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Cinco estratégias da guerra híbrida na Bolívia

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Por IELA em 18 de novembro de 2019

Cinco estratégias da guerra híbrida na Bolívia

Foto: Natacha Pisarenko/AP – população segue em resistência

A queda do governo de Evo Morales é um novo capítulo da guerra híbrida. Uma combinação de actos de guerra convencional, milícias irregulares e desordem criminal, apoiados em narrativas mediáticas e na acção diplomática. Cinco cursos de acção que revelam porque na Bolívia não houve uma rebelião popular e sim uma agressão altamente planificada.
O golpe de Estado na Bolívia não pode ser explicado recorrendo só a factores da dinâmica interna do país. Antes, por um conjunto de indícios, encaixa-se perfeitamente dentro do continuum de eventos internacionais denominados guerra híbrida , uma disputa que tem como protagonistas principais os EUA e a Rússia. Esta estende-se por diferentes cenários do planeta: Ucrânia, Síria, Venezuela, Líbano, Nicarágua.
A guerra híbrida pode ser definida como uma combinação num campo de batalha de forças regulares e actores não estatais, ciber-ataques, tarefas de espionagem e propaganda, campanhas de desestabilização e outras ferramentas para depor governos.
Estratégias da guerra híbrida na Bolívia
As análises que pretendem limitar a origem dos acontecimentos na Bolívia a particularidades locais, ódio racial ou decisões do governo deposto passam por alto todas as pistas do desenho planificado que permitiu a tomada militar do território. À medida que passam as horas, revelam-se os perfis de uma operação organizada a partir do exterior , cavalgando sobre rivalidades e divisões internas da população local.
O país foi abalado por uma combinação de milícias irregulares, actos terroristas e desordem criminal., apoiados numa narrativa mediática e numa acção diplomática que legitimaram e potenciaram a velocidade dos acontecimentos. O objectivo principal foi assestar um grande impacto psicológico na população e nos dirigentes bolivianos, que permitiu o derrube em cadeia do governo em menos de 48 horas.
1. Hordas urbanas e tropas irregulares: cidadãos no campo de batalha
Amparadas na narrativa da “indignação popular” por uma suposta fraude eleitoral, milícias criminosas tomaram o controle das cidades. Em Cochabamba e outras partes do país os motoqueiros da denominada Resistência Cochala utilizaram bazucas e água com produtos químicos para atacar militantes do MAS que tentavam levantar bloqueios nas vias públicas e restabelecer a paz. Grupos armados moveram-se coordenadamente de Santa Cruz para La Paz e outros pontos estratégicos, segundo um plano não pode ser espontâneo. Esta forma de guerrilha urbana revela um grau de preparação prévia, treino e financiamento dos grupos de choque.
Os motoqueiros – cuidadosamente ocultados no relato mediático – semearam o terror em diferentes cidades e até utilizaram ambulâncias para transportar armamento de guerra. Os grupos de choque tomaram as ruas e centraram sua operação em instituições do Estado boliviano, perseguiram funcionários e atemorizaram a base social de apoio ao Governo. Em todo o país, a superioridade das milícias criminosas impôs-se aos cidadãos – comerciantes e trabalhadores – que pretenderam restabelecer a normalidade.
Num momento chave este processo contou com o aquartelamento da Polícia que deixou uma virtual zona libertada para a acção dos paramilitares. Os motins policiais acrescentaram sinergia à sedição para nutrir a logística dos grupos de choque, que estiveram em condições de abastecer-se de armamento, vestuário, coletes anti-balas, rádios e outros instrumentos.
2. Rede de ONGs e activistas sicários como fonte de noticias que validam a ‘revolução cidadã’
A guerra híbrida apropria-se de temáticas, técnicas e palavras de ordem tradicionais da luta popular e cria nos territórios alvo uma rede de organizações sicárias actuam como ONGs, jornalistas independentes e activistas cidadãos. Estas trabalham de forma coordenada com as operações militares para alimentar narrativas noticiosas orientadas para a manipulação mental em grande escala.
Na Bolívia, tal como em outros teatros de operações, um conjunto de organizações civis actuou como força de recrutamento e doutrinação de jovens, bem como plataforma de propaganda da operação bélica. Sua acção tendenciosa é notória em três circunstâncias visíveis:
1. Suas figuras públicas arvoram posições abertamente partidárias que costumam ser vetadas em organizações do seu tipo.2. Seu financiamento provém de fundos estrangeiros, habitualmente agências norte-americanas de fomento à democracia.3. Sua fonte de consulta habitual das grandes cadeias noticiosas norte-americanas e europeias, que concedem ao seu testemunho uma pátina de imparcialidade no terreno dos factos.
Nos dias posteriores à operação, estas fontes trabalham para encobrir os crimes da mesma e estigmatizar o Governo derrubado.
3. Apagão informativo e redes sociais que naturalizam a violência
Num cenário de guerra híbrida, a percepção da cidadania do que acontece é vital para ganhar a batalha. A tomada da TV Bolívia por parte de grupos guerrilheiros evidenciou-se como parte de um plano militar. O apagão informativo da emissora oficial permitiu optimizar a tarefa da rede de meios afectos, que se dedicaram a semear a confusão e a desinformação.
Esta narrativa nos media tradicionais articula-se com o ciber-ataque nas redes: bots, trolls e activistas dedicam-se a inundar o Twitter e o Facebook com mensagens, memes e testemunhos ao vivo que constroem um cenário mentiroso de unanimidade anti-Governo entre a população. Legitima-se a barbárie que se verifica nas ruas e inverte-se a responsabilidade pelos factos, uma vez que se culpa o Governo pelo clima de violência.
4. Acção política e diplomática para potenciar os conflitos e legitimar a sedição
Cartoon de Latuff.O conflito em torno às denúncias de fraude eleitoral foi artificialmente montado para criar uma narrativa que explicasse e justificasse a rebelião cidadão. O curso dos acontecimentos permite deduzir que não houve nenhuma fraude porque, do contrário, a acção política dos cidadãos teria aguardado o veredicto da comissão da OEA, que estava previsto para este 12 de Novembro. A atitude negociadora do Governo não permitiu nenhum extravasamento prévio e, menos ainda, tendo em conta que os representantes da OEA apresentaram-se desde o princípio como hostis ao Governo.
O presidente dos EUA, Donald Trump, coroou o menu de indícios com o seu aplauso ao golpe e, também, a recusa de Governos alinhados com Washington a facilitar o resgate aéreo de Evo Morales pelo México.
5. Criminalização do Governo cessante e fomento das divisões sociais
A guerra híbrida contra os povos do mundo não pretende a substituição de um governo indesejável por um governo títere, nem tão pouco a remoção de um sector da sociedade para que governe outro. Trata-se, antes, de que não governe ninguém e de assentar as bases para um desgoverno de tempo indefinido. É mais o fomento do caos do que a tomada do controle. Coloca-se a concepção de uma guerra de cães: mediante agressões e atentados contra certos grupos plantam-se as sementes de um ódio profundo entre facções rivais. Nos últimos dias, este processo ganha corpo com o início de uma limpeza étnica e política contra as camadas sociais que apoiam Evo Morales, assim como pelo encarceramento de funcionários do Governo derrubado sob acusações sem fundamento. A promessa do cidadão Camacho, líder da sedição, de sair à caça de militantes do MAS é outro ingrediente nessa linha.
Os desacordos no seio da coligação golpista para constituir governo fazem parte de um menu que inclui o fomento do caos e a ausência de institucionalidade.
A concepção da guerra híbrida orienta-se para que o Estado impluda pelo desacordo geral e o ódio. Trata-se de cultivar a percepção da comunidade internacional e, entre os próprios bolivianos, de que o país fracassa por culpa da sua própria população, dividida em tribos irreconciliáveis.
Conclusão: o perigo de uma guerra continental
A acção destrutiva dos bandos criminosos que operam na Bolívia – civis, polícias e militares sediciosos – tem uma inspiração estrangeira. No fundo, o objectivo principal é humilhar o país, submeter ao escárnio a população mais combativa e fazer retroceder décadas o desenvolvimento da sociedade no seu conjunto. O Exército e a Policia, que disseram negar-se a reprimir bolivianos, já actuam como uma força de ocupação estrangeira, espancando impunemente os manifestantes que reclamam em favor do Governo legitimamente eleito.
A guerra híbrida na Bolívia faz parte de uma geopolítica mundial muito mais ampla, onde toda a estabilidade do continente corre perigo. Urge tomar consciência, ganhar as ruas e deter a escalada.
 

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