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André Gunder Frank – A genial trajetória de um intelectual anti-acadêmico

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Por IELA em 07 de junho de 2005

André Gunder Frank – A genial trajetória de um intelectual anti-acadêmico.

Por Nildo Ouriques – Economista/OLA/UFSC
07/06/2005 – Para a geração que freqüentou as universidades no início dos anos oitenta e descobriu a importância da praxis política, André Gunder Frank era um nome que sempre aparecia como sinônimo de polêmica. Demorei a perceber que aquele adjetivo era a forma como o pensamento dominante tentava bloquear o conhecimento de um autor tão decisivo para as ciências sociais latino-americanas quanto indispensável para a juventude. A maior parte de suas obras não estavam, como ainda não estão, disponíveis em português, de tal forma que se tratava de um autor consagrado internacionalmente, bastante conhecido nos países de fala hispânica, e no Brasil, muito comentado, mas pouco lido.
Esta incômoda condição – ser muito comentado e pouco lido – Gunder Frank compartilhava com outros genuínos pensadores da realidade mundial e latino-americana, entre os quais estavam os brasileiríssimos Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, também reconhecidos como notáveis intelectuais brasileiros na Europa e nos Estados Unidos que, não obstante, amargavam o ostracismo em sua própria pátria. Enfim, autores que brilhavam nas universidades européias e estadunidenses e eram olimpicamente ignorados nas nossas. Durante algum tempo, toda a responsabilidade por esta situação era atribuída a ditadura militar, mas logo foi possível perceber que parte da intelectualidade que reinava no Brasil participaria ativamente do bloqueio político-intelectual a figuras que contribuíam como poucos a criação de um pensamento crítico na região. Agustín Cueva analisou com precisão esta ilustrativa situação em um ensaio memorável, lamentavelmente não publicado em português. (Las democracias restringidas de América Latina, Planeta/Letraviva, Ecuador, 1988)

No Brasil, é possível que o mecanismo mais exitoso no bloqueio a divulgação do pensamento crítico foi o CEBRAP, prestigioso centro de estudos bancado com apoio de dólares oriundos dos Estados Unidos que, sob o manto (consentido) de proteger a liberdade de pensamento consagrava o domínio do liberalismo na intelectualidade brasileira e especialmente na paulista. Recordo que, como estudante de economia, esperava a pauta estabelecida pela revista do CEBRAP como aquilo que líamos com interesse juvenil ou, no meu caso, éramos obrigados a ler porque os professores “críticos” e os aliados e/ou adversários da militância liam e reproduziam tanto em salas de aula como em assembléias universitárias. Uma afirmação do tipo “saiu na CEBRAP” equivalia para muitos quase a um “Lênin disse…”.

De todas as formas, várias gerações de professores e estudantes, especialmente o pessoal da pós-graduação, “conheceu” a turma da teoria da dependência por meio da revista paulista cujo auge foi o artigo assinado por FHC e José Serra – originalmente escrito quando regressavam de um período nos Estados Unidos – dedicado a bloquear a recepção dos radicais da teoria da dependência no processo de democratização nacional que apenas iniciava. Nesta guerra, até mesmo um texto de Marini foi alterado por Serra e FHC para melhor criticá-lo e, como poucos conheciam o original, uma vez mais a versão prevaleceu sobre a história real. A fabricação do consenso brasileiro contra a versão radical da teoria da dependência permitiria que os social-democratas ao estilo FHC e seu grupo, divergissem politicamente dos social-democratas ao estilo Lula e seus “radicais”, embora todos concebessem a acumulação de capital no país em termos rigorosamente iguais. Divergências políticas e partidárias a parte, todos estavam no mesmo barco teórico, como demonstra de maneira inequívoca a situação atual. Tratei exaustivamente este tema em minha tese de doutorado em 1995 (La teoria marxista de la dependência: una história crítica, UNAM), revelando que o marxista José Genoíno Neto e o social-democrata Fernando H. Cardoso professavam a mesma fé nas possibilidades do capitalismo periférico.

