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Catástrofes Socionaturais: A Questão Fundiária-Imobiliária na Tragédia do Litoral de São Paulo (2023)

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Por Carlos Walter Porto-Gonçalves em 23 de fevereiro de 2023

Catástrofes Socionaturais: A Questão Fundiária-Imobiliária na Tragédia do Litoral de São Paulo (2023)

Foto: Divulgação/Defesa Civil de São Sebastião

Texto de Carlos Walter Porto-Gonçalves e Wilson Martins Lopes Júnior

Mais uma tragédia ganha o noticiário e, mais importante ainda, afeta a vida, sobretudo a dos mais pobres, com o advento dos deslizamentos de encostas no litoral Norte de São Paulo, em 19 de fevereiro de 2023. Trata-se de uma tragédia que atingiu uma área onde convivem, embora separadas por uma rodovia (Rio-Santos), populações pobres e condomínios onde estão localizadas muitas segundas residências dos setores mais ricos da sociedade brasileira, conforme bem destacou o Ministro Marcio França em pronunciamento sobre a catástrofe [1] (Rocha e Franco, 2023).

Até mesmo uma ministra de estado representante dos setores oligárquicos da nossa sociedade, a Srª Simone Tebet, Ministra do Planejamento do Governo Lula da Silva ficou isolada durante a tragédia não podendo sequer comparecer à reunião realizada na própria região onde estiveram vários ministros do governo federal, autoridades do estado de São Paulo e de vários municípios atingidos, reunião essa encabeçada pelo Presidente da República e pelo governador do estado de SP.

Uma verdade comum às nossas cidades se mostrou ali evidente: nossa arquitetura e urbanismo têm a cara da profunda desigualdade social tal como se conforma territorialmente, em sua geograficidade. O preço (a renda) da terra, animado por uma ativa especulação fundiária-imobiliária, dá conta das casas que desabam e das que permanecem sem maiores consequências, pois empurram os mais pobres para as áreas mais inseguras e íngremes, ironicamente as áreas topograficamente mais altas, em benefício da ocupação das áreas mais seguras pelos grupos-classes sociais do “andar de cima” que, ironicamente ocupam as áreas mais baixas e planas.

Vem se tornando lugar comum no noticiário dessas tragédias associá-las às mudanças climáticas globais, numa aceitação acrítica da agenda do capital financeiro internacional que conseguiu impor o mercado de carbono de modo praticamente sem alternativa no debate acerca da crise ambiental planetária (Moreno et al., 2016). Um reducionismo que beira o negacionismo que tanto condenam. A ênfase nas mudanças climáticas sobrevaloriza a escala global subestimando as mediações das escalas regionais e locais necessárias para compreender essas catástrofes socionaturais.

A imprensa vem destacando, geralmente entrevistando especialistas, o caráter cada vez mais frequente dos registros de extremos climáticos. Nesse sentido, a ação dos poderes (que deveriam ser) públicos na região beira a irresponsabilidade. Consideremos que a região do litoral paulista se inscreve entre as recordistas de chuvas no Brasil, tendo os maiores registros desse fenômeno em todo o território nacional: o vale do Rio Itapanhaú, no município de Bertioga, já registrou média pluviométrica de 4.457.8 mm anuais (Pellegatti, 2007; Oliveira, 2003). Imaginemos o que seria tornar ainda mais extremo, como se vem acusando diante das mudanças climáticas globais, os índices pluviométricos que já registram 4.457.8 mm anuais! Os 483 mm de chuvas que caíram em São Sebastião em 24 horas não deveriam causar surpresa, nem tragédias. E não se invoque falta de aviso, pois em 1967 o município de Caraguatatuba foi palco de uma tragédia da mesma natureza com seus deslizamentos que registrou o total de 436 mortos, tragédia que inclusive ensejou que fosse criado o sistema de defesa civil do estado de SP. Enfim, sabemos, ou deveríamos saber que não se trata de uma tragédia natural, como se costuma dizer. Avancemos.

O caso em tela revela as implicações de nossa contraditória formação territorial, onde as terras não têm o menor controle por parte daquela instituição que deveria controlá-la haja vista que não raro a área total declarada pelos proprietários de terra somada às UCs, terras indígenas e quilombolas chega a uma área maior que a área total do território brasileiro, como se o país tivesse mais de um piso [2] (Girardi, 2008). O estado brasileiro, a rigor, não tem o menor controle do patrimônio de que é proprietário eminente, como é o caso da terra.

