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Equador: sem as direitas no segundo turno, as esquerdas têm o desafio de dizerem o que são

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Por IELA em 10 de fevereiro de 2021

Equador: sem as direitas no segundo turno, as esquerdas têm o desafio de dizerem o que são

Movimento indígena do Equador em luta desde os anos 1990

Um novo salto escalar na política latino-americana se faz nesse momento no altiplano andino, mais especificamente no Equador. Um personagem incômodo, o movimento indígena, se faz presente na cena da grande política, personagem esse, até aqui, negligenciado, apesar das enormes contribuições teóricas e políticas que vem nos oferecendo desde a invasão, e que tomou novos e revolucionários contornos a partir dos anos 1990, quando, organizados, decidiram levantar suas bandeiras tendo como base a vida, a dignidade e o território.
Desde que o muro de Berlin caiu, certas forças políticas de esquerda perderam a influência que exerciam no movimento popular que emergiu, com identidade própria. Entre eles assomou o movimento indígena, até ali subsumido enquanto movimento camponês, categoria analítica com a qual as esquerdas eurocêntricas se sentiam mais confortáveis. Foi preciso a queda do muro para que o indígena se desprendesse da identidade camponesa que o colonizava.
Numa quadra histórica que impusera uma derrota fragorosa às esquerdas eurocêntricas, desde a década de 1990 até hoje, o movimento indígena vem protagonizando lutas históricas e proporcionando outros horizontes de sentido para a vida e para a política. A consigna de luta pela Vida, pela Dignidade e pelo Território ganhou as ruas de Quito e de La Paz, em 1990, ambas com marchas originadas respectivamente na Amazônia e nas Terras Baixas. Atentemos para o fato de que não falam de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, consigna da Revolução Francesa, em torno da qual se movem as direitas e as esquerdas.
Não, não falam de estado-nação, mas de plurinacionalidade; não falam de terra, mas de território; não falam de povo no singular, mas sim de povos no plural; não falam de desenvolvimento, mas de bem con-viver; não falam de dominação da natureza, mas sim de direitos da natureza. Enfim, é de outros horizontes de sentido para a vida e a política que falam. Desde que os criollos comemoraram os bicentenários da independência que os indígenas denunciaram/anunciaram que o fim do colonialismo não havia significado o fim da colonialidade, conforme a fina formulação de Aníbal Quijano.
Em 1992, no Rio de Janeiro, na Conferência da ONU para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, os indígenas trouxeram a história de larga duração para o debate teórico e político ao associarem o 1992 ao 1492 que inaugurara 500 anos de violência, genocídio, epistemicídio e ecocídio que ali, em 1992, no Rio de Janeiro, se debatia como crise do meio ambiente, expressão que se mostra pueril diante do colapso metabólico já em curso. Em 1º de janeiro de 1994 voltam à cena, em Chiapas, manchando a festa da integração subordinada do NAFTA com a presença da América Profunda através do zapatismo.
A tensão aumenta com o aprofundamento das reformas antipopulares promovidas pelo Consenso de Washington que se aproveitava da derrocada da URSS e das organizações políticas que se filiavam ao socialismo realmente existente. Na década de 1990, vários são os governos eleitos que caem com mobilizaciones callejeras ao tentarem impor suas políticas antipopulares. Aliás, o recado já havia sido dado no Caracazzo de 27-F, na Venezuela, em 1989, anunciando que, apesar da derrocada das esquerdas convencionais, os movimentos populares na América Latina estavam vivos, muito vivos.
O ano 2000 verá o protagonismo do movimento indígena atraindo o movimento popular, o movimento ecológico, parte das classes médias urbanas e outros grupos sociais com a Guerra da Água, em Cochabamba, quando, pela primeira vez, conseguem expulsar do país uma empresa multinacional que se beneficiara da privatização da água. Logo, logo, em 2003, a luta pela reapropriação social da natureza se ampliará na Bolívia com a Guerra do Gás. O desgaste das políticas liberalizantes promovidos por mobilizações populares enseja oportunidade para que forças políticas que se reivindicam como pós-neoliberais se apresentem.
