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Como nasceu e como morreu o “marxismo ocidental”

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Por IELA em 10 de julho de 2018

Como nasceu e como morreu o “marxismo ocidental”

Domenico Losurdo

Por muito tempo o “marxismo ocidental” celebrou a sua superioridade em relação ao marxismo dos países que se remetiam ao socialismo e que estavam todos situados no Oriente. Em decorrência dessa atitude arrogante, o marxismo ocidental nunca se empenhou seriamente em repensar a teoria de Marx à luz de um balanço histórico concreto: qual era o papel do Estado e da nação nesses países e no “campo socialista”? Como promover a democracia e os direitos humanos e como estimular o desenvolvimento das forças produtivas e o bem-estar das massas numa situação caracterizada pelo bloqueio capitalista? Ao invés de pôr-se essas questões difíceis, o marxismo ocidental preferiu abandonar-se à cômoda atitude autoconsolatória de quem cultiva em particular as suas utopias e rejeita, como uma contaminação, o contato com a realidade e a reflexão sobre a realidade. Disso derivou uma progressiva capitulação à ideologia dominante. Por fim, a autocelebração do marxismo ocidental desembocou na sua autodissolução. 
1. O “marxismo ocidental” e a remoção da questão colonial 
Por que o marxismo ocidental, após desfrutar de um sucesso extraordinário até se tornar a koiné das décadas de 1960 e 1970, mergulhou numa crise tão profunda? Sem dúvida, os fatos históricos que todos conhecemos e que culminaram com a queda da União Soviética e do “bloco socialista” desempenharam neste caso um papel fundamental. No entanto, embora inevitável, esse tipo de explicação não é exaustivo: é necessário aprofundar a análise, concentrando a atenção nas fraquezas intrínsecas que o marxismo ocidental revela no Ocidente, mesmo na época em que sua hegemonia parece incontestável. Nada é mais verdadeiro em relação à Itália. É preciso partir de um debate suscitado por Norberto Bobbio em 1954. Ele, embora insistindo justamente na irrenunciabilidade da liberdade formal e das suas garantias jurídico-institucionais, atribui como mérito dos Estados Socialistas o fato de eles “terem começado uma nova fase de progresso civil em países politicamente atrasados, introduzindo instituições tradicionalmente democráticas, de democracia formal, como o sufrágio universal e a elegibilidade dos cargos, e de democracia substancial, como a coletivização dos instrumentos de produção”.
Entretanto, é a conclusão crítica, o novo “Estado Socialista” não soube transplantar em seu bojo o governo da lei e os mecanismos de garantias liberais, não soube ainda proceder à “limitação do poder” e derramar “uma gota de óleo (liberal) nas engrenagens da revolução já realizada” [2] . Como se vê, estamos bem longe das posições assumidas pelo filósofo de Turim na última fase da sua evolução, no momento em ele se torna, em última análise, um ideólogo da guerra do Ocidente: em 1954 (faltam dois anos para o XX Congresso do PCUS e a revolta húngara) a influência do marxismo e o prestígio dos países que fazem referência a ele são grandes; nesse momento, ao lado da “democracia formal”, Bobbio teoriza também uma “democracia substancial”; além disso, expressa um juízo a respeito dos países socialistas que não é univocamente negativo, nem mesmo a respeito da “democracia formal”. 
Quais são as reações dos intelectuais comunistas italianos? Para rechaçar ou atenuar as críticas dirigidas, em primeiro lugar, à União Soviética, eles poderiam ter alegado o estado de exceção permanente imposto ao país surgido da Revolução de Outubro como justificativa parcial do atraso, bem como a ameaça do aniquilamento nuclear que pairava de forma contínua sobre ele. Galvano Della Volpe, ao contrário, segue uma estratégia totalmente diferente, concentrando-se na celebração da libertas maior (o desenvolvimento concreto da individualidade garantido pelas condições materiais de vida). Desse modo, por um lado, as garantias jurídicas do Estado de Direito são desvalorizadas, implicitamente rebaixadas à condição de libertas minor; por outro lado, acaba-se valorizando a transfiguração realizada por Bobbio da tradição liberal, enquanto campeã da causa da fruição universal (pelo menos dos direitos civis), da liberdade formal, da libertas minor, da “limitação do poder”.
