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Entrevista com Aleida Guevara, a filha do Che

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Por IELA em 01 de junho de 2005

Entrevista com Aleida Guevara, a filha do Che
01/06/2005 – A médica cubana Aleida Guevara, 44 anos, uma das filhas de Che Guevara, veio ao Brasil participar de uma atividade promovida pelo MST. Nesta conversa, comandada pelo jornalista Fernando Evangelista, ela fala sobre sua infância, sobre seu pai, sobre Cuba, sobre o Brasil e o governo Lula. Aleida diz que em seu país o povo tem mais liberdade de expressão do que em qualquer outro lugar e garante que a continuidade do Estado Socialista, depois de Fidel Castro, está plenamente assegurada. Vale a pena conferir. Leia na íntegra.
Fernando Evangelista – Quais são as lembranças mais vivas de sua infância?
Tenho muitas lembranças, ainda não sou tão velha… Há muitas imagens e recordações, mas acredito que as mais bonitas se relacionam com minha mãe, porque com meu pai vivi muito pouco tempo, só até os 4 anos e meio de idade. Minha mãe esteve ao nosso lado durante toda a vida. Ela conseguiu que sentíssemos a presença de meu pai, ainda que ele não estivesse presente. Somos quatro irmãos. Já ouviu dizer que quando há um chinês em perigo todos os demais saem a ajudá-lo? – éramos assim. E assim segue sendo. Da infância recordo os jogos, as travessuras, ir pela rua numa bicicleta com uma roda só, lembro-me de construir um brinquedo que é um pedaço de madeira com quatro rodas de patins e, sentada, dirigir ladeira abaixo. Nascemos depois da Revolução, todos. Sou a mais velha, tenho 44 anos, ou seja, nasci no final de 1960, quando já havia quase dois anos de revolução. Foi uma infância muito tranqüila, muito linda, mas com muitas carências econômicas. Por exemplo: meus irmãos, em um certo momento, não tinham roupas íntimas. Uma vez, minha mãe teve de fazer cuecas com suas blusas velhas. Era uma vida normal, como a de qualquer criança de Cuba daquela época. Com essas carências materiais, mas muito carinho, afeto, ternura. Evidentemente, tínhamos a saúde garantida, isso é muito importante para as crianças, e uma educação totalmente aberta e gratuita.
Ricardo Viel – E como era na escola, sendo a filha do Che?
Sempre fui uma estudante muito boa, mas não gostava da escola. Tentava matar aula ou pelo menos chegar atrasada. Minha mãe, com isso de sermos filhos do Che, sempre disse que não podíamos aceitar privilégios de nenhum tipo, nem que nos tratassem de forma diferente, para o bem, ou para o mal. Eu era mais uma dentro da classe e tentava me comportar da melhor forma possível. Minha irmã e eu sempre fomos dirigentes estudantis, vanguarda do grupo. Os meninos, não. Eram um desastre. Fomos criados pela mesma mulher, sob o mesmo teto, mas eles tinham outra maneira de ver o mundo. No final, acredito que minha mãe realizou seu sonho. Ela é de origem camponesa, sempre quis que seus filhos fossem universitários e, é claro, revolucionários. E nós quatro somos integrados ao processo revolucionário e somos profissionais graduados na universidade.
Fernando Evangelista – E lembranças do seu pai? Da última vez em que vocês se viram? Ele tinha passado um tempo na África, depois retorna a Cuba para organizar a guerrilha na Bolívia. Chega à Ilha disfarçado, com o nome de Ramón, não é isso?
