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A vitória da centro-esquerda

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Por IELA em 19 de novembro de 2004

A vitória da centro-esquerda
Por Nildo Ouriques/ Observatório Latino-Americano
19/11/2004 – O cenário latino-americano indica que as eleições se tornaram o centro da vida política na região e é possível observar que a esquerda tem acumulado vitórias importantes que em outras épocas pareciam impossíveis. A vitória do socialista Tabaré Vázquez no Uruguai, desbancando o monopólio de mais de 170 anos divididos entre Blancos e Colorados constitui um exemplo importante deste cenário, mas não o derradeiro.Há ainda o México, onde o perredista Andrés Manuel Lopez Obrador possui chances reais de chegar a presidência da república no próximo ano.
Em grande medida, vitórias como a de Tabaré somente são possíveis graças ao resultado global das políticas emanadas de Washington que redefiniram o pacto de poder em favor dos donos do dinheiro e aprofundaram tanto a miséria quanto a dependência dos estados latino-americanos. Esta polarização e a incapacidade de alternativas conservadoras em responder à grave crise social que se alastra por todo o continente, abriu o espaço necessário para a vitória de socialistas, radicais de diferentes matizes, e mesmo conservadores astutos. Contudo, é preciso reconhecer que estas vitórias somente foram possíveis em função da profunda transformação que sofreu a esquerda, quando adotou sem vacilações a estratégia centro-esquerda que, em outras épocas era vista com imensa desconfiança. Em função das grandes esperanças que justificadamente despertam, é necessário perguntar sobre a efetiva capacidade de transformação dos governos que adotaram a estratégia de centro-esquerda.
Em alguns casos, como no Uruguai, por exemplo, é evidente que não foi apenas uma vitória da oposição encabeçada pelos socialistas. Foi também, e talvez mais importante, a derrocada de um sistema político que, como instrumento de dominação, foi indiscutivelmente eficaz por quase dois séculos. A exemplo do que já havia ocorrido no México em 1999, onde após 72 anos o Partido Revolucionário Institucional (PRI) perdeu as eleições para a direita católica, a vitória oposicionista representava o fim de um sistema político estável para os interesses dominantes. Neste último, jogou um papel relevante a rebelião zapatista deflagrada em 1 de janeiro de 1994, data em que entrou em vigor o tratado de livre comércio com os Estados Unidos e o Canadá.
As rebeliões se tornaram um fato corriqueiro no cenário atual. Elas são expressão de vários fenômenos conjugados. Em primeiro lugar é importante registrar que a América Latina tornou-se irreversivelmente uma região urbana, onde as condições de vida são particularmente implacáveis com as maiorias que, há poucas décadas atrás, buscavam nas cidades uma saída para a endêmica pobreza rural. Ainda mais grave: a opção pela economia exportadora em que todos os países avançam a passos largos, aumentou a pressão sobre a propriedade da terra e as condições de vida de massas camponesas que também se tornaram mais difíceis em função da permanente deterioração dos termos de troca a que a economia exportadora esta submetida historicamente. A violência que ali se verifica contra líderes indígenas, sindicais e religiosos, revela até que ponto se vive no campo uma “guerra civil silenciosa” que não deixará de exercer pressão nos próximos anos.
Não obstante sua importância, estas rebeliões não são capazes de “tomar o poder”. Podem, como demonstrou a crise equatoriana de janeiro de 2000, apresentar-se como uma força decisiva para remover seus velhos ocupantes, mas são igualmente incapazes de organizar uma estratégia alternativa com alguma consistência. Possuem uma vitalidade impressionante, mas revelam igualmente uma dose não desprezível de voluntarismo que termina por devorar suas energias vitais. Na Bolívia, em 2002, ela mostrou-se de corpo completo, com grande atuação dos “de baixo”, simulando o velho sonho da dualidade de poderes por alguns dias, mas além de defrenestrar Sánchez de Losada, foi incapaz de impedir a rápida rearticulação dos interesses dominantes em torno do vice-presidente e tornaram a estabilizar tanto a economia quanto a política nos termos que lhe são favoráveis.