Entre os autores responsáveis pela criação da teoria da dependência, Gunder Frank foi certamente o mais criticado e, possivelmente, o mais adulterado como condição para seus adversários realizar a tarefa com maior facilidade. Tenho sob meus olhos uma nota póstuma publicada por um jornal paulista (Folha de São Paulo 26/04/2005) em que novamente a obra de Gunder Frank é apresentada com extrema malevolência e não poucas imprecisões. No texto, uma nota da redação nos “informa” que Gunder Frank “ligado à esquerda marxista norte-americana, defendia que a dependência condenava à estagnação econômica, FHC e Faletto argumentavam que este desenvolvimento já estava ocorrendo, porém de forma subordinada”.
Não menos importante, a mesma fonte jornalística indica que “há até hoje divergências sobre a paternidade da teoria – na mesma época em que Gunder Frank publicava seu livro Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina, os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto finalizavam Dependência e desenvolvimento na América Latina, lançados ambos em 1967” dando mostras de um indisfarçável orgulho provinciano por um de nossos intelectuais.

A nota merece um breve comentário, pois com insistência inusitada sigo escutando a mesma música por anos nos principais meios de comunicação do país. Gunder Frank foi, desde cedo, o grande e primeiro animador do debate acerca do que mais tarde, seria reconhecido como a teoria da dependência. A polêmica guarda íntima relação com o Brasil, pois já em 1964 em um período que permaneceu na UNB a convite de Darcy Ribeiro, Gunder Frank visitou o Congresso Nacional e desbancou o que chamou de “mito do feudalismo na agricultura brasileira”; de quebra, tornou irreversível a crise do monopólio que os Partidos Comunistas mantinham então sobre o marxismo tanto no seio da esquerda como entre a intelectualidade. Um destes mitos destruídos por sua genial intuição foi propiciado pouco tempo antes do golpe de 1964 quando escreveu em Brasília o ensaio intitulado “Capitalism and the myth of feudalism in brazilian agriculture”, logo publicado na coletânea “Capitalism and underdevelopment in Latin América. Historical Studies of Chile and Brazil” (Monthly Review Press, New York and London, 1967). Note-se que, se falamos de paternidade da teoria, somente em 1968 surgiria o mencionado texto de Cardoso e Faletto e, como sabemos, não surgiria só: no mesmo ano já corria na forma de cópias o clássico Dialética da Dependência de Ruy Mauro Marini que, expressamente, acolhia uma das máximas “frankianas”: o Brasil e os demais países latino-americanos não marchavam para a estagnação, mas para o desenvolvimento do subdesenvolvimento, fórmula que o mesmo Marini reputaria como “impecável”. A nova formulação era incômoda para o pensamento da época, pois inclusive as formulações de esquerda estavam impregnadas por fragmentos das teorias da modernização e, mesmo entre os marxistas, ainda se pensava o Brasil como resultado do atraso feudal e não como subproduto necessário da acumulação em escala mundial. No PCB, foi visível a irritação do pensamento majoritário contra a adesão parcial de Caio Prado Júnior a este marxismo crítico.

Creio que esta exposição despreocupada à crítica que caracterizou a trajetória intelectual e política de Gunder Frank, sua admirável ousadia, contrastava com a prudência que costuma marcar a carreira da maioria dos intelectuais consagrados ainda hoje. Ele ainda agia como o velho e necessário intelectual público que reconhece a função social de um pensador no mundo moderno e especialmente nas condições da periferia capitalista. É claro também que a genial intuição de Frank acerca de problemas teóricos e dramas reais inerentes ao subdesenvolvimento, mereceram muitas vezes acertadas críticas de seus adversários e mesmo de seus companheiros de rota, posto que ele nem sempre foi um cuidadoso carpinteiro na elaboração de categorias para sustentar suas próprias e importantes descobertas. Theotonio dos Santos, por exemplo, não poupou críticas a alguns de seus escritos, muito embora nunca deixasse de tê-lo como interlocutor decisivo. Frank valorizava a polêmica e não decepcionou em suas respostas. Contudo, o que realmente contava na contribuição de Frank era seu dom de destruir a reprodução mal feita e o eurocentrismo ainda tão presente nas ciências sociais, da qual não escapou obviamente nem mesmo o próprio e intocável Marx. Em seu último livro, ReOrient: global economy in the Asian Age (University of California Press, Berkeley, 1998) ele voltou a carga com o mesmo humor ácido e irreverência que marca toda sua trajetória de intelectual herege, reivindicando um genuíno “globalismo” em oposição ao eurocentrismo que informa as teses sobre a globalização. Esta verdadeira reconstrução histórica das ciências sociais sugerida insistentemente por Frank, apenas começa a ser feita e somente poderá ser levada a cabo com êxito, caso conseguirmos superar o império da disciplina, a falta de educação científica e o desprezo pela história que acompanha a carreira de nossos cientistas sociais, especialmente a dos economistas. Em um mundo universitário sempre hostil, Frank conseguiu muito, quase o impossível se consideramos que nos últimos anos o cerco acadêmico sobre o pensamento crítico fechou-se completamente e tornou as universidades da periferia sistêmica escravas da reprodução do conhecimento gerado no centro. Restou neste ambiente, contribuições intelectuais muito modestas – quando existentes – e de acordo com a tradição colonial, currículos exuberantes!