Sim, o velho Ramón. Não sabíamos que era meu pai. Mami nos disse que íamos ver um amigo dele. Fomos com ela a uma casa conhecer esse senhor. Era um homem velho, vestido de preto, com uma camisa branca – isso nunca vou esquecer –, com o cabelo… meio ruivo, quase careca, a parte de trás cobrindo um pouco as orelhas. Fomos apresentados e, na hora do jantar, ele se sentou na cabeceira da mesa. Desde que meu pai foi embora, eu tomei esse lugar. Quando fui sentar ali, o velho Ramón disse que não, que ali se sentavam os anfitriões. Primeiro, teve de me explicar o que era um anfitrião, porque eu não tinha idéia do que fosse. Ele explicou e permitiu que eu me sentasse na outra cabeceira. Sentei ali e disse que ele não parecia ser amigo do meu pai. Minha mãe já tinha dito a ele que eu, apesar da pouca idade, conhecia todos os gostos do meu pai. Assim, ele teria de ter muito cuidado na sua maneira de agir. Quando eu o vi servir o vinho tinto puro – meu pai tomava sempre com água –, dei um pulo: “Você não é amigo do meu pai, não, você está tomando vinho tinto puro e o meu pai tomava com água!” Ele tentou me explicar, mas não entendi, fui lá e coloquei água no copo dele. Minha mãe conta que ele não cabia dentro das roupas, estava inchado de emoção de ver como eu, uma criança daquele tamanho, defendia seus gostos. Depois da comida, meus irmãos e eu começamos a brincar. Lembro que eu corria ao redor de uma mesa de mármore, com meus irmãos atrás de mim, dizendo: “Viva Cuba livre! Viva Cuba livre!” Nisso, escorreguei e dei uma cabeçada horrível na ponta da mesa. Eu tinha acabado de comer, meu pai – que era médico – sabia o perigo de um golpe na cabeça, ainda mais depois de uma refeição. Ele me toma em seus braços, me toca, examina e, dessa maneira me transmite alguma coisa. A tal ponto que minha mãe e ele estavam sentados tentando conversar e eu fiquei dizendo que tinha um segredinho para contar a ela. Minha pobre mãe já tinha tido uma experiência fatal comigo com essa história de segredinho. Sempre fui uma menina que falava muito, e sempre dizia o que pensava com uma tranqüilidade espantosa. Um dia, em um edifício em Cuba, estávamos descendo de elevador e no primeiro andar entra o poeta cubano Nicolás Guillén. Era um homem tão feio, que foi um choque para mim. Chamei minha mãe e disse que queria contar um segredinho. Ela baixa a cabeça e eu digo a plena voz: “Mamãe, este homem é um chimpanzé!… Dá para imaginar a vergonha que a minha mãe passou. Desde então, eu estava proibida de contar segredinhos. Por isso, naquele momento com meu pai ela não queria me deixar falar. Só depois de muita insistência, quando perceberam que não conseguiriam conversar, ela me disse: “Tudo bem, qual é o segredinho?” Eu digo novamente a plena voz: “Mamãe, acho que este homem está apaixonado por mim”. Foi uma coisa linda, porque ele se emocionou muito nesse momento. Foi a transmissão dessa sensação de gostar de alguém ainda que não possa dizer com palavras e às vezes nem sequer com gestos. Ele fez isso comigo e eu percebi. É claro que eu estava confusa, não sabia que era meu pai e me chamou a atenção o fato de que um homem grande me protegesse dessa maneira. Assim concluí, sabiamente, que ele estava apaixonado por mim. Foi a última vez que nos vimos.
Paulo Evangelista – Dois anos depois desse encontro o Che morreu na Bolívia. Como você ficou sabendo?
Eu estava doente nesses dias. Fidel tinha mandado nos tirar da escola, porque nessa altura todo mundo já sabia que alguma coisa havia acontecido e, para que as outras crianças não comentassem algo conosco, ele nos mandou a uma casa especial fora da cidade, em Santa Maria. Mas tive uma infecção em um dente e precisei ir a Havana me tratar. Fiquei na casa da tia Célia. Ela depois de me dar uns antibióticos horríveis, me disse: “Leve este prato de sopa ao meu quarto, sua mãe está lá”. Ah, minha mãe! Bom, eu tinha 6 anos, no mês seguinte faria 7. Então, fui levando o prato de sopa e, quando entro, minha mãe está chorando, chorando desconsoladamente. Ela chorava com facilidade, mas, era uma mulher muito forte. Eu nunca a tinha visto naquele estado. Aquilo me impactou. No dia anterior, Fidel havia mandado me buscar junto com minha irmã mais