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Sem Eira, nem Beira: de Economia e de Política por Meio da Formação Territorial

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Por IELA em 29 de dezembro de 2021

Sem Eira, nem Beira: de Economia e de Política por Meio da Formação Territorial

 

Ciclo da Borracha no Brasil – 1911

Uma tradição da análise da formação social do capitalismo no Brasil acabou por consagrar os “ciclos econômicos” como chave para a compreensão do nosso processo histórico-geográfico. Com isso, o espaço geográfico, em sua historicidade, e a história, em sua geograficidade, ficaram negligenciados e, com isso, perde-se a compreensão de dimensões fundamentais de nossa formação, como veremos a seguir. 
Ao privilegiar-se a análise dos “ciclos econômicos” [1]  afirma-se uma visão linear do tempo e, unilateralmente, valorizam-se os setores dominantes da sociedade cuja afirmação tem sido feita ao longo de nossa história por meio de relações voluntariamente ligadas, ainda que de modo subordinado, ao sistema mundo moderno-colonial. Desconsidere-se, aqui, o caráter psicológico que poderia emanar dessa expressão “relações voluntariamente ligadas, ainda que de modo subordinado, ao sistema mundo moderno-colonial”, haja vista o caráter colonial das relações de poder do sistema mundo que se constituía e já implicava uma subordinação dos espaços aqui, nas colônias, eram organizados para servir aos espaços metropolitanos e às classes que organizavam essa dominação, fosse aqui ou acolá, ao longo de toda a cadeia produtiva e (de poder). Enfim, eram nossos espaços organizados para servir a outrem. Afinal, tratava-se de conquista, de subordinação, de exploração. 
Com isso, uma dimensão do econômico ganhou primazia, a dimensão da exploração mercantil capitalista e não a da economia na sua dimensão de produção/reprodução metabólica da vida, de onde vem seu radical eco, o mesmo de ecologia. São enormes as implicações que daí derivam, sobretudo por subordinar as relações sociais de produção, que incluem as relações de poder, à representação da riqueza reduzida à sua dimensão quantitativa – dinheiro – que, no fundo, tende ao ilimitado e se impõe às dinâmicas metabólicas das relações de trabalho que, incluem, a natureza. 
A imensidão das terras conquistadas sob a forma de latifúndio contribuiu para a ilusão da abundância das terras onde “tudo que se planta dá”, o que nos ajuda a explicar a devastação das terras ocupadas e o curto ciclo de vida da mão de obra escrava. E nos legou, ainda, um estranho adjetivo pátrio – brasileiro – que deriva do modo como se designava o português rico que vivia de explorar o Brasil [2] . E não só, nos legou também um olhar para nossa formação territorial em que os espaços/as regiões só são devidamente consideradas quando um produto-rei de exportação está em seu auge. 
Desse modo, o espaço geográfico deixa de oferecer todo seu potencial analítico na medida em que ele é considerado fragmentariamente por meio de regiões (“ilhas”) que só são consideradas nos períodos históricos em que estão sendo valorizadas. O geógrafo pernambucano Manuel Correia de Andrade chegou a batizar a formação geográfica brasileira como um “arquipélago socioeconômico”. Findo o “ciclo” a região em que se desenvolvia determinado “ciclo” é abandonada pela análise passando-se a considerar o novo “ciclo” e sua nova localização.  Desse modo, as regiões só são consideradas nos momentos em que estão diante de um período de expansão, quase sempre vinculada à economia de exportação, deixando-se de lado toda a dinâmica social que naquele espaço “abandonado” pela análise continua sendo desenvolvida, quase sempre voltada para a auto reprodução daquela sociedade, sobretudo por parte dos setores subalternos. Nesse sentido, a região nordeste do Brasil é aquela que apresenta as mais ricas experiências de superação de crises, tantas foram as que teve que superar desde as primeiras décadas do século XVI. 
Os limites das análises que privilegiam os “ciclos econômicos” podem ainda ser verificadas quando se observa que a região brasileira que apresenta os melhores níveis de distribuição da riqueza (a começar pela distribuição da terra) é a região Sul, justamente aquela que em toda a história de nossa formação territorial jamais teve um “ciclo econômico” hegemônico à escala nacional. Nesse sentido, impõe-se a superação dessa análise e a necessidade de uma análise em que o espaço e o tempo sejam considerados simultaneamente. 
