamente o detentor do bom senso, aquele que ignorava, e, que segundo Descartes, era bom mesmo que ignorasse, a velha filosofia. 
A verdade é filha do tempo
O período em que viveu o pensador era uma época de profunda crise e de lutas que expressam um desejo de mudança de boa parte da Europa, onde já tinham se esgotado as tentativas de remendar a sociedade feudal. É neste contexto que nasce a filosofia de Descartes, o  Cartesianismo.
Descartes trabalha  para enfrentar a tarefa de se libertar das amarras que as antigas idéias trazem consigo. E é como personagem ativo, e, muito frequentamente como protagonista principal, que entra em cena para ensinar quais as mudanças que se deve imprimir à vida para enfrentar um mundo conturbado por lutas políticas, religiosas, científicas e filosóficas, interpreta o historiador.
Só que Descartes se define como um escrevinhador, um pensador que quer contribuir para mudar a sua época, e não como um fazedor e vendedor de livros, “o que não é do meu feitio, nem da minha profissão”. Suas cartas, um epistolário de quase  quatro mil textos, percorriam a Europa, e hoje  revelam em grande parte quem ele era. A história da ciência no período da vida de Descartes está na sua correspondência.  Um filósofo que era na verdade um ativista, tinha a coragem de falar em primeira pessoa e a ousadia de afirmar que a verdade corresponde à luta social. E que “a verdade é filha do tempo”.
A utilidade de buscar o bemRastreando a obra do filósofo, Pedro encontra outro conceito fundamental de seu pensamento – a utilidade – conceito  presente também na obra de Bacon. Aliás, a coincidência entre ambos é enorme, embora Bacon vivesse na Inglaterra e Descartes na Holanda, não tendo jamais havido qualquer relacionamento pessoal entre ambos. Quando Bacon morreu, em 1626, Descartes ainda estava vivendo os seus anos de formação.  Usam, no entanto,  inclusive, “as mesmas palavras e fazem, do mesmo modo, a verdade decorrer da utilidade”.
Diante de um mundo feudal que se despedaça  ambos diziam que a filosofia produzida,  até aquele momento, não servia para nada, porque eram coisas  inúteis para o ser humano. Preconizavam, então, o rompimento radical com tudo o que não servia mais para nada. Porque, para os dois filósofos, “utilidade e verdade são a mesma coisa, pois, para ser  verdadeiro, algo tem que ser útil aos homens”, resume Pedro.
É  nos escritos  do filósofo que o historiador encontra amparo para a interpretação que apresenta no livro. Ele cita, por exemplo,  um trecho, que se encontra em “Princípios de Filosofia”,   que  serve  para caracterizar os termos da luta de Descartes por uma nova concepção de vida:
“Mas, como as coisas de que trato  aqui não são de pouca importância e como eu poderia ser considerado muito audacioso se assegurasse que encontrei algumas verdades que não foram descobertas por outros, prefiro não tomar ainda uma decisão a respeito, e para que cada qual fique livre para pensar o que lhe aprouver, quero que o que eu escrever seja tomado apenas como hipótese, que talvez esteja muito distante da verdade. Mas, mesmo que assim seja, provavelmente muito terei feito se todas as coisas que daí forem deduzidas estiverem em inteira concordância com as experiências, pois, se assim for, ela não será menos útil à vida do que se fosse verdadeira, porque poderemos, indiferentemente, nos servir dela para dispor as causas naturais de modo a produzir os efeitos que desejarmos.”   [Princípios, 123]
Sobre Descartes, corria,  à época em que viveu, a opinião de que era  um pensador perigoso. “Porque filósofo que tem tarefa é perigoso.”  E para que um pensador possa ser considerado grande, “suas idéias têm que fazer parte ativa dos embates que sua época trava para que a sociedade humana não pereça na barbárie”, diz Pedro Figueira. Descartes é homem dessa estirpe, e sua obra  testemunha seu empenho humano,  que ultrapassa a linha do tempo. 
Pois, embora seja verdade que todo homem é obrigado a buscar, tanto quanto lhe for possível, o bem dos outros, e quando não se é útil a ninguém é o mesmo que não prestar para nada…” (Discurso, p.87)

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