velha, Hildita (Hilda Beatriz). Ele queria nos dar a notícia, mas minha mãe não deixou, disse que ela é que tinha que dar. Então Fidel inventou uma carta para nos dar uma explicação. Nessa carta, meu pai teria dito que, se um dia ele morresse em combate, não deveríamos chorar, pois, quando um homem morre como quer, não se deve chorar por ele. E Fidel fez a gente dar nossa palavra de pionera, mas eu ainda não era pionera e ele falou: “Então me dê a sua palavra de revolucionária que, se isso um dia acontecer, você não vai chorar”. Aí eu disse: “Dou a minha palavra de revolucionária”. Meu tio Fidel era como meu pai, eu o adorava, o adoro, isso nunca mudou. Podemos discutir, mas gosto muito dele, de verdade. E, nesse momento, ele era a minha figura paterna, minha figura masculina. Imagina o que o meu tio teve de me explicar. Isso eu esclareço porque uma vez contei essa história para um jornalista alemão e o filho da puta publicou que se o Fidel tinha inventado uma carta, poderia muito bem ter inventado outra. Uma estupidez total, porque esse homem estava fazendo com que duas meninas pequenas, que vão receber quem sabe a notícia mais dura de suas vidas, não reagissem mal, entendessem o que aconteceu com seu pai. O que ele tentou foi nos preparar para esse momento. Coisa que sempre lhe agradeci, porque nesse outro dia, em que eu estava com minha mãe, ela estava na cama e me disse: “Senta, tenho que falar com você”. Não lembro de minha mãe ter dito: “O teu pai morreu”. Só lembro da voz da minha mãe me lendo a conhecida carta de despedida: “Quando lerem esta carta será porque já não estou entre vocês”. Segue toda a carta, que é muito bonita, e ao final diz: “Um beijo grande do papai”. Você pode imaginar que, nesse momento, me dei conta de que já não teria mais o papai e uma lágrima começa a correr dos meus olhos. Sobretudo porque quem está lendo a carta é minha mãe, chorando. Começo a chorar, mas lembro de tio Fidel. Me recomponho e digo: “Mamãe, não podemos chorar pelo papai, porque ele morreu como queria.” Isso levanta minha mãe, e por isso digo que vou sempre agradecer a Fidel por me ter dito aquilo no dia anterior. Foi muito bonito. Fiquei dormindo com ela em uma cama de casal e quando acordei tinha uma almofada ao meu lado para que eu não caísse. Aí perguntei para minha mãe: “O que é isso?” E ela me disse: “Seu tio veio de noite e pôs essa almofada para que você não caísse”. E eu respondi: “Ah, é que meu tio acha que ainda sou pequena”. Eu já dormia em uma cama sem almofadas havia muito tempo, mas ele não sabia. Bom, esse foi então o momento em que eu soube que meu pai tinha morrido.
Fernando Evangelista – Quando você começou a tomar contato com as coisas que seu pai fez e escreveu?
Quando tinha 16 anos, minha mãe me deu algumas folhas mimeografadas. Comecei a ler e falei: “Mãe, esse cara é bom, gostei da história”. Só depois, quando continuei lendo, me dei conta de que o autor era meu pai. Nossa, meu pai! Foi muito lindo para mim, porque eu sempre me orgulhei de ser filha dele e ali me senti ainda mais orgulhosa. Aos 23 anos meu pai já era um homem genial porque, em primeiro lugar, teve a desfaçatez de contar coisas que você nunca contaria. Por exemplo, quando dá uma dor de barriga nele na casa de uns alemães e não tem água. Imagina você ir ao banheiro e não ter água. Ele não ia deixar essa má lembrança aos pobres alemães que tinham sido tão hospitaleiros… O que você acha que ele fez? Colocou a bunda para fora da janela e defecou ao ar livre. Olha o que ele fez! E ele ainda escreve isso. Aí, no outro dia, ele volta para ver onde tinha deixado a amostra e descobre que era na mesa onde os pobres alemães colocavam os figos para secar… Isso ele conta no livro. Essas coisas me impressionaram, porque, olha, já fiz bastante coisa na vida, mas não conto nem morta. Não posso, não passa pela minha cabeça contar, mas ele descreve com muita tranqüilidade. Isso me mostrou a honestidade desse homem. Sem nenhum tipo de duas caras, com uma tremenda naturalidade, diz exatamente o que pensa e o que faz, nunca mente, nunca. Isso vai acompanhá-lo durante toda a sua vida.
Fernando Evangelista – Esse texto que você leu era o diário da primeira viagem do Che pela América Latina?