Para sustentar essa visão, Bobbio remete ao hino que John Stuart Mill, em seu ensaio dedica à liberdade, talvez o mais célebre: On Liberty. Entretanto, é justamente nesse ensaio que vemos o liberal inglês justificar o “despotismo” do Ocidente sobre as “raças” ainda “menores de idade”, obrigadas a aceitar uma “obediência absoluta”, de tal forma que possam ser guiadas no caminho em direção ao progresso [3] . Em 1954, o “despotismo” e a “obediência absoluta” impostos pelo Ocidente eram muito bem percebidos no mundo colonial; nos Estados Unidos, os negros continuavam excluídos maciçamente dos direitos políticos e, às vezes, até dos direitos civis (no Sul ainda não desaparecera o regime de segregação racial e da white supremacy ). Della Volpe, completamente absorvido pela celebração da libertas maior, não se preocupa ou não é capaz de chamar a atenção para o equívoco clamoroso de Bobbio. 
O fato é que, embora apresentando-se cada vez de maneira diferente, a remoção da questão colonial caracteriza amplamente o marxismo ocidental daqueles anos. Em 1961, Ernest Bloch publica Direito Natural e Dignidade Humana. Como o próprio título revela, estamos bem longe da subestimação da libertas minor, tão cara a Della Volpe; ao contrário, a reivindicação da herança da tradição liberal é explícita, submetida, contudo, a uma crítica que infelizmente parece uma transfiguração. Bloch critica o liberalismo por defender uma “igualdade formal e apenas formal”. E acrescenta: “Para impor-se, o capitalismo está interessado só na realização de uma universalidade da regulamentação jurídica, que abraça tudo de maneira igual” [4] . 
Essa afirmação pode ser lida num livro publicado no mesmo ano em que a polícia, em Paris, desencadeia uma caça impiedosa contra os argelinos, afogados no rio Sena ou mortos a pauladas; e tudo isso à luz do dia, aliás, na presença de cidadãos franceses que, sob a proteção do governo da lei, assistem divertidos ao espetáculo: belo exemplo de “igualdade formal”! Na capital de um país capitalista e liberal assistimos a ação de uma dupla legislação, que entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem definido. Se, depois, considerarmos as colônias e as semi-colônias e olharmos, por exemplo, a Argélia ou então o Quênia ou a Guatemala (um país formalmente livre, mas, de fato, sob o protetorado norte-americano), veremos o Estado dominante, capitalista e liberal, lançando mão, de forma ampla e sistemática, da tortura, dos campos de concentração e das práticas genocidas contra os povos indígenas. Disso tudo não há vestígio nem em Bobbio, nem em Della Volpe e tampouco em Bloch. 
Os povos coloniais ou de origem colonial continuam ausentes quando o autor de Direito Natural e Dignidade Humana trata de Grotius e de Locke (o apreço por sua orientação jusnaturalista não menciona o empenho de ambos em justificar a escravidão negra), ou no momento em que faz referência à Guerra de Independência americana (a homenagem feita aos “jovens Estados livres” nem sequer menciona o peso da escravidão na realidade político-social e na própria Constituição dos EUA) [5] . 
Esse silêncio é ainda mais singular porque, justamente nesses anos, começa a desenvolver-se, na república do outro lado do Atlântico, a luta dos afro-americanos. É um acontecimento que chama a atenção de Mao Tsé-tung, em Pequim, e pode ser interessante confrontar os posicionamentos de duas personalidades tão diferentes entre si. Se o filósofo alemão denuncia o caráter meramente “formal” da igualdade liberal e capitalista, o dirigente comunista chinês procede, por sua vez, de maneira bem diferente. Decerto, ele ressalta o fato de os negros apresentarem uma taxa de desemprego bem maior que a dos brancos, além de serem confinados aos segmentos inferiores do mercado de trabalho e serem obrigados a contentar-se com salários reduzidos.
