Aqui não é a América: o neoimperialismo trumpista e a encruzilhada latino-americana
Texto: Luís Felipe Machado de Genaro
Aguarde, carregando...
Idea Vilariño (18.08.1920 – 28.04.2009)
Por Henrique Júdice – Jornalista
Em 28.04, Idea Vilariño expirou em Montevideo. Numa prova final da coerência que marcou sua vida, a mulher que considerava a escrita o ato mais íntimo de sua existência, praticamente não dava entrevistas e recusou quase todos os prêmios e homenagens que lhe foram oferecidos deixou-nos durante a madrugada, quando os jornais do dia já estavam prontos e sua partida seria notícia velha demais para as primeiras páginas do dia seguinte.
A morte talvez tenha-lhe trazido algum descanso após 88 anos de uma angustiada existência. Mas não lhe dará o esquecimento que ela, por vezes, parecia buscar desesperadamente. Elena Idea Vilariño Romani será lembrada para sempre como uma das maiores poetas do Uruguai, da Indoamérica e da língua espanhola. Como escreveu o crítico Emir Rodríguez Monegal na década de 50, se falará dela como da maior expoente de uma geração excepcional, que inclui escritores como Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti, Angel Rama, Ida Vitale, Sarandy Cabrera, Manuel Claps e o próprio Rodríguez Monegal. “De todos nós, se falará por termos sido contemporâneos de Idea” – disse ele.
Sua poesia de versos curtos, poucas rimas, nenhuma métrica e ritmo perfeito – “anti-retórica por excelência”, no dizer de Luis Gregorich – faz parte, a um só tempo, do dia-a-dia do povo uruguaio e do mais alto cânone da literatura hispanófona. Seus versos, tão finamente elaborados, são também de uma simplicidade única quanto aos temas e vocábulos. Recorrendo mais uma vez às palavras de Gregorich na introdução a sua Poesia Completa (Montevideo, Cal y Canto, 2007), a obra de Idea constrói-se, em grande medida, com base nas lacunas, mas – até mesmo por isso – “confere tal grau de combustão e magnetismo às pouquíssimas palavras que emprega que, junto a esses núcleos de sentido (…), prontamente se aglutinam as imagens mais variadas do amor ou do sofrimento”.
Estas são algumas da aparentes antíteses que, em Idea, somam-se para forma uma totalidade coerente. “Tudo na poeta uruguaia parece dicotômico, mas ao se olhar para sua olbra e para sua biografia vislumbra-se a integradade de uma vida capaz de abranger os opostos. Uma mulher que `viveu como homem` como ela própria diz, mas escreveu a mais apaixonada poesia amoros feminina”, observa Norma Morandino no Clarin de 06.05.2001. Tão intensa quanto reservada, tão apaixonada quanto solitária, tão desesperada quanto altiva, a autora de algum dos versos mais amargos e desolados da literatura hispanófona (Cada olhar se desvia/ cada boca emudece/ Cada pápebra cai/ Cada estrela caduca) foi quem escreveu Los Orientales, para ser musicada por Pepe Guerra e tornar-se hino e expressão da esperança de centena de milhares de pessoas que a entoavam a pelnos pulmóes nas ruas de Montevideo nos anos 70 e 80.
“É quase impossível vir do lar de um poeta anarquista e de uma boa leitora, e de irmãos chamados Alma, Numen, Poema e Azul e não ser especial – principalmente quando se tem o nome de Idea”, dizia o jornal uruguaio La República em 03.09.2000. O ambiente doméstico, sem dúvida, teve algum peso na formação da poetisa. Mais do que filha de um artista, contudo, ela era filha – decerto a amis brilhante e ousada – da peculiar sociedade montevideana da primeira metade do século XX.
Sob a égide do presidente José Battle y Ordóñez, o Uruguai viveu, no começo do século passado, uma revolução democrática incompleta – posto que manteve intacta a estrutura agrária – mas de profundidade ímpar em certos aspectos. Além da nacionalização de setores básicos da economia e do reconhecimento de direitos que os trabalhadores brasileiros e argentinos só viriam a conquistar 30 ou 40 anos depois, Battle promoveu a completa laicização do Estado oriental, tendo como frutos a expressiva melhoria da condição social da mulher (com a instituição do divórcio [1907], do acesso à universidade [1912] e do voto feminino [1917]) e a definitiva libertação do sistema educacional público uruguaio (já então um dos melhores do mundo) das amarras do obscurantismo clerical. A excelência da escola pública uruguaia mede-se pelo fato de a própria Idea ter sido, durante 21 anos (1952-73), professora secundária e ginasial de Literatura em colégios estatais – atividade que só deixou de exercer por ter sido demitida quando do golpe cívico-militar de 1973.