Sim, li quando tinha 16 anos, uma idade muito difícil porque você começa a se perguntar muitas coisas: por que eu gosto do meu pai? Meu pai nunca esteve comigo e o amor aos pais não é uma coisa automática. Não é porque você é pai que seus filhos já gostam de você, tem de saber conquistar esse carinho, esse respeito dos filhos. Ele não esteve presente para ganhar isso, então comecei a me perguntar muitas coisas, fui buscando na memória todo o meu contato com ele: quando o acompanhei no trabalho voluntário; quando pela primeira vez me deu um livro; a primeira vez em que vimos juntos uma luta de boxe; o dia em que o vi se despedir do meu irmão, ainda que eu não soubesse que ele estava se despedindo; a lembrança de um homem que me estende a mão e vai caminhando comigo, me dizendo algo, como eu devo me comportar. A imagem é pouco nítida, mas me lembro de estar com a mão levantada – porque ele era muito mais alto que eu – e ele vai me dizendo algo. Comecei a buscar essas coisas na memória, meus irmãos às vezes tiram sarro de mim, principalmente Camilo, dizendo que tenho memória de elefante. Mas foi a necessidade, busquei na memória tudo o que demonstrava que esse homem havia me amado. E quando encontrei, quando soube realmente que ele havia me amado, não tinha outra coisa a fazer a não ser devolver esse amor e amá-lo também, ainda que ele não estivesse ao meu lado. Acho que isso foi responsabilidade da minha mãe. Aprendemos a conhecê-lo, a entendê-lo, a compreender suas atitudes diante da vida e, pouco a pouco, fomos incorporando essas atitudes à nossa vida. Inicialmente, quando você é criança, repete o que as outras pessoas dizem, mas depois vai crescendo dentro desse mesmo lar, dentro dessa mesma vida e, se esse amor e essa ternura que ali residem o convencem, você incorpora o que lhe ensinaram. Acho que, com o tempo, foi isso que fizemos. E agora já somos seres pensantes e decidimos por nós mesmos trilhar o mesmo caminho.
Gabriela Tlaija – Você fez algumas missões internacionalistas. Como foram essas experiências?
Aos 23 anos fui à Nicarágua, foi minha primeira missão como médica e a primeira vez que saía de Cuba por um longo período, um ano. E um ano vivendo fora de Cuba, para um ilhéu… não sei como as pessoas que saem de Cuba resistem. Juro que toda vez que saio de Cuba encontro gente boníssima, gente que gosta do meu país, do meu povo e me sinto em família, mas passados quinze dias – não ponha um a mais – sinto tanta falta, tenho uma saudade, como vocês dizem, que não agüento. Nasci em uma ilha e viver no continente me mata, necessito do mar de um lado e do outro.E quando fui à Nicarágua, veja o que minha mãe me disse: “Por que você vai?” Respondi: “Vou porque você me ensinou, porque me educou no exemplo do meu pai. Meu pai era um internacionalista e estou viva por isso. Tenho uma dívida a pagar à humanidade, por isso vou à Nicarágua”. “Não me provoque”, ela me diz. “Não estou provocando, estou te dizendo isso porque você me ensinou”. Fui, e foi uma experiência extraordinária. Lá cursei o último ano de medicina e fiz de tudo. Em Cuba eu tinha recebido um ou dois bebês e, se a mãe tivesse algum problema, eu não a examinava, vinha um médico imediatamente. Chego à Nicarágua sem ter passado pela cirurgia, me colocam na ginecologia obstétrica, me mandam para a sala de parto e um residente me diz: “Chela” – assim eles chamam as loiras –, “venha!” Mas vou como, com quem? “Com quem? A mulher está parindo!” Você não pode imaginar o que é receber um bebê nos seus braços sem saber o que se está fazendo. Nem quero lembrar. Depois, fiz cem partos sozinha, perfeitos. Foi uma experiência tremenda porque pela primeira vez comprovei o que Cuba significava. Sair de um lugar onde você tem tudo garantido, onde tem uma série de privilégios sem se dar conta deles. Por ter nascido com eles, você não percebe o trabalho que deu para conquistá-los. Então, quando você vai a esses lugares, sente de verdade tudo o que tem e defende muito mais essas coisas.
Fernando Evangelista – Isso de sair de Cuba para perceber as conquistas sociais alcançadas com a revolução foi mais ou menos a mesma sensação que você teve quando veio ao Brasil pela primeira vez? Foi um choque comparar as diferenças sociais entre os nossos países?