Houve uma época em que grandes juristas alertaram a sociedade brasileira sobre a gravidade dessa situação como nas obras primas “Ordem Privada e Organização Nacional”, de Nestor Duarte; “Os Donos de Poder”, de Raimundo Faoro e “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal. O modo como o poder privado, desde o local, organiza o poder nacional mostra como os “donos do poder” através do “coronelismo da enxada (e do agronegócio) e voto” se reproduz, seja com voto em papel seja com o voto eletrônico, como os grandes oligarcas que hoje dominam as nossas câmaras municipais, nossas assembleias legislativas estaduais e federal e, ainda, o Senado da República. Na verdade, o descontrole do poder público de seu próprio patrimônio é fruto do controle efetuado por um poder nada republicano, isto é, pelo poder privado que organiza o poder nacional conforme o feliz título do livro de Nestor Duarte.

Essa matriz de controle privado do que deveria ser público não se restringe à questão fundiária, sabemos. Basta olharmos como se distribuem os apoios financeiros à agricultura com amplo apoio aos latifúndios do agronegócio; como se distribui entre as classes sociais a estrutura tributária indagando, por exemplo, quanto de imposto de exportação agrava a exportação de matérias primas agrícolas e minerais (Lei Kandir); quanto de nosso orçamento público anual se destina ao setor financeiro que controla a dívida pública; quanto de imposto se aplica sobre os lucros financeiros e dividendos (Consultar o site da Auditoria Cidadã da Dívida: https://auditoriacidada.org.br). Poderíamos ainda aduzir, regressando de modo mais elevado à tragédia imediata que nos toma a atenção, o caráter nada popular dessas oligarquias no poder haja vista que, na mesma região geográfica ora em apreço, o estado brasileiro com a composição de classe acima indicada, ainda, em plena ditadura empresarial-militar (1964- 1985) construiu uma usina nuclear numa antiga comunidade de pescadores denominada como Itaorna [3] que, em língua tupinambá, significa terra podre, terra sem sustentação, enfim, terra nada segura.

Embora saudemos a iniciativa dos governantes dos três níveis do estado brasileiro terem, nesse caso, atuado de modo conjunto não os isenta de buscar soluções efetivas para os conflitos e antagonismos já existentes entre eles, conforme se vê no documento oficial do município de Bertioga (apud Alves, 2009, p. 64).

Um desses conflitos ocorreu entre 2013 e 2015 e opôs prefeitos municipais e o governo estadual quando da crise de escassez hídrica que afetou o estado de São Paulo, à época sob a responsabilidade do atual Vice-presidente Geraldo Alckmim, e que deu ensejo à grande obra de transposição das águas do Rio Itapanhaú em direção à bacia do Tietê de modo a garantir o abastecimento de água aos moradores da Grande São Paulo (Santos, 2021; G1, 2018). Ou ainda, em 2020 quando o então Ministro do Meio Ambiente, Sr. Ricardo Salles, ameaçou fazer a “boiada passar” sobre as UCs da região a fim de garantir grandes investimentos imobiliários, o que gerou ampla oposição do movimento ambientalista e popular (Pontes, 2020; Welle, 2020).

O fato de o governo federal ter garantido que, dessa vez, os recursos para construção de casas para as famílias afetadas não garante que a questão será devidamente encaminhada, pois ela expõe uma das principais contradições da sociedade brasileira e raiz de nossas principais mazelas sociais, a saber, a questão fundiária. É o que já se viu na aparentemente pueril resposta do Prefeito do município de São Sebastião de que a prefeitura não dispõe de terrenos para a construção dessas habitações. Afinal, os prefeitos dos municípios da região deveriam fazer um levantamento de quantos imóveis nas áreas pobres estão devidamente legalizados vis a vis os imóveis localizados em condomínios fechados, muitos dos quais abrigam segundas residências de proprietários de todo o estado de São Paulo, inclusive da Região Metropolitana de SP, que habitam tais residências não permanentemente como o fazem os moradores dos municípios da região. Informe-se que em alguns municípios da região, como em Bertioga, a densidade demográfica bruta nos bairros de condomínio dos ricos é, em média, de 10 habitantes por hectare enquanto nos bairros pobres está acima de 1.700 habitantes (Alves, 2009). O abandono das populações mais pobres na região é de tal ordem que em vastas áreas municipais a gestão territorial está entregue à iniciativa privada, como é o caso da Riviera de São Lourenço, em Bertioga. (Alves, 2009). Enfim, dizer que não há terrenos disponíveis para construção de habitações populares dignas é uma verdadeira falácia diante dessa destinação socialmente desigual das diferentes áreas desses municípios, o que acaba gerando pressão política pela flexibilização das áreas de UCs ensejando que a “boiada passe”.

