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França, principal espiã dos EUA em Cuba

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Por IELA em 14 de outubro de 2020

França, principal espiã dos EUA em Cuba

Publicado originalmente en Le Monde Diplomatic
Em maio de 1960, Cuba e a União Soviética restabeleceram as relações diplomáticas que o ditador Fulgencio Batista havia rompido em abril de 1952. Ali naquela data, Washington já sabotava a economia cubana, patrocinava agressões militares de exilados e se recusava até a vender peças de reposição das armas recuperadas da ditadura. Em abril de 1961, uma grande força mercenária, treinada e liderada pela CIA, tentou invadir Cuba pela Baía dos Porcos; em 3 de fevereiro do ano seguinte, o presidente John F. Kennedy ordenou o bloqueio total do comércio entre as duas nações. Quase ao mesmo tempo, desenvolvia-se a Operação Mongoose, codinome de uma estratégia de Segurança Nacional ordenada por Kennedy com o objetivo de atacar Cuba de todas as formas, inclusive com a invasão direta dos mariners.
Enquanto Washington tinha como único objetivo acabar com a revolução, Moscou aumentava acordos comerciais vantajosos com Cuba e contribuía na modernização da defesa militar. Quando os serviços de inteligência soviéticos detectaram o plano de invasão, notificaram Cuba. É a partir daí que os revolucionários sugerem ao líder soviético Nikita Khrushchev a instalação de uma força de dissuasão. Este aceitou de imediato, uma vez que Washington havia instalado pouco antes, na Turquia e na Itália, mísseis nucleares capazes de atingir seu território em poucos minutos.
O Kremlin começou a desenvolver a Operação Anadyr (Анадырь): entre junho e outubro de 1962 foi transportando o que era necessário para instalar, entre outras coisas, 24 plataformas de lançamento de mísseis balísticos, portadores de ogivas nucleares.
Em 22 de outubro, Dean Acheson, ex-chefe do Departamento de Estado, foi a Paris para entregar uma carta de Kennedy ao presidente francês Charles de Gaulle. Nela comunicava uma decisão tomada após uma semana de investigações e discussões ultrassecretas: dois dias depois, anunciaria à nação o estabelecimento de um bloqueio em torno de Cuba. Isso “vai abranger todo o tipo de armamento, num futuro próximo abrangerá também os derivados de petróleo e, se for necessário posteriormente, será total”, dizia o relatório oficial daquela reunião.1
É que no dia 14 daquele mês um avião espião U2 tirou as fotos que forneceram a Washington evidências sólidas da presença dos mísseis na ilha. O relatório especifica: “Parece que os sistemas de armas que estão sendo instalados ainda não estão completos. […] Se trata de impedir a chegada deles.”
Segundo a mesma fonte, de Gaulle entendeu que Kennedy não pedia a sua opinião ou participação, por isso expressou: “A França não pode opor-se, porque é normal um país defender-se, mesmo como medida preventiva, se está ameaçado e dispõe de meios para se defender”.
De acordo com Acheson, De Gaulle lhe disse: “Eu aprovo a política firme de seu presidente”. Surpreendido por tal atitude: “Nesta ocasião, a França é um aliado mais fiel e tranquilizador de Washington do que Londres, que teme o pacifismo da imprensa e da opinião pública”.2
Tal solidariedade não era esperada, uma vez que ocorriam confrontos políticos entre as nações por questões geoestratégicas. E, em particular, de Gaulle foi um dos poucos líderes que se recusou a romper relações ou aderir ao bloqueio contra Cuba.
Nessa reunião, ainda segundo o relatório oficial, foi dito que os objetivos do governo soviético eram que os Estados Unidos parassem de ameaçar a União Soviética e seus aliados com seus mísseis; não invadir Cuba; causar “confusão moral no hemisfério ocidental”; “Finalmente, no nível diplomático, Khrushchev tem a oportunidade de dizer: vamos falar sobre a eliminação de todas as bases militares em solo estrangeiro”.