A formação territorial, nesse caso, se impõe, sobretudo para os casos de territórios de formação colonial, como o caso da América Latina e do Brasil, na medida em que a conquista da terra, sua dominação, se coloca como condição fundante e estruturante da formação social. Desde a fundação das primeiras feitorias no Brasil os portugueses se esmeraram no “ordenamento territorial” por meio das Ordenações do Reino [3] . As Capitanias Hereditárias enquanto dispositivo de Ordenamento Territorial diz bem do caráter militar da ocupação. O mesmo pode ser dito daqueles fidalgos (f´i´d´algos, ou seja, filhos d´alguém) que recebiam uma sesmaria que deveria ser devolvida ao Rei, caso não cumprisse seu objetivo de conquista territorial que, como sabemos, dependia do seu sucesso econômico, ou seja, dos lucros. Já ali, o interesse privado como condição do estado que o investe de poder. 
Sabemos como as análises de caráter economicista privilegiaram a dimensão de acumulação de capital que acompanhou os “homens de cabedal” que obtiveram do Rei as concessões de terra. Todavia, se os “homens de cabedal” buscavam acumular riquezas, o que engendrou o adjetivo pátrio brasileiro – aquele que vive de explorar o Brasil, segundo José Carlos Reis (Reis, 1999), e não podemos ignorar o fato de que esses mesmos homens estavam investidos de prerrogativas militares de conquista, o que empresta um caráter político autoritário às relações sociais e de poder no latifúndio sesmeiro. Não se pode olvidar, portanto, esse caráter autoritário de conquista da terra e do território que acompanha nossa formação histórico-geográfica e marcam nossas relações sociais e de poder e não só no campo. O Capitão do Mato é um desses personagens emblemáticos de nossa formação territorial.
Assim, no campo brasileiro, a luta pelo acesso digno à terra por parte dos “sem eira, nem beira” – os não fi’d’algos – é, a contrapelo, parte constituinte da nossa história, posto que o latifúndio vem se constituindo no esteio de nossa formação política e econômica, desde o período colonial até os dias de hoje. São aqueles que estão em posse real de uso da terra seja como posseiros, seja como quilombolas, seja como indígenas, enfim, seja como comunidades tradicionais (mulheres quebradeiras de coco babaçu, faxinalenses, comunidades de fundo e de fecho de pasto e muitas outras que fazem usos comum da terra) e que lutam pelo reconhecimento de sua condição, até muito recentemente, em grande parte ignorada pelo estado ou, mesmo quando reconhecida na letra da lei, encontram enormes dificuldades de serem reconhecidas de facto, como já se viu com a lei de terras de 1850 onde as terras devolutas que deveriam ser recuperadas pelo estado ficavam condicionadas ao reconhecimento das terras nas mãos de particulares, diga-se de passagem, do latifúndio. 
E, dadas as tradições históricas das relações de parceria público-privadas já conhecidas entre nós desde as sesmarias onde só os amigos do rei recebiam terras, o interesse público sempre esteve subordinado ao caráter privado, dos que tinham sobrenome e a terra sempre esteve no centro de nossas relações sociais e de poder produzindo “fi’d’algos”, de um, lado, e “sem eira, nem beira”, de outro lado. Isso nos valeu uma caraterização de uma sociedade onde o poder tem donos – Os Donos do Poder – uma das mais precisas caracterizações de nossa formação social que nos foi dada pelo jurista gaúcho Raimundo Faoro (Faoro, 200). Daí essa sensação de uma democracia a meias, de uma república onde a coisa pública (res publica) está subordinada ao poder privado, onde o latifúndio impera [4] .
O Código Civil de 1832, ao instituir a Guarda Nacional e a compra de patentes militares, reafirma o poder dos que já tinham poder, sobretudo por parte dos que concentravam terras que, assim, detêm não só o poder de facto, como também o poder de jure, poder de justiça e o poder de polícia, o que mais tarde ensejaria o fenômeno do coronelismo. O federalismo no Brasil, ao contrário da invocada inspiração na revolução de independência dos Estados Unidos da América do Norte, vem sendo um dos esteios das oligarquias latifundiárias. Nossas polícias estaduais carregam consigo, ainda hoje, esse componente oligárquico, pois estão muito mais preocupadas com os direitos patrimoniais do que com os direitos humanos, até mesmo com o mais elementar desses direitos que é o direito à vida. Talvez aqui resida a diferença essencial entre liberalismo estadunidense e o liberalismo no Brasil. Lá, nos United States, o Homestead Act, de 1862, permitia o acesso à terra, a preços simbólicos, de uma área de aproximadamente 60 hectares a quem se estabelecesse e cultivasse a terra e, com isso, se proporcionou a democratização do acesso à terra [5] . Isso deu ensejo a um liberalismo mais progressista que vige entre setores mais à esquerda do Partido Democrata dos EEUU. No Brasil, a Lei de Terras, de 1850, condicionou o acesso à terra a quem pudesse pagar por ela e, num país ainda escravocrata, essa lei criada num período em que era grande a pressão para a abolição da escravatura serviu para antecipar que, a terra não sendo de livre acesso, garantiria a sujeição dos que fossem libertos que, assim, continuariam sem-terra e sem casa que é de onde vem a expressão “sem eira, nem beira”. Deste modo, passamos do cativeiro da terra ao cativeiro dos homens (Martins, 2013). 