Eu já tinha conhecia a realidade latino-americana. Mas o Brasil sempre chega a Cuba pelo samba, pela alegria de viver, pelas riquezas, pela Amazônia, pelos grandes rios, pelas suas madeiras valiosas. Ou seja, é um país sempre dos sonhos e, quando cheguei pela primeira vez a São Paulo e vi meninos nas ruas, drogados, pedindo esmolas, famintos, descalços, em farrapos, não pude acreditar. Eu sabia dessa realidade, mas não conseguia entender que um país tão rico tivesse uma só criança nessas condições. Ainda não consigo entender. Venho de um país pobre que praticamente não tem recursos, sem grandes rios, sem petróleo, sem minerais importantes, exceto o níquel, mas esse país vive com dignidade. Em Cuba não existe uma criança que viva na rua ou viva de forma miserável. É um país onde todas as crianças vão à escola, todos têm assistência de saúde gratuita, todos têm garantida uma alimentação mínima para viver com dignidade. Então eu penso: “Porque nós podemos e um país como o Brasil não? Como é possível?” A única coisa que nos diferencia é o sistema social. É uma escolha. A única maneira que nossos povos têm de seguir adiante, de conquistar realmente o que é seu, é através de uma mudança social real. Sempre penso no socialismo porque é o sistema que conheço e que pode realmente dar resultados aos nossos povos. No entanto, a Venezuela, mesmo não sendo um sistema socialista, está demonstrando com a revolução bolivariana que é possível ter um sistema social eficaz. O que acontece é que a burguesia é tão burra, tão bruta, que não se dá conta disso e está pressionando o processo bolivariano, forçando uma radicalização. São tontos porque esse não é o objetivo do presidente. Então, essa poderia ser também uma via para a América Latina, onde a maioria tem pavor do comunismo e do socialismo. Veja bem, poderia ser uma via, não é socialismo. É possível conviver nessa sociedade que tem coisas marcadamente capitalistas, mas o povo é dono do que produz e, pela primeira vez, desfruta das coisas que tem, que são usadas em benefício de toda a população. Isso é o que não acontece no resto da América Latina.
Fernando Evangelista – Você disse que na América Latina, fora Cuba, o único governo de esquerda é a Venezuela. O Brasil, mesmo com o governo dito popular, estaria seguindo pela direita?
O que eu digo é que o PT é um partido de esquerda, mas não olhe os partidos pela sua ideologia e sim pela sua eficácia, pela sua atividade social, pelo que consegue fazer pelo seu povo. Por aí vocês terão a resposta. Eu somente posso ver as estatísticas e as estatísticas talvez mintam, mas o que estão dizendo é que não se alcançou o que havia sido planejado. Vocês dirão se estou equivocada ou não, se as estatísticas mentem ou não. Vocês são os únicos que podem dizer. Eu aqui sou alguém de fora. Não digo estrangeira, porque esta também é a minha terra, mas sou mais de fora, então não tenho o direito de julgar porque não vivo esta realidade, vivo a minha. E nesse sentido respeito, é claro. Mas o que chega a mim são essas informações, talvez vocês tenham outras e possam me esclarecer, não?
Ricardo Viel – Eu tenho essa dúvida, não sei se o governo brasileiro não faz porque não quer ou porque não pode ou porque tem medo. Os países ditos periféricos vivem sob esse medo cotidiano, o medo do novo, da mudança, um medo que nos paralisa e enfraquece.