O mapa da América Latina começa a se tornar vermelho, apesar da Whyphala se querer de todo o arco-íris. Apesar do “que se vayan todos” argentino de 2001, que clama por uma outra política, o pós-neoliberalismo propõe a recuperação do protagonismo do estado e um léxico político que fala de políticas públicas, como se houvesse alguma política que não fosse pública. O Banco Central, por exemplo, se faz cada vez mais independente dos governos eleitos e não se fala de política pública para o Banco Central. As exportações de commoditties fazem novos bons negócios da China e permitem bolsas-família, bônus vários aos pobres ao mesmo tempo que promovem devastação ambiental e expropriação com as monoculturas, fazendas de gado e exploração mineral e o extrativismo que tanto devasta e desola se fará até mesmo teoria (Svampa, Acosta, Gudynas, Machado Araoz).
A tensão entre governos, progressistas ou não, e movimentos indígenas, camponeses e ambientalistas se fará aguda como se viu na Bolívia (TIPNIS), no Equador (YASUNI), na Venezuela (Sierra de Perijá), no Chile (Mapuche), no Paraguai, no Peru (Bagua), na Colômbia (Hidrohituango), na Nicarágua (construção do canal interoceânico). O Consenso do Washington se torna Consenso das Commoditties, precisa expressão de Maristela Svampa, pois direitas e esquerdas veem na exportação de natureza a via do des-envolvimento, assim mesmo, com o envolvimento dos grupos territorializados sendo desfeitos (des-envolvimento).
As alianças com as grandes corporações, sobretudo da área da construção civil (Odebrecht), e a instrumentalização das empresas estatais criaram uma ligação perigosa para financiar campanhas eleitorais e garantir uma unidade latino-americana desde arriba, o que aproximaria esses governos progressistas das piores práticas com que as oligarquias conservadoras sempre nos governaram, a corrupção. As formas tradicionais de se fazer política se viram claramente no Equador quando a Aliança País, de Rafael Correa, impusera, em nome das esquerdas progressistas, a candidatura de Lênin Moreno e, no Brasil, o PT, com Dilma Rousseff, no primeiro dia do segundo mandato, nomeando como seu Ministro da Fazenda um economista do campo do adversário político que acabara de derrotar nas eleições de 2014. A falta de compreensão da natureza das relações de poder que governam o mundo acreditou que as forças políticas que manobravam para derrubar o governo do PT eram exclusivamente internas, ignorando o papel de La Embajada.
Pois agora, novamente serão as mobilizaciones callejeras que se encarregarão de mover a política desde abajo. Já se viu isso no Chile, com os movimentos em busca de uma assembleia constituinte que supere a Carta Magna, que desde Pinochet se mantém praticamente intacta, inclusive com o apoio de governos da Concertación encabeçados, inclusive, pelas esquerdas. Foi preciso ir além dos partidos políticos à direita e à esquerda para buscar uma nova constituinte. Na Bolívia, foi preciso articular o Pacto de Unidade, desde abajo, pacto esse que havia sido rompido pelo governo do MAS, em 2010, no affair do TIPNIS. Nessa nova articulação para derrotar o governo golpista de 2019, os movimentos indígenas impuseram, inclusive, seu próprio candidato a presidente, Davi Choquehuanca, que acabariam cedendo para que fosse Vice na chapa de Arce, mas estão atentos.
A tensão entre os progressismos e os movimentos populares, sobretudo aqueles que orbitam em torno do novo léxico teórico-político que nos oferece o movimento indígena, se vai estabelecendo de modo explícito, sobretudo quando as camadas populares mostram que as políticas neoliberais chegaram a seu limite. A pandemia enquanto expressão do colapso metabólico em curso ajudou a mostrar os limites das políticas que negam o sentido comum da política.
