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Do começo, ou do que acreditamos ser o começo, até a Nakba

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Por Marino Mondek em 24 de maio de 2024

Do começo, ou do que acreditamos ser o começo, até a Nakba
A expulsão dos palestinos em 1948
Desde o começo do recrudescimento do genocídio palestino, perpetrado pelos sionistas, tenho escrito diversas notas sobre a questão. As notas variam muito de teor, tema, tamanho… Muitas delas não estão prontas para ser divulgadas, e tenho a pretensão de fazê-las, mas, como em maio celebra-se a Nakba, resolvi tentar formar um texto a partir de algumas delas.
Vamos lá.
A TERRA NOS É ESTREITA
(تضيق بنا الارض – محمود درويش)
A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar
A terra nos espreme. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar.
Fosse ela a nossa mãe para se compadecer de nós.
Fôssemos nós as imagens dos rochedos
que o nosso sonho levará como espelhos.
Vimos os rostos daqueles que, na derradeira defesa da alma,
o último de nós matará.
Choramos pela festa de seus filhos e vimos o rosto
dos que precipitarão os nossos filhos pelas janelas deste último espaço.
Espelhos que a nossa estrela polirá.
Para onde iremos após a última fronteira?
Para onde voarão os pássaros após o último céu?
Onde dormirão as plantas após o último vento?
Escreveremos os nossos nomes com vapor
carmim, cortaremos a mão do canto para que a nossa carne o complete.
Aqui morreremos. No último desfiladeiro.
Aqui ou aqui… plantará oliveiras
Nosso sangue
Mahmud Darwich
É muito difícil entender algumas situações históricas, e a atual situação palestina é uma delas. Temos sido coniventes com o genocídio de um povo histórico nestes últimos 76 anos. O que vemos hoje acontecendo com os palestinos é simplesmente a dose cavalar do que vem sendo feito a conta-gotas nas últimas décadas. A história da Palestina é muito complexa, mas vou pegar um atalho.
A Palestina é assim denominada por conta da forma com que os gregos e os romanos chamavam os filisteus, um dos antigos povos que moravam na região. Lá também foi lar dos cananeus, um antigo povo que habitou a região que foi denominada como Canaã. Esse povo, que é declarado como um povo original, é ascendente direto do que hoje entendemos como palestinos. Uma das provas disso é a cidade de Jericó, cidade considerada a mais antiga do mundo, com mais de dez mil anos [1] , em cujas ruínas e artefatos arqueológicos há traços de DNA dos atuais moradores da cidade, os palestinos. Isso se repete em diversos outros locais da região. O exemplo de Jericó, por ser o marco da cidade mais antiga, é emblemático.
Este é nosso primeiro marco:  no século LXXX antes da era cristã, um povo histórico, que se transformou no que hoje chamamos de palestinos, assentou-se na região. A título de comparação: o judaísmo foi fundado, na mesma região, aproximadamente em 2 mil a.C., o que quer dizer que: estamos mais próximos temporalmente do surgimento do judaísmo do que o surgimento do judaísmo está para a fundação de Jericó.
Darei um primeiro grande salto temporal: para o século XIII a.C., quando os Hebreus chegaram à região e começaram sua ocupação. No longo período entre o século IX a.C. e o século I, da era cristã, os hebreus passaram por diversas diásporas e seu povo abandonou a região, dando fim ao que entendemos como ocupação hebraica da Cananeia. Alguns poucos judeus ortodoxos ficaram na região, em razão de sua relação com os locais sagrados judaísmo, muitos destruídos pelos romanos. Vale destacar que a região dominada pelos hebreus não alcançou a totalidade do território palestino, mas sim em parte da região central e leste, sendo, em seu ápice, o território do mapa abaixo.
O segundo salto [2]  ocorre na segunda metade do século VI, quando os povos da região foram conquistados pelos árabes muçulmanos. Logo após a morte do profeta Maomé, o Islamismo passou por uma enorme expansão territorial. Ele imperou na região até o século XI, quando se iniciaram as cruzadas. A historiografia nos conta que havia certa harmonia e uma baixa perseguição a minorias religiosas na região, dadas as devidas proporções, diversas igrejas e sinagogas continuaram de pé, e, por mais que a religião não fosse oficial, não encontrei nenhum relato de massacres por motivos religiosos nesse período. A presença muçulmana foi derrotada pelos cristãos nas Cruzadas. O domínio cristão foi curto e se encerrou em 100 anos, com a conquista do Reino de Jerusalém por Saladino, O Curdo [3] . O domínio, nesse momento, era dos mamelucos, sob o controle indireto de Damasco. No século XVI os otomanos dominaram a região, sendo ameaçados apenas por Napoleão, que chegou a ocupar parte do território da Palestina durante o século XVII.