Em 1966, Che disse que a Guerra do Vietnã não era nada mais que um método utilizado pelos Estados Unidos para provocar medo, de tal maneira que qualquer povo do mundo que ousasse não obedece-los, não aceitar suas ordens, poderia correr o risco do Vietnã. E quem gosta de uma guerra? Quem quer uma guerra? Nenhum povo pode querer uma guerra. Mas aí entra o que Che dizia: “É preferível a guerra a viver como bestas, como animais”. Se esse é o risco, temos de aprender a aceitá-lo, temos de perder o medo da guerra e conquistar o que queremos pelos métodos que os povos decidirem, sem temer as conseqüências. Porque sempre que se inicia um processo social importante começam as pressões. Imagina se toda a riqueza deste país fosse realmente do povo brasileiro, que nada que vocês não quisessem não fosse para o estrangeiro. Que vocês pudessem obter, ao vender qualquer riqueza, os ganhos necessários para transformar a sociedade. Eu quero que alguém me explique como um povo do chamado Terceiro Mundo, como Cuba, pode buscar capital para fazer uma educação gratuita e universal, para fazer uma saúde pública gratuita e geral. Como? Onde está o dinheiro? Como sustentar esse sistema se você não é dono do que produz? Então, a primeira coisa que tem de fazer na América Latina é ser dono de nossa terra, de nossa produção, começando por aí. O que implica isso? Não ao Fundo Monetário Internacional, não ao Banco Mundial. Eles têm de respeitar as nossas condições, sem que nos coloquemos à sua disposição, como está acontecendo neste momento. Mas isso acarreta conseqüências. O bloqueio a Cuba segue há mais de 45 anos, e o bloqueio não é fácil. Nós não estamos dizendo: “Façam o que estamos fazendo”. Os Estados Unidos se encarregaram de demonstrar a todos vocês quais são as conseqüências de fazer o que Cuba fez, mas estamos aí. Indiscutivelmente, vivemos melhor do que vocês como povo. De modo geral, vivemos melhor do que vocês. Temos carências materiais, às vezes não temos nem calcinha nem sutiã, é verdade. Mas você não nasceu com essas coisas, não são tão necessárias, você bota uma calça e segue andando, uma saia e segue andando. Os indígenas, durante toda a sua vida, andaram nus, isso não é nada novo, é uma coisa velha, velhíssima, sem problema nenhum. Não é uma coisa necessária para viver, mas a saúde sim, a alimentação sim, e a dignidade também. A educação é muito importante e isso Cuba tem garantido. Você coloca em uma balança o que fazer. Talvez perca algumas comodidades, mas ganha outras coisas. Eu fico pensando nas populações indígenas deste país, por Deus, quando terão assegurados seus direitos e o respeito que merecem? Quando vamos lhes dar isso? Porque somos nós quem as exploramos. Somos nós que ignoramos essas pessoas, que damos as costas para elas, que não as colocamos no lugar que merecem. Até que não decidamos isso e não nos dermos conta de tudo o que estamos perdendo, essas coisas continuarão acontecendo. Essa é uma decisão do povo.
Ricardo Viel – O que o bloqueio acarreta no dia-a-dia de um cubano?
Ui, muchacho! Entre em um ônibus cubano para você ver! Em Cuba, levanta-se às 5 da manhã para estar às 8 no trabalho, 8 e meia agora, porque com o problema do petróleo nos deram meia hora a mais. E os ônibus às vezes passam, mas às vezes não. Em uma bicicleta tem de pedalar muito. Havana tem 2,5 milhões de habitantes, as distâncias são grandes, 17 a 20 quilômetros do trabalho até em casa, de bicicleta para lá, de bicicleta para cá, não é fácil.
Paulo Evangelista – Gostaria que você desse exemplos dos efeitos do bloqueio na área da saúde.
No hospital em que trabalho temos o mesmo aparelho de raio X há quarenta anos. Ainda o estamos usando, colocamos um aramezinho e segue funcionando. E funciona bem, mas agora já vamos comprar um novo. Atualmente, há um projeto muito lindo em Cuba que visa arrumar os grandes hospitais do país. Um projeto muito ambicioso. Apesar de todas as agressões, de todas as besteiras do senhor Bush, não nos amedrontamos e seguimos adiante, criando, melhorando o que precisa ser melhorado, superando as dificuldades.
Fernando Evangelista – Uma das críticas que se fazem a Cuba é quanto à falta de liberdade, liberdade de expressão e de democracia. É possível falar nesses valores tendo um único partido e um único jornal?
