Os EUA e o avanço neoliberal no Brasil
Texto: IELA
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EL DIPLOMÁTICO
Por Rafael Duarte
04.09.2013 – “A que devemos a presença de tão respeitável figura?”, diziam os senhores do Bar Libertad ao verem o Senhor Andrés Arteaga entrar no recinto. O tom pomposo das boas-vindas deveras se justificava. A presença de Andrés era tão esporádica e sua figura tão agradável que os frequentadores mais assíduos viviam a se perguntar por onde andaria el diplomático. Chamavam-no assim os clientes daquele singelo bar da Cidade Velha, em sua maioria aposentados do porto de Montevidéu que ainda viviam nos arredores do antigo emprego.
O Senhor Arteaga era inegavelmente dono da mais ampla cultura geral daquelas bandas e tinha, ademais, notável talento para arbitrar controvérsias etílicas quando a bebedeira invadia a madrugada. Para completar, vez por outra encaixava frases de efeito em francês ou citações de pensadores cujos nomes os demais sequer pronunciar podiam. Enfim, o apelido lhe caía bem, embora o digno cavalheiro fosse diplomata apenas lato sensu. Todos sabiam de alguma forma – ou pelo menos supunham – que Andrés estava longe de frequentar os altos círculos da diplomacia. A barba por fazer e as vestimentas puídas, ainda que de fino corte, denunciavam que aquele senhor de tão rara presença vivia modestamente. “Vestindo trajes tão velhos não é possível que represente qualquer governo”, disse certa vez um borracho, com uma ponta de inveja. “Nem mesmo o do nosso pobre Uruguai?”, emendou irônico outro ébrio mais bem humorado e menos maldoso.
El diplomático Arteaga chegava sempre silencioso, abanava o surrado Panamá sorrindo e pedia seu uísque sem gelo antes de cumprimentar gentilmente cada um dos presentes, mesmo os que lhe eram ainda desconhecidos.
Andrés saboreava seu malte escocês e todos se apraziam do poço cultural de Andrés. Não apenas, obviamente. Aqueles senhores, bastante afeitos à bebida e pouco adaptados às tecnologias que hoje tornaram obsoletas as enciclopédias e os pesados compêndios de papel, tinham naquela figura de aspecto tão singular sua principal fonte de consulta. Às vezes dois ou mais veteranos perguntavam-lhe algo distinto ao mesmo tempo e por isso precisavam esperá-lo discorrer longamente sobre um tema antes de iniciar a abordagem de outro e mais outro. Guardavam dúvidas por semanas ou meses até que el diplomático desse as caras. Ficavam impacientes quando o hiato das visitas diplomáticas excedia o esperado. Mas quando o dia chegava, que alegria! A sapiência do Senhor Arteaga coloria o ambiente e arejava aqueles cérebros castigados pelo alcoolismo e por uma velhice monótona. As concepções, os valores, as opiniões de Andrés eram assumidas por infalíveis. Ele tinha o dom da oratória e uma capacidade de convencimento sem igual. Não obstante, havia duas exceções, duas opiniões íntimas de Andrés não compartilhadas por nenhum dos outros clientes do Bar Libertad. Aqueles velhos humildes e supersticiosos não podiam admitir o ateísmo de Arteaga e nem com muito esforço entendiam sua paixão pelo já desaparecido Reformers Football Club. “Que torça para o Tanque Sisley, o Progreso, o Fénix… há murguita suficiente jogando o Campeonato Nacional. Agora torcer pelo Reformers? Realmente não dá para entender!”, disse certa feita um dos mais incomodados com a preferência futebolística do amigo.
Verdade seja dita, tirando estas e poucas outras características, pouco ou nada sabiam da vida íntima deste senhor que não acreditava em Deus e torcia por um time que não disputava campeonatos há noventa anos. A maioria imaginava que era um viúvo sem filhos e que vivia de alguma aposentadoria. Uns poucos pensavam justamente o contrário: que sua grande família e dificuldade financeira limitavam as incursões boêmias de Andrés. E havia até os mais ingênuos que acreditavam piamente que Andrés era um diplomata de carreira, bem remunerado, mas pouco afeito aos protocolos da vestimenta oficial e ocupado demais para perder tempo em bares e similares. Andrés evadia-se com destreza toda vez que alguém ensaiava questionar-lhe sobre sua vida particular. Protegia-se de olhares curiosos e sempre se despedia sem rodeios, desculpando-se pela pressa e desaparecendo na névoa da melancólica cidade para só ressurgir largo tempo depois.
Muitos anos assim se passaram. A presença daquele cliente incomum venceu muitos proprietários do bar e colegas de balcão abatidos pela cirrose, pelo cancro ou simplesmente pela velhice. Pouco a pouco surgiu a lenda de que Arteaga já frequentava o Bar Libertad quando ele ainda era o anglófilo Liberty Pub, coisa de várias décadas segundo o que lembravam vagamente os mais antigos.
Eis que, certo dia, um dos aposentados chegou esbaforido, suando e derrubando cadeiras pelo caminho. “Vejam só, vejam só o jornal que meu neto encontrou na feira da Tristán Narvaja! É o Senhor Arteaga, o Andrés, el diplomático!”. O olho de um furacão formou-se ao redor do periódico descoberto no tradicional mercado de antiguidades dominical.
“Retorna ao Uruguai o corpo do notável diplomata Andrés Arteaga, falecido em Paris”, dizia a manchete datada de 1923. Dois veteranos desabaram de medo, susto, pavor ou coisa parecida. Incrédula, a maioria desconfiou da veracidade do impresso até que um telefonema para o Ministério de Relações Exteriores dirimiu as dúvidas e acabou por derrubar os demais. “Acudam, acudam!”, gritavam transeuntes vendo aquela cena mórbida de diversos idosos desmaiados em um bar com a porta semiaberta.
À medida que a notícia se espalhava a mesma estupefação se abatia em cada bar, em cada bolicho, em cada café, do Paso de la Arena até Carrasco, de Toledo Chico a Punta Carretas.
Andrés Arteaga era um fantasma com agenda cheia. Depois que toda a cidade soube, o mistério entrou para a lista das lendas urbanas montevideanas.
E o Embaixador do Além na capital uruguaia nunca mais bebeu seu scotch, nem destilou sua sabedoria pela noite da cidade.
Texto: IELA
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