Mas, ali ainda vivia um povo, ou alguns povos que se entendiam diferentes daqueles que os dominavam. Em uma convivência relativamente pacífica, inclusive com as diferenças religiosas entre os que ali viviam, a Palestina prosperou do fim das cruzadas até o fim do império Otomano, que se deu com o Tratado de Versailles. A Palestina era um grande polo intelectual, cultural, científico, artístico e turístico do império Otomano. Uma região multiétnica que tinha suas questões, em que havia certa tranquilidade sob o domínio turco, com certo grau de independência.
No fim do Século XIX, o sionismo, ideologia fundada com o objetivo de expulsar os judeus oriundos do leste europeu [4]  da Europa, ganhou corpo e, logo após, decidiu que o lar dos Judeus e de seu povo deveria ser a Palestina, iniciando uma colonização, ocupando e comprando territórios na região, ainda dominada pelos otomanos.
Na primeira guerra, os Palestinos foram convocados pelos Otomanos para se juntarem às potências centrais. Parte foi obrigada a isso e parte se rebelou, não só na Palestina. Conseguiram dividir o império. Nesse período, o Império Britânico [5] também prometeu independência aos palestinos caso eles se revoltassem contra os otomanos, articulação feita por Balfour, o sionista responsável pela consolidação da ideia do pseudo-Estado de Israel. Para compreender melhor este processo específico, indico dois ótimos textos: “Como a Grã-Bretanha Destruiu a Terra Natal Palestina” [6] , de Ramzy Baroud, e “A Declaração Balfour de 1917: ‘Colonialismo de Povoamento’ 100 anos depois” [7], de Ho-Chih Lin, ambos disponíveis no site do Contrapoder.
Mapa da divisão do império Otomano acordada entre França e Inglaterra
O fim da primeira guerra colocou os Palestinos sob o comando do Mandato Britânico da Palestina, jogando a sorte dos Palestinos nas mãos do maior império do mundo até então, que, nesse momento, já havia negociado suas terras com a burguesia judaica para estabelecer os judeus considerados de baixa classe, os “do leste”, ou Schnorrer [8], da Europa. A partir daí, a colonização de judeus multiétnicos cresceu vertiginosamente na Palestina, em especial após o surgimento dos grupos Irgun e Lehi, grupos paramilitares terroristas que garantiram a colonização e a expulsão dos Palestinos de suas terras, sob complacência dos Britânicos.
Em novembro de 1947, a ONU, organização com 57 países filiados, deliberou sua resolução 181 [9] , única resolução que o pseudo-Estado de Israel seguiu, e dividiu o território da Palestina, sem consultar os palestinos. Em 14 de maio de 1948 o Mandato Britânico da Palestina acaba e em 15 de maio começa a catástrofe (Nakba, لنكبة) que perdura até hoje. O Mapa da evolução do território palestino demonstra a situação:
A Nakba, em si, é o momento em que, em menos de um ano, cerca de 750.000, dos 1.300.000 palestinos, quase 60% deles, foram violentamente expulsos de suas terras sob ordem do pseudo-Estado de Israel, com o apoio direto de britânicos, franceses, alemães e estadunidenses. Foi um desastre imenso, não há palavras para mensurar o tamanho da dor deste povo. Nos 76 anos seguintes a catástrofe só se acentuou, e nos últimos 223 dias ganhou proporções dantescas.
Algumas notas:
Sobre o texto:
Escrevi este texto para tentar resumir a história de um dos povos mais antigos da terra desde sua origem até o ponto mais emblemático de sua desolação. Falar do Nakba em si é muito dolorido.
Vou mencionar uma pequena curiosidade para vocês: sou descendente de Judeus que fugiram do leste europeu nas grandes perseguições do Império Russo. Se me converto ao Judaísmo, tenho passaporte e casa garantidos em território Palestino. Enquanto isso, meu amigo Emir Mourad, palestino, filho de palestinos, neto de palestinos, bisneto de palestinos e por aí vai, está proibido de pisar em sua terra. Há na Palestina hoje mais de 15 milhões de palestinos e apenas ⅓ deles vive sobre suas terras ancestrais.
Cada uma das notas a seguir mereceria um texto à parte. Espero em breve cumprir esta tarefa.
Sobre o Povo Judeu [10]:
Não há consenso sobre o conceito de povo judeu. Se há um povo judeu, este é aquele que ficou em sua terra, que é parte dos judeus ortodoxos que, assim como os Palestinos, resistiram à ocupação de diversos povos e, em maior ou menor escala, sobreviveram e se relacionam com esses povos. Esses judeus são palestinos não Árabes, mas são Palestinos. Os sionistas que ocupam hoje o território da Palestina não são um povo. Eles são de origens étnicas, culturais e antropológicas muito distintas entre si. Dei um exemplo acima sobre um possível direito à terra, mas não tenho nenhuma semelhança étnica com aquelas pessoas que lá estão. Há diversas fotos na internet de Palestinos passando em frente a suas antigas casas, que foram entregues a colonos judeus de origens distintas. Esse é um dos motivos que faz a Chave ser um dos grandes símbolos da resistência palestina. Na foto abaixo, um casal de palestinos olha sua casa roubada, agora ocupada por colonos sionistas nascidos e criados no Brooklyn.