Quando as bases materiais desse processo começam a se esgotar devido à queda do preço internacional da carne (principal fonte de divisas do Uruguai), Idea assume um firme compromisso com a causa do socialismo e da libertação nacional e indoamericana. A partir de 1948, escreve no semanário Marcha, que reunia o melhor da intelectualidade antiimperialista uruguaia e com o qual rompe em 1955 devido ao veto do diretor Carlos Quijano à publicação de um verso seu (“um lenço com sangue, sêmen, lágrimas). Retorna a Marcha em 1967, em razão do acirramento da luta política no Uruguai, e fica até o empastelamento do jornal pela ditadura em 1973. Após a queda do regime, em 1985, funda, com outros remanescentes de Marcha, o semanário Brecha, com o qual rompe em 1993 por divergências sobre Cuba (Idea apoiava incondicionalmente a revolução).
Rupturas e recusas, movidas sempre por princípios, foram constantes na vida de Idea. Além de declinar, durante 33 anos (1955-88) de todos os prêmios oficiais uruguaios, ela rechaçou, em 1982, a disputadíssima bolsa Guggenheim, oferecida pela fundação norte-americana homônima e, em 1999, a indicação ao Prêmio Octavio Paz (nos dois primeiros casos, teve a companhia de Mario Benedetti, seu companheiro em Marcha e nas revistas literárias Número e Clinamen).
Idea Vilariño foi uma mulher íntegra, talentosa e bela. Sua integridade, seu talento e sua beleza alimentavam-se reciprocamente. Deixa, além do exemplo de retidão, uma obra fácil de ser lida e difícil de ser analisada. Certamente ainda se escreverá muito sobre ela no Uruguai e em outros países de língua espanhola (no Brasil, excetuando-se a publicação de uma antologia bilíngue em 1996 pela Unisinos, permanece ignorada pela universidade e pela imprensa), sem que se chegue a qualquer conclusão, já que, como dito com acerto na nota de pesar que o governo de seu país emitiu após sua morte, tentar definí-la é como tentar aprisionar o vento.
NOTA
(1) Orientais é como os uruguaios referem-se a si mesmos, por situar-se seu país a leste do rio que lhe dá o nome.
Livros
La Suplicante (1945)
Cielo cielo (1947)
Paraiso perdido (1949)
Por aire sucio (1951)
Nocturnos (1955)
Poemas de amor (1957)
Pobre mundo (1966)
No (1980)
Canciones (1993)
Nocturnos e Poemas de Amor tiveram sucessivas reedições ampliadas. Idea publicou também diversos estudos literários, entre os quais destacam-se Las letras de tango (1965), El Tango (1981) e as edições críticas das obras de Juan Parra del Riego, Julio Herrera y Reissig e Humberto Megget. Traduziu também diversas obras do inglês e do francês, entre elas peças de Shakespeare e La Tierra Purpúrea, de William H. Hudson – este um dos mais importantes livros escritos sobre o Uruguai.
Los orientales (Idea Vilariño – música de Pepe Guerra)
De todas partes vienen,
sangre y coraje,
para salvar su suelo
los orientales;
vienen de las cuchillas,
con lanza y sable,
entre las hierbas brotan
los orientales.
Salen de los poblados,
del monte salen,
en cada esquina esperan
los orientales.
Porque dejaron sus vidas,
sus amigos y sus bienes,
porque les és más querida
la libertad que no tienen,
porque es ajena la tierra
y la libertad ajena
y porque siempre los pueblos
saben romper las cadenas.
Eran diez, eran veinte,
eran cincuenta,
eran mil, eran miles,
ya no se cuentan.
Rebeldes y valientes
se van marchando,
las cosas que más quieren
abandonando.
Como un viento que arrasa
van arrasando,
como un agua que limpia
vienen limpiando.
Porque dejaron sus vidas,
sus amigos y sus bienes,
porque les és más querida
la libertad que no tienen,
porque es ajena la tierra
y la libertad ajena
y porque siempre los pueblos
saben romper las cadenas.