O único país onde a crise de sistemas políticos de dominação implicou em uma ameaça para a dominação burguesa foi a Venezuela, posto que nem os social-cristãos ou os social-democratas conseguem vislumbrar sequer uma alternativa eleitoral para enfrentar a Revolução Democrática Bolivariana. O sistema de dominação criado com o Pacto Del Punto Fijo de 1959 foi incapaz de construir uma alternativa diante da avalanche dos bolivarianos e as últimas eleições para governadores de estado em que o presidente Chávez venceu em 21 dos 23 possíveis, revela que a crise da elite é realmente muito profunda.
Ora, a estratégia de centro esquerda é, antes que nada, uma estratégia de compromisso. Por um lado, implica no abandono toda pretensão de tomada de poder por parte dos “de baixo” e, por outro, anuncia um conjunto de reformas que devem, em primeiro lugar, enfrentar a crise social. Esta por sua vez, dada a magnitude e seu conteúdo urbano, tornou-se muito grave para ser enfrentada apenas com as conhecidas políticas sociais cada dia menos eficazes. As restrições não são pequenas. A mais importante deriva da adoção, por parte da centro-esquerda, do receituário clássico do monetarismo. No terreno político, implicou em uma espécie de conversão ao credo até ontem combatido, na medida em que a mitologia das altas finanças permanece intocável: austeridade fiscal, prioridade no combate à inflação e estabilidade monetária.
A adoção desta estratégia condena as economias da região a baixas taxas de crescimento econômico que, aliada a intensa renovação tecnológica permitida por taxas de câmbio favoráveis, deixa o desemprego sempre em taxas elevadíssimas. Sem uma política de emprego forte, a política social se reduz a programas sociais que, por sua vez enfrentam o critério implacável da austeridade fiscal, onde os cortes orçamentários, em particular aqueles referidos aos programas sociais, são acentuadamente fortes. Os recursos destinados ao Programa Fome Zero do governo de Lula no Brasil, constituem uma clara demonstração da limitação da política social em condições de austeridade fiscal.
Neste contexto os programas sociais alteraram sua função: de instrumento para enfrentar a pobreza transformam-se em mecanismos de contenção de rebeldia social. Eles são particularmente eficazes nas regiões de intensa urbanização que ainda não constituem conglomerados expressivos. Sua meta é evitar as rebeliões das províncias tal como podemos observar na Argentina de Carlos Ménen quando as regiões do norte empobrecido, com Santiago de Estero à cabeça, revelaram o custo social da estabilidade. Elas são também importantes como instrumento eleitoral como revelam as cifras obtidas pelo Partido dos Trabalhadores nas regiões do nordeste brasileiro. Mas são incapazes de enfrentar o drama urbano das grandes metrópoles em que o capital político da esquerda se corrói rapidamente. Por outro lado, a conversão por parte da centro-esquerda ao credo das altas finanças, trouxe outra limitação à importância dos partidos políticos. É óbvio que eles perderam identidade política, qualidade programática e sentido de representação, transformações que não tardarão em cobrar seu preço. Não obstante os êxitos eleitorais, é importante observar que a falta de fé nas máquinas partidárias é crescente e se aprofundará na medida em que as bases partidárias terão espaço cada vez mais reduzidos para efetivamente decidir em assuntos de estado. Os partidos encarnam, pois, a razão de estado como horizonte da política e, nesta medida, perdem eficácia na representação e mobilização da sociedade. No limite, a centro-esquerda passa a disputa com os conservadores o monopólio da fidelidade aos donos do dinheiro e o que era originalmente uma disputa caracterizada por perfis mais classistas, transforma-se em uma disputa inter-burguesa. O cenário que segue é de fácil previsão, pois tudo se resume a defender com mais eficácia a mitologia que antes se combatia. Neste ponto cabe perguntar: até quando este novo sistema partidário poderá responder aos anseios populares?
Na América Latina a esquerda finalmente chega ao governo, mas é difícil ser otimista sobre sua capacidade de transformação atendendo aquilo que sempre representou sua identidade: defesa dos interesses populares e formação anti-imperialista. Sem estes dois componentes poderá chegar ao poder, sempre com o beneplácito das elites e com escassa capacidade transformado, mas o compromisso assumido dificilmente não implicará em sua derrocada histórica.

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