Isso, porém, não é tudo: Mao chama a atenção para a violência racista desencadeada pelas autoridades do Sul e pelos bandos tolerados ou encorajados por elas e celebra a “luta do povo negro americano contra a discriminação racial e pela liberdade e a igualdade dos direitos” [6] . Bloch critica a revolução burguesa pelo fato de ela “ter limitado a igualdade à liberdade política”; em relação aos afro-americanos, Mao observa que “a maioria deles está desprovida do direito de voto” [7] . Reduzidos à mercadoria e desumanizados pelos seus opressores, os povos coloniais travaram batalhas memoráveis pelo reconhecimento durante séculos, mas em Bloch se lê: “O princípio pelo qual os homens nascem livres e iguais já está presente no direito romano; agora deve estar presente também na realidade”. E vejamos agora a conclusão do artigo de Mao de 1963, acima citado: “O perverso sistema colonial-imperialista desenvolveu-se graças à escravidão e ao tráfico negreiro, e ele certamente chegará ao fim com a total libertação dos negros” [8] . 
Sinais semelhantes manifestam-se no Vietnã, onde está ocorrendo uma grande luta de libertação nacional guiada por Ho Chi Minh, que, já em 1920, acusara a Terceira República francesa nestes termos: “A chamada justiça indochinesa, naquela região, tem dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias dos europeus e dos europeizados”. Não são apenas “vergonhosamente oprimidos e explorados” mas também “horrivelmente martirizados” e sofrem “todas as atrocidades cometidas pelos bandidos do capital” [9] . Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e de Ho Chin Minh, a libertas minor tão cara a Della Volpe não é subestimada e tampouco a ilusão (comum, com modalidades diferentes, em Bobbio, Della Volpe e Bloch), segundo a qual o capitalismo e o liberalismo garantiriam de qualquer modo a “igualdade formal” ou até mesmo a “igualdade política”.
Tanto o líder chinês como o líder vietnamita têm, de alguma forma presente, a indicação de Lênin: “Os homens políticos mais liberais e radicais da livre Grã-Bretanha […] se transformam, quando se tornam governadores da Índia, em verdadeiros Genghis Khan” [10] . Na própria metrópole capitalista e liberal manifestam-se “contínuas violações da igualdade (inclusive) jurídica das nações”: a esse respeito, Lênin cita em 1920 o exemplo da “Irlanda” e dos “negros da América”; tanto na Inglaterra, como nos Estados Unidos, as “garantias dos direitos das minorias nacionais” [11] são vilipendiadas. E tanto Mao como Ho Chi Minh poderiam ter mencionado as páginas em que Marx denuncia o tratamento da Inglaterra liberal em relação à Irlanda (uma colônia situada na Europa): trata-se de uma política ainda mais cruel e terrorista do que a praticada pela Rússia czarista e autocrática contra a Polônia (MEW, XVI, 552). Como se vê, o marxismo “oriental” empenha-se, compreensivelmente, muito mais do que o marxismo “ocidental” na denúncia das cláusulas macroscópicas de exclusão da liberdade liberal. 
2. Althusser e a crítica do “humanismo” 
Voltemos ao debate suscitado por Bobbio em 1954. Há uma intervenção sensivelmente diferente daquela de Della Volpe. A polêmica com o filósofo de Turim desenvolve-se agora assim: “Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais aqueles princípios liberais sobre os quais se diz fundado o Estado inglês do século XIX, modelo, creio, de regime liberal perfeito para aqueles que raciocinam como Bobbio?”. A verdade é que a “doutrina liberal […] está fundada numa discriminação bárbara entre as criaturas humanas”, que se alastra não só nas colônias, mas na própria metrópole, como demonstra o caso dos negros estadunidenses, “na maioria privados dos direitos elementares, discriminados e perseguidos” [12] . Nessa tomada de posição não há nenhuma degradação da “liberdade formal” à libertas minor, mas, ao mesmo tempo, não se perde de vista o fato de sua fruição ter sido historicamente negada às massas incalculáveis de homens pelo próprio Ocidente liberal. Essa intervenção deve-se a um autor hoje quase completamente esquecido, mas que responde pelo nome de Palmiro Togliatti, na época secretário-geral do PCI. Estamos diante de um expoente do “marxismo ocidental”? No entanto, deve-se notar que não se trata de um filósofo profissional, e sim de um político profissional, além disso ligado organicamente – pelo menos assim julgam seus críticos – ao orientalizante “socialismo real”. 