Direito internacional:
O direito internacional é sistematicamente violado pelos sionistas. Nele, por exemplo, há uma resolução que define que civis não podem assentar em territórios ocupados em conflito. Até hoje, nenhuma sanção contra o pseudo-Estado de Israel foi consumada por esta e diversas outras violações. Outros exemplos são: alvos civis, torturas, prisão de menores, prisões em massa sem julgamento, etc. etc. etc.
Direito de defesa do Povo Palestino:
É muito interessante ver as argumentações que colocam os palestinos como terroristas. Elas não têm lógica alguma a não ser o puro domínio ideológico dos sionistas. Questiono-me se essas pessoas, que tratam os palestinos como terroristas, ou acham que ambos estão igualmente errados, se perguntam se havia uma injustiça quando os escravizados matavam seus senhores e fugiam. Será que essas pessoas questionam as revoltas originárias nas Américas contra os colonizadores? Questionam as revoltas chinesas contra os japoneses e ingleses? A revolta indiana contra os britânicos? A revolta do Gueto de Varsóvia? Se os poloneses que lá viviam eram terroristas?  Se eles não exageraram? Se os dois lados, nazistas e resistentes do gueto estavam errados? As pessoas não indagam sobre essas questões. Então, por que duvidam da resistência dos Árabes-Palestinos? Duvidam dos motivos dos palestinos porque eles combatem a ideologia dominante, que é o sionismo? Os palestinos têm mais semelhanças com os revoltosos do Gueto de Varsóvia do que os sionistas, os quais, estes sim, têm mais semelhanças com os nazistas do que com qualquer outra ideologia existente.
Escalada do conflito:
Há inúmeros materiais de altíssima qualidade sobre a atual etapa do conflito.
Darei algumas sugestões aqui, mas há inúmeras outras:
“Levante na Palestina”  de Tariq Ali
“Era das catástrofes e desafios da luta de classes”  editorial do Contrapoder
“Escurece antes do amanhecer, mas o colonialismo dos colonos israelenses chegou ao fim”  de Ilán Pappé
“A Global War Regime” (inglês) de Michael Hardt e Sandro Mezzadra, que pretendo traduzir em breve
Os materiais produzidos pela Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP)  (árabe)
Site pessoal do jornalista Ramzy Baroud  (inglês)
Os materiais da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL)
Texto publicado originalmente em: https://contrapoder.net/colunas/do-comeco-ou-do-que-acreditamos-ser-o-comeco-ate-a-nakba/
Revisão:Marlene Petros
NOTAS DO TEXTO:
1. Há interpretações diferentes sobre quando teriam surgido os Cananeus. Para alguns pesquisadores, os cananeus chegaram à região (ou se constituíram como povo) em, aproximadamente, 3 mil a.C. Uso como referência o livro Canaanites, de Jonathan Nicholas Tubb, professor e Arqueólogo, fundador e responsável pela galeria do antigo Levante do museu Britânico. No livro, Tubb afirma que os cananeus ocuparam o território em 8 mil a.C., tendo como um dos marcos científicos para isso a fundação de Jericó, onde é possível ver a transição do nomadismo para o sedentarismo, através de itens arqueológicos. Assim, é possível afirmar que os antecessores dos palestinos estão na região há pelo menos 10 mil anos.
2. No período entre o primeiro e o segundo salto, vemos o surgimento do cristianismo na região, o declínio dos romanos e sua transição para o Império Bizantino, que dominou a região e impôs sua religião oficial, o cristianismo, mas ainda havia ali a presença de judeus ortodoxos.
3. Sim, os curdos, que dominaram a região por séculos e hoje são a maior população despatriada do mundo. Um pequeno fato interessante é que, das 10 cidades mais antigas do mundo, 5 delas são ou curdas ou palestinas.
4. Esses judeus foram expulsos sobretudo da Rússia por serem revolucionários e socialistas.
5. Há muito interesse Britânico na região palestina e nos países do Oriente Médio em geral por conta de suas riquezas naturais, em especial o petróleo.
6. https://contrapoder.net/artigo/como-a-gra-bretanha-destruiu-a-terra-natal-palestina/
7. https://contrapoder.net/artigo/a-declaracao-balfour-de-1917-colonialismo-de-povoamento-100-anos-depois/
8. Palavra alemã usada de forma pejorativa por judeus para se referirem aos judeus oriundos do leste europeu.
9. https://ecf.org.il/media_items/498
10. Sobre esse tema, há o livro A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand, que investiga profundamente o tema.
https://contrapoder.net/artigo/levante-na-palestina/

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