Enfim, nessas plagas da formação territorial brasileira um modo de produção sui generis se estabeleceu, o escravismo colonial, que deu sustentação a um capitalismo em formação, conforme Jacob Gorender (Gorender, 1978). E como nos informa Aníbal Quijano, até a Revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) Industrial, já na segunda metade do século XVII, a Europa não produzia nada de relevante para o mercado mundial, enquanto no Brasil já haviam se estabelecido, desde o século XVI, grandes empresas que produziam com base no escravismo colonial mercadorias para o mercado mundial. E, sublinhe-se, não simplesmente exportando matérias primas, mas sim um produto manufaturado nos engenhos, como o açúcar.
Assim, desde os primeiros momentos da acumulação capitalista aqui no Brasil, se combinou latifúndio, trabalho escravo e tecnologia de ponta, no caso com os engenhos. Fórmula recém recuperada com pompa e circunstância por um modo agrária/agrícola que se autoproclama com estrangeirismo como agribusiness, agora com uma agricultura sem agricultores com seus latifúndios monocultores com sofisticadas tecnologias de adubos, sementes e maquinários vorazes em consumo de terra, energia e água. 
Permita-me o leitor uma pequena história que nos proporciona uma boa síntese de nossa formação territorial, que é o que nos ocupa nesse pequeno artigo. Vivíamos o ano de 2004 e eu retornava de um trabalho de campo no vale do Araguaia, no município de Luciara, Mato Grosso, e embarcara num pequeno avião de 8 lugares quando me deparei com um empresário/fazendeiro com quem troquei ideias. Minha surpresa maior foi quando ele me disse que estava voltando do Tocantins, onde havia vendido 2000 cabeças de gado para pagar o prejuízo que tivera naquele ano com a soja nas suas fazendas em Goiás. E, disse mais, naquele ano ele só tivera lucro com suas fazendas de cana de açúcar, em Ribeirão Preto, em São Paulo. Enfim, não me encontrava somente diante de um fazendeiro/empresário, mas sim de uma persona que bem sintetizava a formação territorial brasileira na perspectiva de nossas classes dominantes. Um mesmo proprietário dono de terra em três regiões brasileiras que fazia uso intensivo da terra com cana de açúcar, em São Paulo, com soja, em Goiás, e uso extensivo e desmatamento onde criava gado na pré-Amazônia, no Tocantins. Pode-se inferir dessa persona os grandes incentivos estatais, seja através da EMBRAPA, seja através dos incentivos fiscais para se estabelecer na Amazônia entre outros.
E, diga-se de passagem, que esse modo de produção agrário/agrícola, tão bem representado por essa persona, ganhara protagonismo desde os anos 1970 quando se dá o grande fenômeno agrícola de todo o século XX, a incorporação de 200 milhões de hectares de terras dos cerrados brasileiros, segundo os grandes negociantes do agro mundial. E, para isso, se autodenominou Revolução Verde para se contrapor à Revolução Vermelha que, para os setores camponeses de todo mundo, tivera seu momento áureo com a Revolução Comunista chinesa, de 1949, e a Revolução Cubana, de 1959.
E, no Brasil, a revolução agrícola, com base na Revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) Verde, se dera com um regime político ditatorial que se impusera em 1964 contra um dos momentos mais ricos do ponto de vista político para as camadas populares no Brasil que Josué de Castro chamou de “a segunda descoberta do Brasil” num livro sob o título Sete Palmos de Terra e um Caixão (Castro, 1967). Nesse livro, o doublé de médico e geógrafo, se esforça, com todo seu brilhantismo intelectual, para demonstrar que não se tratava de “infiltração comunista”, como à época se acusava as Ligas Camponesas que, segundo ele, era justamente o povo brasileiro descobrindo o Brasil por si mesmo. Ou seja, ali emergia aquilo que o mesmo Jacob Gorender chamara de modo de produção de pequenos cultivadores (Gorender, 1978) que convivera sob o escravismo colonial em nossa formação territorial. 