Concentremo-nos, contudo, na expressão utilizada por Togliatti: “discriminação bárbara entre as criaturas humanas”. Trata-se de uma condenação inspirada por aquele “humanismo integral” em que, segundo Gramsci, consiste o comunismo; por outro lado, vimos Bloch levantar, em 1961, a bandeira em defesa da “dignidade humana”. Naqueles mesmos anos, o humanismo exerce um papel fundamental em Sartre, que faz uma denúncia apaixonada do colonialismo evidenciando justamente teorias e práticas de desumanização por ele desenvolvidas. Estamos diante de expressões diferentes daquele “humanismo” que mais tarde se torna o bicho-de-sete-cabeças de Louis Althusser. Como é sabido, o jovem Marx denuncia a sociedade existente como negação do “humanismo positivo” ( positiver Humanismus ) e do “humanismo realizado” ( vollendeter Humanismus ) (MEW, Erg. Bd., I 583 e 536), do “humanismo real” ( realer Humanismus ) (MEW, II, 7), e formula seu programa revolucionário, enunciando o “imperativo categórico de derrubar todas as relações em que o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado, desprezado” (MEW, I, 385). Para Althusser, essas formulações são ingenuidades ideológicas, felizmente superadas pelo Marx maduro, a partir aproximadamente de 1845, quando teria ocorrido a “ruptura epistemológica” e a retórica humanística, que esqueceu a luta de classes, que teria sido suplantada pelo materialismo histórico, ou melhor, pela ciência da história. 
Na realidade, essa suposta retórica continua ecoando mais forte do que nunca no Manifesto do Partido Comunista, que convida a derrubar um sistema, o capitalista, que desconhece a dignidade humana da imensa maioria da população: no banco dos réus são colocadas as relações econômicas e sociais que implicam a “transformação em máquina” dos proletários (MEW, IV, 477), rebaixados desde a infância a “meros artigos de comércio e instrumentos de trabalho” (MEW, IV, 478), a “simples acessório da máquina” (MEW, IV, 468), à apêndice “dependente e impessoal” do capital “independente e pessoal” (MEW, IV, 476). 
Para Althusser, o Manifesto do Partido Comunista faz parte das “obras de maturação teórica” e não das “obras da maturidade” plenamente alcançada [13] . Vejamos, então, em que termos O Capital coloca no banco dos réus o sistema capitalista: a busca pelo lucro implica um “desperdício” de vida humana , digno de Timur-Tamerlão” (MEW, XXIII, 279, nota 208). É um sistema que não hesita em sacrificar vidas humanas em formação e incapazes de se defender: eis o “grande rapto herodiano das crianças realizado pelo capital no início do sistema fabril nas casas dos pobres e dos orfanatos, através do qual ele incorporou um material humano totalmente desprovido de vontade” (MEW, XXIII, 425, nota 144). São terríveis os custos humanos do capitalismo.
Basta pensar na formação da indústria têxtil na Inglaterra: procura-se a matéria-prima necessária cercando e destinando às pastagens as terras comuns que antes asseguravam a subsistência de grande parte da população que, expropriada, é condenada à fome e ao desespero: sim – sintetiza O Capital citando Thomas More – “as ovelhas devoram os homens ” (MEW, XXIII, 747, nota 193). A sociedade burguesa ama celebrar a si mesma como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem “, na realidade no seu âmbito o “trabalho humano”, aliás, “o homem enquanto tal […] desenvolve ao contrário um papel miserável” (MEW, XXIII, 189 e 59). Se passarmos apenas da esfera da circulação à da produção, notamos que, bem longe de ser reconhecido em sua dignidade de homem, o trabalhador assalariado “leva ao mercado a sua própria pele e não tem outra coisa a esperar a não ser o… curtume” (MEW, XXIII, 191). 