Existem mais jornais. Mas há um só partido porque somos uma sociedade socialista. Você não pode comparar a água com o vinagre, não são nem parecidos. Com a gente é a mesma coisa, como vai comparar a sociedade capitalista com a sociedade socialista? São dois sistemas diferentes. No socialismo só existe o Partido Comunista, não há mais partidos. Com a diferença de que nessa sociedade em que você vive pode haver vinte partidos, mas a maioria deles é o mesmo cachorro com uma coleira diferente, a única diferença é o nome, mais nada. Em geral, defendem o direito de uma minoria e nas eleições se põem a mentir, e no final continua a mesma coisa. Isso é democracia? Democracia é o poder do povo. A palavra vem do grego e significa “poder do povo”. E esse povo tem poder? O povo espanhol, com toda a sua democracia, teve poder para decidir se ia ou não à Guerra do Iraque? Disseram não 91 por cento, e seu governo disse sim, foi para a guerra. E o que aconteceu? Mudaram o governo? Ele foi mudado depois, nas outras eleições, depois de quase dois anos na guerra. Aí vieram as eleições e, por causa de um atentado terrorista, decidiram mudar, mas não porque existisse uma consciência social estabelecida. E o que aconteceu com Bush é democracia? Aquilo pode ser democracia? Quando você fala de democracia, fala de um povo que tem poder de decisão. Nesta Terra, o único povo que tem poder de decisão é o povo cubano. É o único que diz não aos Estados Unidos e mantém o não até as últimas conseqüências, o único que discute suas leis com o povo, nos bairros, com os trabalhadores leis que depois a Assembléia Nacional vai aprovar com o beneplácito real da população. Isso é o poder do povo. E o povo é o único que pode dizer: “Não estou de acordo com isso”. E leva-se em conta o não estar de acordo. Onde você viu isso? Isso é democracia. Liberdade de expressão? Mas venha cá, o que é liberdade de expressão? Estive na Europa muitas vezes e muitos jornalistas me entrevistaram, entrevistas de até duas horas de duração, e depois publicaram: “A filha de Che está de passagem por Paris”. Ponto, acabou. Ou, o pior, publicaram coisas que eu não disse. Ou outros que me disseram: “Não posso publicar a entrevista se não colocar a palavra regime”. “Eu não disse regime, eu disse Estado socialista.” “Ah, se não mudo, não posso publicar.” “Então não publique, mas você não pode mudar as minhas palavras.” Isso é liberdade de expressão? Liberdade de expressão é estarem lhe dizendo o que você tem de dizer ou o que não pode dizer? Liberdade de expressão tenho eu, que posso parar no meio da rua e dizer quatro disparates e não acontece nada, nada! Ah, se falo mal do Fidel é possível que alguém venha e me dê um safanão, isso, sim, mas a polícia não pode me tocar. No meu país, a polícia não pode me tocar, a não ser que eu esteja agredindo uma outra pessoa, então nos separam, mas não pode bater em mim. São coisas muito diferentes quando você fala de liberdade de expressão. Vou lhe dizer uma coisa real, estamos falando de uma sociedade socialista sobre a qual a maior parte dos jornais do mundo, os de maior tiragem, em todos os idiomas, busca notícias contra Cuba 24 horas por dia. Se um cubano aparece em Nova York, isso é notícia. Se um haitiano morre para chegar lá, isso não é notícia. Se matam vinte mexicanos tentando cruzar a fronteira, isso não é notícia. Se são brasileiros que tentam chegar aos Estados Unidos e os expulsam, isso não é notícia. Notícia é se um cubano chega aos Estados Unidos. Ah, isso sim. Sim, porque o pobrezinho está fugindo do socialismo. É quando você se pergunta: “Bom, se todo mundo manipula isso e fala de todas essas coisas, porque eu, no meu país, em meu próprio país, vou responder aos interesses desses senhores e não vou responder aos interesses do meu povo?” Nos jornais do meu país existe uma linha direta, através da qual o povo faz suas críticas. Nas mesas-redondas, todos os dias, às 6 da tarde, se discutem problemas internacionais e problemas nacionais, e há telefones à disposição do povo, para onde se liga e pergunta. E recebem resposta, que é o mais importante. Não é perguntar, é receber resposta. Então, para mim, isso é liberdade de expressão de verdade. Os jornais cubanos são fiéis à maioria do povo cubano, nunca vão se submeter a uma minoria vendida aos interesses dos Estados Unidos, isso eu asseguro. Os nossos respondem à maioria do nosso povo, às necessidades e às críticas de nosso povo. Estão ali, você pode ler quando quiser, se critica até Maomé, mas dentro do nosso sistema e dentro da nossa sociedade.