Em 28 de outubro, soviéticos e norte-americanos chegaram a um acordo: a retirada dos mísseis de Cuba, Itália e Turquia; e o compromisso com a não invasão de Cuba. Essas negociações foram conduzidas à revelia dos membros da Otan e do principal envolvido, Cuba.
Esse apoio absoluto não foi o único envolvimento da França naquela crise: ela desempenhou um papel determinante antes de começar. De Gaulle não ficou surpreso ou preocupado com o anúncio de Kennedy, e não apenas porque ele tinha certeza de que não haveria guerra nuclear.3 É que o general estava ciente da Operação Anadyr porque seus serviços de espionagem a detectaram em Cuba praticamente desde o início…
Antes do triunfo da Revolução, Cuba era para o governo francês “uma zona norte-americana, um lugar para diversão de bilionários e gangsters”.4 Desde que Fidel Castro chegou ao poder, as coisas mudaram drasticamente com o reconhecimento da Frente de Libertação Nacional, FLN, que lutou contra a França pela independência da Argélia, com tudo o que isso implicava. Assim, Paris decidiu enviar, em setembro de 1959, o embaixador Roger du Gardier, que ocupara o mesmo cargo na Guatemala durante a derrubada do presidente Jacob Arbenz pela CIA em 1954.
E Philippe Thyraud de Vosjoli, vulgo Lamia, teve que visitar Cuba com mais frequência. Ele era, oficialmente, o vice-cônsul da França em Washington encarregado do controle de vistos, mas na realidade era o elo entre o Serviço de Documentação Estrangeira e Contra-Espionagem (SDECE) e a CIA. Com contatos entre a burguesia cubana, ele agora tinha que “consolidar as redes de informação existentes”. Em coordenação com o embaixador Du Gardier, ele fez um trabalho muito eficiente, conforme diria em suas Memórias.5
De Vosjoli disse que após a derrota na Baía dos Porcos, o chefe da CIA o convocou com urgência. Allen Dulles, responsável por esta humilhação, disse-lhe que as comunicações com os seus contatos foram interrompidas: “Não sabemos nada do que está acontecendo em Havana”. Por ser francês, não levantaria suspeitas entre as autoridades cubanas, por isso sugeriu que fosse até ele para levar informações. Paris o autorizou, e em 27 de abril de 1961 viajou, voltou em 3 de maio e um carro o levou diretamente à sede da CIA.
Com as informações, Dulles fez um relatório para Kennedy, que foi usado no dia 5 no Conselho de Segurança Nacional, onde o único ponto era Cuba. Dali saiu a decisão de continuar buscando não só o fim de Fidel Castro e de sua revolução, mas também a urgência de encontrar informações sobre os acordos militares entre a URSS e Cuba.
Imediatamente Dulles pediu a De Vosjoli que a segurança francesa lhe fornecesse as informações que obteve sobre Cuba. A liderança da SDECE estava de acordo. Pouco depois, a CIA entregou a De Vosjoli um transmissor minúsculo e moderno que foi instalado em um escritório remoto da Embaixada francesa. Desse lugar, as informações iam direto para a estação da CIA em Miami.
Dessa forma, Du Gardier e De Vosjoli tornaram-se os melhores colaboradores da CIA, a ponto de trabalhar mais para ela do que para suas instituições em Paris.6
Enquanto isso, o presidente De Gaulle havia dado a ordem de buscar informações e meios para aumentar o poder atômico francês. De Vosjoli viu que o trabalho que desenvolviam em Cuba, uma prioridade de Washington, poderia ser trocado. Mas por disposição do Congresso, os Estados Unidos não podiam fornecer informações, nem computadores nem urânio enriquecido. Kennedy, que também não o desejava, em janeiro de 1962 autorizou a CIA a fornecer o que quer que tivessem sobre o desenvolvimento nuclear soviético.
Enquanto a CIA entregava documentação desinteressante, em 28 de maio Paris autorizou Langley a ter seu próprio escritório na embaixada da França em Havana. De Vosjoli era o encarregado de transportar o equipamento de interceptação e comunicação mais sofisticado que a CIA tinha na mala diplomática.7