É nesse contexto que a vida dos trabalhadores, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e estudantes que vivem e se expressam nas ruas se descola das teorias e conceitos tradicionais da esquerda eurocêntrica. Nas manifestações políticas recentes que se reivindicam de esquerda, a chamada grande política não tem estimulado a mobilização e o protagonismo “desde abajo” e tem se caracterizado por políticas para e não com toda essa massa de gente que vive sob a opressão do capital e sinaliza para outras formas de con-viver. Não se trata de negar esses conceitos tão caros à esquerda tradicional, mas de observar a realidade local com as nossas lentes, transcendendo dialeticamente e nominando com nossos conceitos, bem mais abrangentes. Indicam, por exemplo, que a luta é para além do capitalismo e da colonialidade.
Assim, regressamos ao Equador que é parte dessa Pátria Grande em movimento, ainda que com as especificidades das Pátrias chicas. Ali, as direitas acabam de sofrer uma derrota acachapante e outras opções à esquerda do espectro político se mostraram na chamada grande política. O correísmo se vê agora diante do movimento indígena que tanto perseguiu e menosprezou tendo que enfrentar o candidato do Movimento Pachakutik. O próprio Movimento Pachakutik e toda a coalisão de movimentos sociais que orbitam em torno da CONAIE sabem que a força que adquiriram se deve a seu alinhamento com os movimentos populares urbanos com as grandes mobilizações de 2019 contra o FMI quando romperam com as veleidades que ainda alinhavam em torno de Lenin Moreno. Para além das ambiguidades que qualquer candidato possa oferecer é preciso ver em que bases sociais e organizativas cada qual se sustenta pois, afinal, de uma perspectiva de esquerda, e desde abajo, não se trata de uma candidatura pessoal.
Para os companheiros e companheiras que se reivindicam da tradição de Karl Marx talvez esteja na hora de recuperar a contribuição negligenciada pelo marxismo eurocêntrico acerca dos conhecimentos de Marx da periferia do capitalismo, que passara a desenvolver de maneira sistemática quando aprendera russo depois de publicar O Capital. O Marx Tardio reconhecerá a importância das comunas não só pela experiência que vira brotar na Comuna de Paris, em 1871, como da importância da obschina, a comunidade rural russa, que Marx conhecera e, em carta-resposta à revolucionária Vera Zasulich, diria ser perfeitamente compatível com a construção de uma sociedade comunista. Com toda certeza, as comunidades indígenas, quilombolas e camponesas, cujos parentes hoje habitam nossas periferias urbanas que se ampliaram enormemente nos últimos 40/50 anos, estão aí nos oferecendo um outro horizonte de sentido para a vida e a política. A se confirmar a candidatura em segundo turno do candidato do Pachakutik, a cena política que se apresenta é de novo tipo entre duas candidaturas que se reivindicam desde o campo popular e não entre a esquerda e a direita, como tem sido em vários pleitos recentes. Há que se ver se as candidaturas em jogo se construirão em torno de propostas de seu campo, de esquerda e desde abajo, ou se preferirão buscar aliados à direita e, assim, preferindo “ganhar as eleições’ e não construir um outro horizonte de sentido para a vida e a política que é o que daria algum sentido a um governo de esquerda desde abajo. Insistimos, não basta ser de esquerda, há que ser também desde abajo.
Assim, para que se vá além dos limites dos governos progressistas e seu extrativismo, racismo e machismo há que ter uma agenda popular que estimule ao máximo o protagonismo e que tenha claro o significado da banca, de La Embajada e das oligarquias e que, como nos ensinara o Mestre Aníbal Quijano, há que se caminhar com o estado, contra o estado, para além do estado não fazendo da necessidade virtude. Com a derrota das direitas, as forças que se reivindicam de esquerda, e desde abajo segundo outra topologia, estão diante do desafio de afirmar os interesses maiores dos que, até aqui, vivem em situação de opressão/exploração/subalternização. Já sabemos, pelo menos, que erros não devemos cometer. O cavalo da história não costuma passar duas vezes na nossa porta!

 
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Carlos Walter Porto-Gonçalves é professor Titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF e Co-Ordenador do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e de Territorialidades.
Elaine Tavares é jornalista no Iela. Mestre em Comunicação Social e Doutora em Serviço Social. 

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