A crítica dos processos de desumanização ínsitos no capitalismo ressoa com força ainda maior quando Marx fala do destino reservado aos povos coloniais: com “a aurora da era da produção capitalista”, a África se transforma em uma “reserva de caça para os mercadores de pele negra” (MEW, XXIII, 779). Passemos agora para a Ásia e para o império colonial holandês: aí funciona “o sistema de roubo de homens nas Célebes para obter escravos para Java”, com “ladrões de homens” ( Menschenstehler ) propositalmente “adestrados para tal finalidade” (MEW, XXIII, 780). Ainda na metade do século XIX vemos nos EUA o escravo negro assumindo completamente a forma de simples “propriedade” tanto quanto as outras, enquanto a lei sobre a restituição dos escravos fugitivos determina a transformação dos próprios cidadãos do Norte em “caçadores de escravos” (MEW, XV, 333). Nesse meio-tempo, alguns Estados no Sul especializam-se na “criação de negros” ( Negerzucht ) (MEW, XXIII, 467), ou seja, no “breeding of slaves” (MEW, XXX, 290: carta a Engels de 29 de outubro de 1862). Renunciando aos tradicionais “artigos de exportação”, esses Estados “criam escravos” como mercadorias de “exportação” (MEW, XV, 336).
Por outro lado, quando estoura a guerra, eis que proprietários de escravos abandonam áreas consideradas pouco seguras para transferir-se para o Sul, arrastando consigo seu excelente ” black chattel” (MEW,XXX, 290: carta a Engels de 29 de outubro de 1862). Como se vê, também nos escritos da maturidade, recorre em Marx a motivação crítica que censura a sociedade burguesa por ela reduzir a grande maioria da humanidade à “máquinas”, a “instrumentos de trabalho”, à “mercadoria” que pode ser tranquilamente “esbanjada”, a “produtos de comércio” e a “artigos de exportação”, a bens móveis dos quais o dono pode dispor como uma “bagagem”, a animais de criação, ou seja, à pele objeto de caça ou a ser destinada ao curtume. 
A denúncia do anti-humanismo do sistema capitalista não desapareceu de modo algum e nem pode desaparecer, porque está no centro do pensamento de Marx: a comparação, tão importante para ele, entre escravidão moderna e escravidão antiga, escravidão assalariada e escravidão colonial, significa a permanência, no âmbito do capitalismo, daquele processo de reificação que se manifesta em toda a sua crueza em relação ao escravo propriamente dito, completamente reduzido à mercadoria ou à condição de animal. O rigor científico e a indignação moral resultam tão entrelaçados entre si, e é somente este entrelaçamento que pode explicar o apelo à revolução. Por mais fiel e impiedosa que possa ser, a descrição da sociedade existente não pode por si só estimular a ação para a sua derrubada, se não houver a mediação da condenação moral; e essa condenação moral brota em Marx da constatação dos processos de desumanização ínsitos ao sistema capitalista; a partir daí, a realização de uma nova ordem é percebida como um “imperativo categórico”, e isso tanto nos escritos de juventude quanto nos escritos de maturidade. Se as Teses contra Feuerbach se concluem com a condenação dos filósofos que se revelam incapazes de “transformar” um mundo no qual o homem é esmagado e humilhado, O Capital é uma “Crítica da Economia Política” – como reza seu subtítulo – também no plano moral: o “economista político” é criticado não apenas por seus erros teóricos, mas também por sua “imperturbabilidade estóica”, isto é, por sua incapacidade de indignação moral diante das tragédias provocadas pela sociedade burguesa (MEW, XXIII, 756). A continuidade na evolução de Marx é evidente, e aquilo que Althusser descreve como ruptura epistemológica nada mais é que a passagem para um discurso no âmbito do qual a condenação moral do anti-humanismo da sociedade burguesa é expressa de maneira mais sintética e mais elíptica. 