Segundo suas Memórias, em julho os informantes e o embaixador Du Gautier começaram a informar “a chegada dos navios soviéticos a Havana e, estranhamente, a Mariel, um pequeno porto que raramente aparece nos mapas de Cuba […] e isso me intrigou muito pois o porto foi fechado aos cubanos e os soldados soviéticos descarregavam os próprios navios. Que objetos preciosos Khrushchev poderia ter enviado para Cuba?”.
O responsável da SDECE passou a dizer que de “várias fontes, geralmente muito bem informadas”, soube da chegada, “desde o início de agosto, de grandes grupos de jovens que […] desembarcavam à noite de navios russos nos portos de Mariel e Bahía Honda…”.
De Vosjoli, então, entrevistou imediatamente o novo chefe da CIA, John McCone, verificando que ninguém sabia o que realmente estava acontecendo.
O espião voltou para Havana. Mas os relatos que receberam, ele e o embaixador, de seus informantes cubanos pareciam um tanto fantasiosos. Até que um militar francês, que estava passando férias na ilha, “me informou que tinha visto um foguete transportado em um caminhão”, bem como “grandes semi-reboques transportando foguetes russos sob uma lona”.
Além disso, dois “assistentes da embaixada” encontraram algumas noites antes, “em uma estrada secundária que a polícia evacuou, comboios militares viajando de oeste para leste, incluindo tratores pesados dirigindo reboques duplos de seis rodas, nos quais supostamente se encontravam rampas de lançamento de foguetes com cerca de 12 metros de comprimento”.
Quando De Vosjoli não estava em Cuba, era o filho do embaixador que transportava até mesmo microfilmes para Nova York. Em outras ocasiões, viajou a esposa do embaixador brasileiro, que se tornou braço direito dos espiões gauleses.
Em 22 de agosto de 1962, McCone fez um relatório a Kennedy sobre os alegados mísseis e a ajuda militar soviética a Cuba: quase tudo se baseava nas contribuições de De Vosjoli.
Os franceses fizeram um trabalho tão eficiente e importante que, em 7 de setembro de 1962, o embaixador francês em Washington, Hervé Alphand, escreveu ao ministro das Relações Exteriores, Maurice Couve de Murville, para dizer-lhe que o secretário de Estado de Kennedy, Dean Rusk, “agradecia a informação sobre a situação em Cuba proporcionada ao Departamento de Estado e aos serviços dos Estados Unidos”.8
Em outubro, De Vosjoli recebeu os agradecimentos pessoais de McCone. Não era de se admirar: “Tenho motivos para acreditar que minhas informações, junto com as de outras pessoas, foram a base para a decisão do presidente Kennedy de responsabilizar os russos”.
Foi uma contribuição fundamental que o Estado francês deu aos Estados Unidos ao descobrir a chegada dos mísseis soviéticos, que em breve seriam a causa da crise mais grave da chamada Guerra Fria. É certo que “pela correção e pela importância do assunto, esta obra foi uma das mais importantes da história da inteligência francesa”.9
A França cumpriu o acordo. Embora as informações que a CIA forneceu sobre a fabricação de armas nucleares soviéticas não tenham contribuído para o desenvolvimento de sua estratégia nuclear…
 
Hernando Calvo Ospina é jornalista.
 
1 Archives de la présidence de la République, 4AG1-201. Archives Nacionales, París. Ver também: BURIN DE ROZIERS. 1962, L’année décisive, Editions Plon, 1965.
2 Relato de Dean Acheson, Oral History, Kennedy Library. Citado em La France et la crise de Cuba, Vaisse, Maurice, Histoire, économie et societé, 1994. Ver também: LACOUTURE, Jean, De Gaulle, tome III, Le Souverain, Paris, Editions du Seuil, 1986.
3 “De Gaulle et la crise de Cuba: la conduite de crise, avant, pendant et après”, Fondation Charles de Gaulle, Lettre Nº14, París, 11 jun. 2020.
4 JAUVERT, Vincent. L´Amérique contre De Gaulle, Editions du Seuil, París, out. 2000.
5 THYRAUD de VOSJOLI. Philippe, Lamia, l’anti-barbouze, Les Éditions de l’Homme, Montreal, 1972.
6 JAUVERT, op.cit.
7 Idem. Ver también THYRAUD de VOSJOLI, op.cit.
8 ALPHAND, Hervé. L’Étonnement d’être. Journal 1933-1973, Editions Fayard, París, 1997.
9 JAUVERT, op.cit.
 

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