Este último livro reproduz, de certa forma, antiga polêmica que travou com Gunnar Myrdal, o economista Nobel e autor de Asian Drama, a quem Gunder Frank criticou em um inspirado artigo no qual concordava com Myrdal que “até mesmo os hereges permanecem limitados pelo pensamento tradicional ao formular suas heresias”, mas o censurava porque este considerava como válida a “generosa suposição de que o ponto de vista ocidental é bastante adequado para o estudo das condições ocidentais”. André Gunder Frank mostrava de maneira clara o quanto era falso o suposto de todo o pensamento social dominante quando insistia que as características próprias da África e América Latina constituíam a causa de seu subdesenvolvimento. A “totalidade” era o grande ponto de partida de Frank, razão pela qual afirmava que “todos estes pseudo-científicos que não examinam nem um momento o sistema social em conjunto, observam somente as características que lhes resultam convenientes e excluem de sua explicação todas as características que lhes parecem inconvenientes, abandonam por completo este principio realmente sagrado da ciência.” (pp. 139/140). Por esta mesma razão, poucos anos depois publicou outro livro indispensável, Acumulação mundial 1492-1789, orientado pela tentativa de construção de uma genuína história econômica universal, na qual a economia mundial aparecia como resultado de um “único e abrangente (embora desigual e irregular) processo de acumulação de capital” (p. 22)
Em escritos anteriores, realizados aqui mesmo no Brasil, embora somente publicados mais tarde no Chile, Frank afirmaria sempre a tese que lhe acompanhou até seus últimos dias, ou seja, que “desenvolvimento e subdesenvolvimento estão relacionados através da influência mútua, ou seja, recíproca, que tiveram, tem e terão um sobre o outro no transcurso da história” (p.11) (Sobre el subdesenvolvimento capitalista, Editorial Anagrama, Barcelona)

A crise mundial foi de maneira recorrente tematizada na obra de Frank e sobre a qual destacamos dois tomos onde estão recolhidos vários artigos, alguns deles decididamente brilhantes. Ali também sua atinada intuição apareceria quando chamava a atenção de todos para o fato de que as relações entre o “socialismo” e o “capitalismo” marchavam, a despeito da guerra ideológica e fria, bastante bem. Esta percepção, orientada pela convicção que os dois “sistemas” estavam unidos por um único mercado mundial, determinou sua saudação ao que chamou de “empresa trans-ideológica” e a inscrição das economias socialistas na divisão capitalista internacional do trabalho. Por esta razão, irritando críticos à esquerda e à direita, Gunder Frank afirmava ainda em 1976 que os países “socialistas” provavelmente transitavam para o sistema capitalista e que, independentemente de um juízo sobre a natureza daquela formação social, era evidente que “formavam, cada vez mais, parte integrante do sistema econômico mundial capitalista”. Todo o trabalho destes livros estava orientado a “documentar esta integração e sua tendência acumulativa e inclusive acelerada”, revelando um pesquisador atento da realidade e da história econômica das relações internacionais (p. 246). Quem se atreveria a formular tal heresia duas décadas antes da queda do muro de Berlim?