3. Da história à “ciência” ou do materialismo ao idealismo, da história mundial ao eurocentrismo 
Podemos perfeitamente compreender as razões da posição adotada pelo filósofo francês: são os anos em que a bandeira do “humanismo” é agitada para abafar a luta contra o imperialismo; iniciou-se o processo que mais tarde levará à capitulação de Gorbachev. Analisando melhor, a crítica filosófica do humanismo, enquanto inclinada a ocultar o conflito social e sua aspereza, é, ao mesmo tempo, a polêmica contra as “concepções tingidas de reformismo e de oportunismo ou, mais simplesmente, revisionistas”, que vinham se difundindo naquela época [14] . Infelizmente, essa polêmica é conduzida a partir de posições erradas. Em primeiro lugar, deve-se considerar que não só o apelo à humanidade comum (e à moral), mas também o apelo à ciência pode levar ao esquecimento da luta de classes.
E, todavia, o filósofo francês toma posição justamente contra o slogan “ciência burguesa, ciência proletária” e atribui como mérito de Stalin o fato de este ter-se oposto à “loucura” que exigia “a todo custo fazer da língua uma superestrutura” ideológica. Graças a essas “simples páginas” – conclui Althusser – “vislumbramos que o uso do critério de classe não era ilimitado e que nos faziam tratar como uma ideologia qualquer ciência, cujo título incluía as próprias obras de Marx” [15] . Pode ser considerado ilimitado o uso do critério de classe pela moral? Podem ser realmente postas no mesmo plano posições que reivindicam a unidade do gênero humano e posições que, na prática, e às vezes de maneira explicita até na teoria, promovem a desumanização das grandes massas de homens, rebaixados a Untermenschen e destinados somente a serem escravizados ou aniquilados? 
Polemizando contra a leitura humanista do marxismo, Althusser não se cansa de repetir que Marx não parte do “homem” ou do “indivíduo” mas da estrutura histórica das relações sociais. Contudo, é estranho que o conceito de “homem” ou de “individuo” seja considerado óbvio. Convém, então, remeter a Nietzsche que, após ter condenado a Comuna de Paris desencadeada por uma “classe bárbara de escravos” em nome da “dignidade do homem” e da “dignidade do trabalho” humano [16] , condena a “agitação individualista” [17] , de um movimento, o socialismo, cuja erro é querer transformar em indivíduos e em pessoas aqueles que por natureza “não são nenhuma pessoa”, mas simples “portadores, instrumentos de transmissão” [18] . Ou seja, longe de ser um dado óbvio, o conceito de indivíduo e de homem enquanto tal é o resultado de lutas gigantescas pelo reconhecimento, conduzidas agitando justamente a bandeira do humanismo tão desprezado por Althusser. Isso já vale para os trabalhadores assalariados da metrópole (muitas vezes desumanizados pela tradição liberal e assimilados a instrumentos de trabalho, a máquinas bípedes, a bestas de carga), mas vale de maneira toda especial para os povos coloniais.
Não faz sentido contrapor a estrutura histórica das relações sociais ao conceito de homem ou de indivíduo como tal, pelo fato de que esse mesmo conceito pressupõe radicais transformações políticas e sociais. Quando afirma que o humanismo em última análise é burguês, Althusser argumenta de maneira análoga a Bloch: tanto num caso como noutro a sociedade burguesa é recriminada por se ater apenas à “igualdade formal” e, desse modo, são removidas também as desigualdades formais e os profundos processos conexos que caracterizam o capitalismo. 
É verdade, o filósofo francês reconhece que pode existir também um “humanismo revolucionário” originado pela Revolução de Outubro [19] , mas nesse ponto é muito hesitante; e assim impede a si mesmo a compreensão das lutas gigantescas por reconhecimento conduzidas pelos “escravos das colônias” (para usar uma linguagem tão cara a Lênin). Esse resultado é ainda mais inevitável pelo fato de a teoria de Marx ser, em Althusser, só um capítulo da história do pensamento científico: “Antes de Marx só dois grandes continentes haviam sido abertos ao conhecimento científico, após rupturas epistemológicas sucessivas: o continente matemático graças aos gregos […] e o continente físico, graças a Galileo e seus sucessores” [20] . É um enfoque que determina duas consequências muito relevantes: 1) Marx insistiu várias vezes sobre o fato de que a sua teoria é a expressão teórica de um movimento real; agora, porém, é o movimento real que é considerado o produto, para dizer com Althusser, de uma “ruptura epistemológica”, ou, para dizer com Della Volpe, de um método científico que aprende a lição de Galileo e, antes ainda, de Aristóteles, crítico de Platão.