Carta de Mario Benedetti a Idea Vilariño
Tradução: Henrique Júdice
Madri, 2 de setembro de 1982
Querida Idea:
escrevo-lhe no único pedaço de papel que tenho à mão neste hotel de Madri. Faz dois dias que cheguei da Dinamarca (estive com Daniel (1) o Cantor) e amanhã parto rumo ao México. Luz (2) acaba de ler para mim, por telefone, sua carta-consulta, e aqui estou – procurando, como você me pede, ser absolutamente sincero em minha resposta. E ela não é fácil, dadas as circunstâncias atuais. Você sabe que, por volta de 65 ou 66, me ofereceram a Guggenheim (por indicação de Frasconi [3]) e eu a recusei. Antes, no entanto (em 59/60), havia aceito o convite do American Council para assistir peças de teatro nos Estados Unidos durante cinco meses. Essa viagem me transformou num anti-ianque vitalício. Desta forma, em minha própria história, constam um Sim e um Não. Essa aparente contradição se explica – creio – porque mudamos, e é provável que tenha podido decidir o Não de 65 em razão do que aprendi quando do Sim de 60. Sei de gente de esquerda (como Haroldo Conti (4) e, mais recentemente, Jorge Musto [5]) que recusou a Guggenheim, e sei de outras pessoas, também de esquerda (como Augusto Boal, além do já citado Frasconi), que a aceitou em diversas épocas sem que isso tenha debilitado sua militância. Talvez por isso, minha tendência atual é não ser esquemático quanto ao assunto, menos ainda nas atuais circunstâncias do Cone Sul. Creio que o essencial é como se sente cada um. Se alguém aceita isso a contrapelo de si mesmo, o resultado pode ser negativo; mas se encontra em si mesmo uma motivação legitima, provavelmente será bom. Não descarte, além do mais, a hipótese de que, apesar de tudo, te neguem o visto. No ano passado, a universidade e a ordem dos advogados de Porto Rico me convidaram para uma conferência e leitura de poemas e decidi aceitar, primeiro porque era Porto Rico e segundo porque os organizadores eram independentistas. No entanto, tudo ficou na estaca zero, pois o Departamento de Estado me negou o visto. A essa altura, você provavelmente deve estar pensando que ainda não te respondi. Mas a verdade é que, sinceramente, não posso ir além disso, pois eu tampouco sei claramente qual deve ser sua resposta. Se você me tivesse feito a pergunta em 1960, eu lhe diria que não, sem hesitar. Mas hoje, o conselho não pode ser tão taxativo, e creio que as razões que você menciona em sua carta são muito convincentes, e também é convincente o espaço que a aceitação abriria a seu próprio trabalho. Ou seja, retorno ao que disse antes: o essencial, para que tudo não se transforme em frustração, é o estado de ânimo, a disposição que permita superar as interpretações alheias e enfrentar os próprios escrúpulos. Dentro de aproximadamente 20 dias, estarei de volta; digo isso para o caso de que queiras escrever-me novamente. Não sei se sabes que, no fim de julho, morreu a mãe de Claribel (6). Certamente me encontrarei no México com ela e com Bud. Parece que estarão novamente em Mallorca no começo de outubro, pois já terminaram sua segunda etapa nica (7). Agora estou me dedicando a um novo livro de contos, mas ainda falta bastante. Lembranças a Jorge(8), beijos de Luz e um forte abraço de Mario.
Brecha, Montevideo, 30.04.2009
NOTAS
(1) Daniel Viglietti, cantor e compositor uruguaio (Nota do Tradutor).
(2) Luz López Alegre, esposa de Benedetti (N do T).
(3) Antonio Frasconi (1919), pintor e gravador uruguaio. Foi chargista de Marcha (Nota de Brecha).
(4) Escritor argentino (1925-76) assassinado pela ditadura de Videla (N do T).
(5) Escritor e dramaturgo uruguaio nascido em 1927 (N do T).
(6) Claribel Alegría, a poeta salvadorenha, Bud é seu marido (Nota de Brecha).
(7) Diminutivo carinhoso de nicaraguense (N do T).
(8) Jorge Liberatti, marido de Idea (Nota de Brecha).
Texto: Luís Felipe Machado de Genaro
Texto: José Ernesto Novaez Guerrero - jornalista
Texto: IELA
Texto: Abdiel Rodríguez Reyes - Panamá
Texto: Yasser Jamil Fayad