Fernando Evangelista – Eu estive em Cuba em 1997, durante o Festival Mundial da Juventude. Fui com uma câmara para fazer um documentário e, quando tocava em determinados assuntos, as pessoas pediam para desligar porque sentiam medo de expor suas opiniões. Não para proteger o Estado socialista, mas com medo de serem tachadas de contra-revolucionárias, mesmo fazendo críticas leves.
Ser considerado contra-revolucionário em Cuba não é nada agradável, porque o povo em geral é revolucionário e te van pasar la cuenta. Estamos em uma guerra, estamos bloqueados e ameaçados pela potência econômica econômica e militar mais forte do planeta. Então, você não pode permitir nenhum tipo de debilidade, de fraqueza. Temos de estar sempre em guarda e vigilantes. É possível que em algum momento tenhamos exagerado, também é possível que algumas pessoas não saibam ainda o poder que têm. Essa é uma das críticas que sempre faço ao poder popular cubano, que o povo ainda não sabe o poder que tem nas mãos. Vou dar um exemplo que eu mesma vivi. Minha tia tem 85 anos de idade e um tempo atrás ela me disse que tinha ido à policlínica para tratar um dente que doía. Disseram que não podiam atendê-la, que não havia anestésico. E ela fica assim, com o dente doendo. Aí vem uma senhora e pergunta: “O que você está fazendo aqui?” Minha tia explica e a senhora lhe diz: “Ah, querida, então paga, se você pagar, eles fazem”. E minha tia: “Como? Este é um serviço gratuito para o povo”. Ela me contou isso, ligou muito indignada e disse: “Olha o que me aconteceu, me disseram que se eu pagasse tratariam meus dentes”. “Como? Quem te disse? Quem é a doutora que falou que não poderia te tratar?” Ela me deu o nome e eu: “Bem, a Assembléia do Poder Popular é amanhã, você se levanta e conta o que aconteceu. Porque ali é o lugar do povo e isso não podemos permitir, porque a saúde pública é totalmente gratuita e a assistência dentária também, a não ser que você vá colocar uma prótese ou fazer um tratamento muito especial, aí, sim, você vai pagar algo. Mas, fazer todas as coisas normais é grátis, é obrigação do Estado”. Minha tia disse: “Você acha? Colocar isso na Assembléia do Poder Popular?” “Qual o medo? Qual o problema? Levante-se e diga.” Foi o que ela fez. No dia seguinte estava o diretor da policlínica pedindo desculpas. O problema foi solucionado. Veja se a gente tem poder ou não.
Fernando Evangelista – Mas não é parte desse mesmo povo que migra para os Estados Unidos?
Há pessoas que têm sérios problemas econômicos, de moradia, de transporte e pensam que nos Estados Unidos podem resolver seus problemas. É uma imigração econômica, única e exclusivamente. O que acontece? Para mim, quando você forma um homem em uma sociedade diferente, por mais econômica que seja a imigração, há também uma parte ideológica. Não conseguimos chegar até eles, não soubemos educá-los, não soubemos fazê-los perceber o que é realmente importante. Essa pode ser uma das causas: que não tenhamos trabalhado adequadamente e que existam pessoas que não tenham captado o melhor do socialismo. É real, é verdade, isso pode acontecer. Pode acontecer também que uma pessoa se sinta realmente muito pressionada, muito esmagada pela propaganda. Veja que o único país socialista do continente é o nosso e chove propaganda todos os dias. É o único país do mundo que tem uma rádio nos Estados Unidos, em perfeito espanhol, transmitida só para Cuba, com emissão e freqüência diárias. Os Estados Unidos têm um compromisso com Cuba de dar 20.000 vistos anuais e nunca dão. O que estão provocando? Que você saia ilegalmente. Recomendo que vocês vejam um documentário feito por uns catalãos, chamado Los Balseros. Vale a pena ver, ele mostra a situação econômica de Cuba, mas também mostra a manipulação que é feita nesse sentido. Quando você já tem uma família nos Estados Unidos está desesperado para se reunir à sua mulher e seu filho e não te deixam entrar, o que você faz? Tenta ir de qualquer maneira e isso se converteu em um negócio. Porque há pessoas que lucram com a vida de seres humanos. Eles vêm a Cuba em lanchas rápidas para, por 1.000 dólares – e conseguir 1.000 dólares em Cuba é difícil de verdade –, você ir embora nessas lanchinhas. O pior

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