Sem intenção de realizar uma exaustiva retrospectiva da obra de André Gunder Frank – tarefa que ele próprio realizou em um importante ensaio autobiográfico – creio oportuno sublinhar sua longa coerência como intelectual crítico, que soube, a despeito das modas que invariavelmente dominam o meio universitário em todas as épocas, manter fidelidade a um programa de pesquisa que se revelou vital para entender e transformar o mundo atual. Em 1969, muito antes de Immanuel Wallerstein formular sua teoria do sistema-mundo e insistir na existência de uma economia-mundo capitalista, Gunder Frank pretendia uma “teoria histórica do subdesenvolvimento capitalista na Ásia, África e América Latina”. Neste mesmo ano, defendeu na V Reunião de Faculdades de Economia da América Latina que se realizou em Maracaibo, Venezuela, que todos necessitavam de “uma teoria científica do subdesenvolvimento capitalista, que possa explicar estes fatos, devendo esta ser histórica, estrutural e dialética, para coadjuvar na superação deste subdesenvolvimento pela única via possível, dada a estrutura e a política da burguesia, para não falar do imperialismo. A única via é a revolução armada, a liberação nacional e o desenvolvimento socialista” (p. 175). Os adversários aproveitavam a ocasião para chamá-lo de aventureiro uma vez que a morte de Che Guevara na Bolívia ocorrida um ano antes, indicava para muitos que a luta armada não tinha possibilidade alguma naquela conjuntura. Mas era evidente que Frank fazia gala de uma estreita relação entre a reflexão teórica e a praxis política que gradualmente foi evitada pela maioria dos cientistas sociais da região. Quem se atreveria a defender no meio acadêmico atual algo inclusive mais modesto, como por exemplo, a relação entre economia e política?

Para os que iniciam o estudo em ciências sociais, creio que será sempre útil regressar ao seu conhecido ensaio Sociología del desarrollo y subdesarrollo de la sociología: un examen del traje del imperador, publicado originalmente em 1970 e, na forma de livro, em 1973 (América Latina: subdesarrollo o revolución, Editora Era, México). O diagnóstico ali apresentado sobre a sociologia do desenvolvimento, certamente segue sendo útil para confrontar com aquilo que Agustín Cueva denominou a “sociologia da ordem” atualmente dominante em nosso continente. Quantos hoje estariam dispostos a realizar um diagnóstico tão preciso e corajoso como ele realizou na década de sessenta? E quantos estariam dispostos a admitir que tal postura é tão necessária hoje quanto o foi naquela época? Recordemos Frank: “Submetido a uma análise crítica, esta nova sociologia do desenvolvimento resulta empiricamente nula quando confrontada com a realidade, teoricamente inadequada nos termos de suas próprias normas clássicas sócio-científicas, e ineficaz em seu propósito de levar a cabo suas supostas intenções de promover o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos.” (p. 35). Ora, não seria este diagnóstico hoje aplicável a maioria dos estudos políticos e econômicos em nossas Universidades? O mal denominado “neoliberalismo” não é senão outra versão da velha sociologia do desenvolvimento revestida da colonial e ideológica tentativa de nos levar para o primeiro mundo na base de sucessivas ondas de modernizações do subdesenvolvimento? E o domínio da neoclássica nas faculdades de economia e especialmente em nosso sistema de pós-graduação, não é apenas outro nome para as mesmas insuficiências metodológicas, a mesma falta de compromisso com a transformação revolucionária da realidade atual e a velha reprodução de teorias alheias cujo objetivo estratégico é perpetuar o subdesenvolvimento e a dependência?

André Gunder Frank foi responsável por outra formulação que se tornaria clássica ao estabelecer os limites históricos das burguesias latino-americanas sob o capitalismo dependente ao caracterizá-la como “lumpemburguesia, responsável, portanto, por um lumpemdesenvolvimento”. O orgulho que ainda permanece em muitos intelectuais críticos pelo “diversificado e complexo parque industrial brasileiro” impediu, obviamente, que todas as conseqüências da formulação fossem exploradas adequadamente. E igualmente decisiva foi sua formulação sobre a opção “subdesenvolvimento capitalista ou revolução socialista”, que apresentou em Havana, no ano 1968 e publicado algum tempo depois em coletânea de ensaios. (América Latina: subdesarrollo o revolución, Editora Era, 1973, México).

Alimentou uma extraordinária polêmica com Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Samir Amim que data de 1980, sobre a dinâmica da crise global, tema recorrente em seus artigos e livros, sempre recordando o postulado fundamental: a predominância do todo sobre as partes. Samir Amim recordou esta última parceria carinhosamente, lamentando a ausência que no futuro Frank fará.

Sua influência não se limitou à América Latina como podemos observar no indispensável livro de Walter Rodney, dirigente guianês assassinado em seu país em junho de 1980, logo após publicar um livro ainda desconhecido de todos nós, “De como Europa subdesarrolló a África” (Siglo XXI Editores, México, 1982).

