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Celebridade da miséria

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Por IELA em 19 de novembro de 2004

Celebridade da miséria
Raquel Moysés – jornalista no OLA/UFSC
19/11/2004 – Elaine é uma menininha. Mas já sabe o que é viver na necessidade, no limite da sobrevivência. Ela conhece o que é a precariedade de viver uma vida de quase nada. Pouca comida, roupa escassa, chinelinho remendado, poucas páginas de caderno, toco de lápis, livro nenhum…
Mas, o que, até há pouco tempo, era talvez apenas o desejo de ter algo que nem sabia bem o que era, lhe foi despertado, de modo violento. Ainda que em nome do amor, da solidariedade e tantos outros desses generosos sentimentos. Que podem ser lindos, mas são instrumentalizados para “pagar” uma dívida desonrosa, que muito do povo carrega na consciência, mas não cabe a ele saldar.
Faz dias que a mídia não fala mais de Elaine. Lembra-se dela? A menina de poucos anos que não recebia a humilhante bolsa-escola do governo e vivia na triste miséria com sua velha avó? Pois é, a lembrança dessa criança é agora uma vaga imagem na mente de incontáveis telespectadores que a viram tornar-se, por um par de dias, uma celebridade do mundo da miséria. Penalizados com sua condição de miserabilidade, milhões de pessoas ficaram comovidas. Muitas foram pagar a sua culpa, bem alimentada ao longo de milênios pelas religiões, cumprindo gestos rituais de consumidor.
O casebre de Elaine e de sua avozinha foi de um dia para o outro invadido por objetos do mercado de consumo. Roupinhas infantis adultizadas da moda das estrelinhas, bijouterias, sandalinhas, bolsinhas, material escolar…. até uma geladeira nova, cheia de gulodices para quem vivia com a barriga a roncar. E milhares de pessoas indiferentes, repentinamente, se espelharam naqueles “voluntários” do bem, e se viram tomadas de doce piedade diante daquelas cenas explícitas de bondade.
Elaine apareceu no horário nobre da rede Globo, um dia depois de ter sido despida de sua identidade, no domingo de surpreendentes aventuras do Fantástico. Vestida como uma tietinha, roupinhas da moda, o rosto iluminado pelo calor de tantos benfazejos carinhos recebidos de todos os lugares em que tantas outras Elaininhas vivem desprezadas e anônimas pelas ruas, morros e outros buracos periféricos em que se contam às milhares.
Por breves horas de dois ou três dias Elaine, pequenina, virou uma celebridade do espetáculo chamado de jornalismo. Depois, como num passe de mágica, como acontece com tudo que a tela da tevê faz brilhar e depois joga para os cantos obscuros do esquecimento, desapareceu de cena. Foi engolida no anonimato de menininhas guarani, xokleng, indianas, palestinas, iraquianas, haitianas, africanas, que vivem a sua cotidiana dor na mais completa indiferença da maior parte da humanidade possuidora de bens. Essas menininhas, desaparecidas nos vórtices da violência e do desespero, quando muito aparecem em cenas que despertam medo e terror, nas grandes explosões da guerra, das guerrilhas e nas notícias policiais que contam de horrores acontecidos nos lugares inimagináveis em que vive gente. Comunidades inteiras de seres humanos invisíveis, que inexistem quando ficam fora desses focos de sensacionalismo, muito bem planejados e a serviço de um projeto de mundo para poucos, que diariamente a mídia expõe aos olhos divertidos ou apavorados dos consumidores de espetáculo.
Espectadores do efêmero que, em poucos minutos, abstraem da mente a cena de terror e voltam para as páginas da internet, os videogames, as marcas da moda, os celulares do momento, os exageros da gula e a solidão do bem-estar,quase sempre vivido sem o calor de amores que regeneram e despertam o humano da inércia e do desespero.
Aos olhos de comunicólogos, essa conversa em torno de Elaine agora pareceria desprovida de interesse e atualidade. Não é mais factual. A mídia se alimenta da caça de renovadas cenas grotescas de humana miséria ou de grandes confirmações da eficácia do livre mercado. Elaine e as outras menininhas com histórias parecidas de abandono e desencanto só alimentam a voracidade do público consumidor quando estão no auge da exposição de sua mais íntima e frágil humanidade.
Depois, o que resta para esses pequeninos seres, é um desamparo ainda mais dolorido. O peito de passarinho ferido pelo desejo de um mundo em oferta de ocasião e que, eles não sabem, é de infelicidade abundante. O verdadeiro mundo, o jardim de delícias que lhes pertenceria, foi para sempre usurpado do gênero humano. Virou artigo em liquidação de final de temporada.

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