Assistimos assim a uma distorção idealista do materialismo histórico, visto como o resultado da genialidade de um único indivíduo que se aventurou na descoberta de um novo continente! Após ter censurado repetidamente o humanismo por ocultar a luta de classes, agora é o próprio Althusser que faz desaparecer a luta de classes atrás da elaboração do materialismo histórico. 2) A distorção idealista do marxismo é, ao mesmo tempo, sua reinterpretação em termos eurocêntricos. Para Engels, Lênin e Gramsci, o marxismo tem atrás de si a Revolução Francesa, e esta acabava remetendo, pelo menos potencialmente, às lutas gigantescas suscitadas por ela em Santo Domingo e que culminaram com a abolição da escravidão nas colônias. Agora, ao contrário, a elaboração do materialismo histórico é o capítulo de uma história que se desenvolve exclusivamente no Ocidente. 
4. O “marxismo ocidental” lê o “marxismo oriental”: um equívoco coletivo 
Althusser segue com profunda participação as lutas realizadas pelos povos coloniais, e olha com simpatia para a China que aspira pôr-se à frente do movimento anti-imperialista; contudo, do ponto de vista teórico, ele não parece capaz de apreender plenamente o significado dessas lutas. Estamos diante de um fenômeno de caráter geral. No decorrer dos anos de 1960 e 1970, um equívoco coletivo caracteriza a esquerda de orientação marxista na Europa e nos Estados Unidos: as grandes manifestações em favor do Vietnã se entrelaçam tranquilamente com a homenagem tributada a autores propensos a considerar definitivamente superados os movimentos de libertação nacional.
Em 1966, Adorno, em A Dialética Negativa, liquida a tese hegeliana do “espírito do povo” ( Volksgeist ), ou seja, o caráter essencial da dimensão e da questão nacional, como “reacionária” e regressiva “em relação ao universal kantiano de seu período, a humanidade agora visível”, como eivada de “nacionalismo” e “provinciana na época de conflitos mundiais e do potencial de uma organização mundial do mundo”. Pior ainda, tratar-se-ia do culto tributado a um “fetiche”, a um “sujeito coletivo” (a nação), no âmbito do qual “os sujeitos individuais desaparecem sem deixar vestígios” [21] . É uma tomada de posição que a posteriori deslegitimava a guerra conduzida pela Frente de Libertação Nacional da Argélia, um povo e um país sem dúvida mais provinciano, mais atrasado e menos cosmopolita do que a França, contra a qual se insurgiram. Em todo caso, Adorno colocava-se na impossibilidade de entender as grandes lutas que estavam acontecendo inclusive debaixo de seus olhos, a começar por aquela guiada pela Frente de Libertação Nacional do Vietnã. 
De resto, vejamos de que maneira o “marxismo oriental” argumenta sobre esse ponto. Três anos depois da publicação de Dialética Negativa, Ho Chi Minh morre. Em seu testamento, depois de ter convocado seus concidadãos à “luta patriótica” e ao compromisso “pela salvação da pátria”, no plano pessoal ele traça este balanço: “Por toda vida eu servi minha pátria de corpo e alma, servi a revolução, servi o povo” [22] . Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, o dirigente vietnamita recordara seu percurso intelectual e político afirmando que: “no começo fora o patriotismo e não o comunismo que me levou a acreditar em Lênin e na Terceira Internacional”. Em primeiro lugar, os apelos e os documentos que apoiavam e promoviam a luta de libertação dos povos coloniais, ressaltando seu direito de constituir-se como Estados nacionais independentes, provocaram grande emoção: “As teses de Lênin sobre a questão nacional e colonial despertavam em mim grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé, e me ajudavam a ver claramente os problemas. Tão grande era a minha alegria que até chorei” [23] . No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que ele dera na véspera da fundação da Republica Popular Chinesa, em 1949: “A nossa não será mais uma nação sujeita ao insulto e à humilhação. Já nos levantamos […] A época na qual o povo chinês era considerado selvagem agora acabou” [24] . 