Recordo quando o vi pela primeira vez, no final da década de oitenta, sentado sob o sol, nas portas do imponente edifício do Instituto de Investigações Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México. Reconhecendo-o pela lembrança de uma velha foto, me aproximei sem cerimônia e perguntei: “Frank, afinal, a velha dependência existe?” Ele não se surpreendeu com a pergunta e, como se estivesse conversando com um velho conhecido apontou para a verde grama sob seus pés, retrucou: “a grama existe”? Respondi afirmativamente e ele então arrematou: “tal como a grama, a dependência existe; a grande questão segue sendo o que vamos fazer com ela”. Minutos depois assisti a sua conferência em uma mesa compartilhada com velhos conhecidos, emocionado por voltar ao México e a América Latina que tanto amou e com a qual se sentia plenamente identificado, defendendo para horror de muitos que não estava à vista um processo de ruptura com o capitalismo e tantas outras hipóteses, sempre muito sugestivas.

Esta capacidade de polemizar com o pensamento estabelecido, ampliando novos horizontes e oferecendo pistas geniais que muitas vezes ele próprio não soube aproveitar, fazia de Gunder Frank uma figura obrigatória nos seminários internacionais organizados na América Latina durante as últimas quatro décadas. Sua generosidade e sensibilidade para com todos era uma marca que sempre lhe acompanhou como também o reconhecimento de que muito de suas conquistas teóricas e suas opções de vida, ele tributava ao ser e ao mundo latino-americano.

Visitou Florianópolis em 2002 para um seminário e permaneceu na cidade por mais alguns dias, discutindo com a mesma vivacidade e humor, apesar de seu delicado estado de saúde, debilitado naqueles dias por uma fratura que o obrigava ao uso de muletas.

Deixou uma obra que necessita ser conhecida e, sobretudo uma conduta cada dia mais difícil de encontrar nos cientistas sociais latino-americanos, especialmente, os brasileiros: a ousadia! Renunciou muito cedo as benesses que o mundo acadêmico concede ao bom comportamento ao renunciar, em plena guerra contra o Vietnam, a condição de professor titular, o que lhe valeu não poucas amarguras na velhice, quando não tinha emprego nem salário para sobreviver dignamente depois de tantos anos de trabalho e dedicação ao estudo, mas mesmo assim, não renunciou a suas posições. Numa sociedade em que quase todos têm seu preço e buscam a justificativa mais elegante para dar sua contribuição ao cinismo universal, a conduta de Frank era novamente revolucionária. Nos últimos anos necessitava emprego e as universidades dominadas pelo doutorismo não podiam abrigá-lo, embora fosse provavelmente o economista mais citado mundialmente. Com outro colega do departamento de economia da UFSC checamos a possibilidade de trazê-lo por um semestre, mas os órgãos que poderiam acolher nossa solicitação tiveram seus recursos orçamentários contingenciados e, em conseqüência, não dispunham de bolsas para casos como este.

Na última disputa para reitoria na UFSC o convocamos juntamente com outros intelectuais a assinar um manifesto em favor de nossa candidatura a reitor ao que respondeu com a imaginação de sempre e uma lúcida dose de ironia: “claro que sim, mas não sei se isto o ajudará!” Escolado com tantas lutas e muitas décadas de trabalho universitário, creio que olhava nossa empreitada com respeito, mas sem deixar no ar uma necessária advertência: “você ainda acredita que poderá mudar a universidade?”

Recentemente o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) o procurou para republicar o velho texto sobre a agricultura brasileira. Não deixa de chamar a atenção que muitos anos após, um importante movimento social, geralmente considerado fora da ordem, quase sempre as raias da criminalização pela ação dos governos democráticos, revaloriza a contribuição histórica de um autor igualmente incômodo para a ordem burguesa. Ele ficou contente com a possibilidade e solicitou a uma amiga comum a revisão, reclamando a unidade do texto, pois o mencionado ensaio estava publicado em português, porém em duas partes e em revistas diferentes.

Nesta nova conjuntura da América Latina, na qual as classes subalternas retomam a iniciativa política, deveremos estar atentos ao novo que a realidade rebelde do continente sempre nos traz, como ensinava André Gunder Frank. Trata-se de um período em que não deveríamos desprezar as conquistas teóricas e políticas acumuladas em tantos anos de esforço individual e coletivo na construção de uma sociedade socialista. Conhece-las parece-me que é o mínimo que um genuíno cientista social, e especialmente os economistas, devem fazer neste momento.

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