Relembremos que o documento oficial de Bertioga acima referido afirma justamente a necessidade do poder estadual e federal flexibilizarem essas áreas para desentravar o desenvolvimento local.
Uma hipótese muito provável é que os cadastros fundiários desses municípios seja um grande grilo de terras e somadas as áreas particulares legalizadas, com certeza, revelariam uma área maior que os próprios municípios, como tem sido comum no Brasil. Nessa região específica esse fenômeno, é animado pela ativa especulação imobiliária mobilizada pelo setor da construção civil que se dedica a construir condomínios de luxo. Nesse contexto dificilmente haverá terrenos disponíveis para garantir habitação popular digna e não é por falta de espaço, nem de dinheiro haja vista, por exemplo, as verbas obtidas da Petrobrás por vários governos municipais, inclusive por compensação ambiental (G1, 2022). O caráter de classe de nosso poder (que deveria ser) público salta à vista e o controle do estado por parte das oligarquias é decisivo para transformar a natureza, a terra em particular, em propriedade privada. Esse pulo gato, isto é, transformar a natureza em propriedade, é que funda o estado. Assim, um dos primeiros desafios a ser enfrentado é o do cadastro fundiário de cada município da região. Toda reunião conjunta daqui prá frente deve começar com a análise desse cadastro e seu cotejamento com o mapa real, pois o conceito de grilagem de terras é exatamente o de legalizar a ilegalidade: os cadastros registram a própria fraude. Aliás, como costuma constar nos talões do jogo do bicho “vale o que está escrito”.

A sociedade brasileira, sobretudo seu “andar de baixo” clama por um poder público que seja público, que seja republicano. Não tergiversemos, a questão fundiária está na raiz e na superfície de nossa tragédia social. Se nossa sociedade continua empurrando para frente seus problemas de fundo, a natureza aí está a nos alertar, de modo trágico, sobre essa falta de vontade politicamente organizada. Enfim, não se trata de uma tragédia natural, nem tampouco social, conforme a matriz de conhecimento que hegemoniza nossas universidades, mas sim de uma tragédia socionatural. Não se resolverão essas tragédias que, no fundo, são políticas, nos mantendo no paradigma eurocêntrico, felizmente, em crise!
Por fim, registre-se a triste e trágica ironia de ser a natureza tão invocada para “vender a paisagem” pela indústria do turismo e da construção imobiliária ser a mesma que nos alerta, através de catástrofes sucessivas, para nossa iníqua estrutura social e política.

Notas

1 – O ministro afirmou: “Ali nós temos um pouco do que é o Brasil: casas muito sofisticadas, ambientes de muita riqueza beirando as praias. E as pessoas que vieram construir essas riquezas morando nos morros, parecido com o ambiente que temos no Rio de Janeiro”.

2 – O geógrafo Eduardo Girardi em sua tese de doutorado nos chama a atenção que o cadastro do INCRA é realizado “com dados de natureza declaratória”. O sistema possui fragilidades e muitas são as razões para a área declarada não ser a área real do imóvel, a saber: diminuição de impostos, o aumento de crédito rural e grilagem de terras, bem como ocultar a existência de terras improdutivas” (GIRARDI, 2008, p. 202 . Grifos originais).

3 A Comunidade de Itaorna, em Angra dos Reis-RJ, fica a cerca de 110 km em linha reta de Caraguatatuba-SP, um dos municípios mais afetados pela atual tragédia. As características geográficas
são as mesmas entre as duas áreas. Os serviços meteorológicos previam para os dias subsequentes à tragédia o deslocamento para Angra dos Reis dos sistemas atmosféricos que provocaram as chuvas extraordinárias de fevereiro. Cuidemo-nos. Os Tupinambás avisaram ao dar nome próprio a Itaorna.

Bibliografia

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Carlos Walter é Geógrafo – Professor Visitante do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. Professor Titular da UFF e Coordenador do LEMTO-UFF: Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades da UFF. Wilson Martins Lopes Júnior é Geógrafo. Professor Associado do IEAR da UFF.

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