Compreende-se perfeitamente a atitude dos dois grandes revolucionários. Atrás deles estava agindo a lição de Lênin, que assim caracterizara o imperialismo: trata-se de um sistema em cujo âmbito algumas pretensas “nações-modelo” atribuem a si mesmas “o privilégio exclusivo da formação do Estado”, negando-o aos povos das colônias [25] ; sim, “poucas nações eleitas” pretendem construir o próprio “bem-estar” e estabelecer a própria primazia na pilhagem e no domínio do resto da humanidade [26] . Ou seja, além da pilhagem econômica e da opressão política, o imperialismo é também caracterizado pela hierarquização das nações. Os povos explorados e oprimidos são, ao mesmo tempo, rotulados como incapazes de se autogovernar e de se constituir como Estado nacional; a luta para livrar-se desse estigma é uma grande luta pelo reconhecimento. 
Mas naquela época a homenagem a Ho Chi Minh, a Mao ou a Castro, não favorecia, de forma alguma, posições de distanciamento do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo ocidental. E nem mesmo Sartre era capaz de opor resistência ao niilismo nacional, apesar de seu grande compromisso na luta contra o colonialismo. Como esclarece um capítulo fundamental de Crítica da Razão Dialética (Livro I, cap. C), o filósofo francês faz derivar os vários conflitos humanos, em última análise, da “penúria” ( rareté ). O resultado dessa abordagem é avassalador. Na medida em que parece determinar uma luta pela vida e pela morte, a condição de penúria acaba, de alguma forma, justificando os responsáveis pela opressão.
Eles aparecem como os protagonistas de uma luta trágica pela sobrevivência que, no presente se impõe de maneira fatal e, no futuro, pode ser eliminada apenas por um extraordinário desenvolvimento das forças produtivas. No lado oposto, os oprimidos aparecem movidos apenas pelo desejo de escapar das intoleráveis condições de vida; mas, então, posto que a língua, a cultura, a identidade e a dignidade nacional não desempenham nenhuma função, não se compreende a participação na luta contra a opressão nacional por parte de camadas sociais que gozam de um padrão de vida confortável ou de uma comodidade mais ou menos relevante. Como se vê, a simpatia pelos “deserdados da terra” e a indignação pelos crimes do colonialismo e do imperialismo na Argélia ou no Vietnã, embora meritórias, não garantem por si só uma compreensão adequada da questão nacional. 
A razão profunda dessa atitude contraditória será esclarecida, de maneira exemplar, algumas décadas mais tarde por Hardt e Negri: “Da Índia à Argélia, de Cuba ao Vietnã, o Estado é a dádiva envenenada da libertação nacional”. É verdade, os palestinos podem contar com a nossa simpatia; mas, a partir do momento em que “forem institucionalizados”, não se pode mais estar do “lado deles”. O fato é que “no momento em que a nação começa a se formar e se torna um Estado soberano, suas funções progressistas desaparecem” [27] . Ou seja, pode-se ter simpatia pelos vietnamitas, pelos palestinos ou por outros povos somente enquanto eles forem oprimidos e humilhados; pode-se apoiar uma luta de libertação nacional apenas na medida em que ela continua sendo derrotada! A derrota ou a incapacidade de um movimento revolucionário são a premissa para que o rebelde possa autocelebrar-se e deleitar-se como rebelde que recusa em qualquer circunstância contaminar-se com o poder constituído! 
É óbvio que os líderes dos povos em luta pela própria emancipação argumentam de maneira totalmente diferente. Em setembro de 1949, às vésperas da conquista do poder pelos comunistas, Mao chama a atenção para o desejo de Washington de que a China “se reduza a viver com a farinha americana”, acabando assim por “tornar-se uma colônia americana” [28] ; a luta pelo desenvolvimento da produção se configurava então como uma continuação da luta pela independência nacional. 
Na verdade, já o Manifesto do Partido Comunista afirmara que o “proletário usará seu poder político” e o controle dos meios de produção, em primeiro lugar, “para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas” e, em particular, para desenvolver as “nov

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