Enfim, a brecha camponesa emergira politicamente ali, nos anos 1950/1960, enquanto Ligas Camponesas, e é contra ela que uma agricultura sem agricultores, através de uma Revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) Verde vai se confrontar e se afirmar enquanto agronegócio. Os estados que hoje detêm a maior produção de milho não têm festas de São João onde se comia muita canjica, mungunzá, quindins e outros quitutes de milho, como ainda se vê no Nordeste brasileiro em regiões ainda não atingidas pelo agronegócio (Porto-Gonçalves, 2008). A concentração de riqueza nos grandes latifúndios empresariais monocultores com sua agricultura sem agricultores não tem com quem comemorar e compartilhar a riqueza produzida. Por isso falam de agro+negócio e não de agri+cultura!
Não estranhemos, pois, que tenhamos hoje tantos sem-terra e tantos sem teto em nossa paisagem social, designações contemporâneas que atualizam os “sem eira, nem beira” que fizeram “a segunda descoberta do Brasil” (Josué de Castro). Quem sabe essas reflexões nos ajudem a atar algumas pontas ainda soltas de nossa formação territorial e nos ajudem a identificar os nós que nos impedem de ser um país soberano, livre, justo, igualitário e com uma democracia substantiva que vá além da limitada democracia liberal. 
Notas
1.  Para evitar equívocos desnecessários quanto ao significado do que seja economia, com o que muitos procuram desqualificar as análises de inspiração marxista, como a que aqui abraçamos, invoco a figura de Aristóteles em quem, diga-se de passagem, Marx se inspira. É do estagirita a distinção entre economia e crematística, sendo que a primeira, a economia, diz respeito às condições materiais de produção/reprodução da vida e a segunda, a crematística, aquela ciência que estuda a relações dos preços entre as coisas. Se quisermos, podemos encontrar aqui uma das origens da distinção entre valor de uso e de valor de troca desenvolvida por Marx, mas já presentes em Aristóteles, como bem sinalizara Cornelius Castoriadis (Castoriadis, 1987). Enfim, a economia diz respeito a tudo aquilo que envolve a produção/reprodução da vida, suas condições materiais, sem as quais nenhuma sociedade humana, conformada por seres biológicos, diga-se de passagem, existe. Sempre, é claro, sob determinadas relações sociais e de poder culturalmente significadas.  
2.  É interessante que brasileiro em inglês – brasilian; em francês, brésilien, ou, mais diretamente em italiano, brasiliano, indicariam que a melhor tradução em português seria brasiliano. Vários dicionários nos oferecem essa opção como sinônimo de brasileiro. Considere-se que eiro é uma derivação rara entre os adjetivos pátrios. Talvez essa opção predominante de brasileiro, sendo uma escolha, revele, ainda que inconscientemente, o caráter subjacente a essa escolha que, no período colonial, designava o português que voltava rico por explorar o Brasil, assim como madeireiro vive de explorar a madeira e o mineiro de explorar as minas. É bem possível que, na origem, a expressão tenha se referido àquele que vivia de explorar o pau-brasil e que, depois, se estendeu o nome à colônia e ao país Brasil. Não somos os únicos que somos confundidos com os verdadeiros objetivos da colonização que era sua exploração. Vide Argentina, do latim argentum, prata, dinheiro. É preciso prestar mais atenção às palavras. Elas têm história e histórias que naturalizam práticas sociais e políticas.
3.  Não olvidemos que o Reino é o território do Rei e outra coisa não era o Ordenamento Territorial que as Ordenações Filipinas, as Ordenações Manuelinas, as Ordenações Afonsinas.
4.  São muitas as continuidades nas descontinuidades de nossa formação territorial onde a origem colonial do estado, sob uma Monarquia, lhes tirava o caráter público e, através dos amigos do rei, dos fi’d’algos, dava sobrenome às classes dominantes que se conformavam.
5.  Estima-se que desde a sua vigência o Homestead Act teria proporcionado acesso à terra a aproximadamente 4 milhões de famílias.
Bibliografia
CASTORIADIS, Cornelius. 1987. As Encruzilhadas do Labirinto I. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro.
CASTRO, Antônio de Barros. 1969. Sete Ensaios sobre a Economia Brasileira. Ed. Forense, Rio de Janeiro.
CASTRO, Josué. 1967. Sete Palmos de Terra e um Caixão. Ed. Brasiliense, São Paulo.
FAORO, Raimundo. 2000. Os Donos e Poder. Ed. Globo, Rio de Janeiro.
GORENDER, Jacob. 1978. O Escravismo Colonial. Ed. Ática, São Paulo.
MARTINS, José de Souza. 2013. O Cativeiro da terra. Ed. Contexto, São Paulo.
MENDONÇA, Sonia e MOTTA, Marcia. 1998. Nação e Poder: as dimensões da História. Eduff, Niterói.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. 2008. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
REIS, José Carlos. 1999. As Identidades do Brasil: De Varnhagen a FHC. Ed. FGV, Rio de Janeiro.
 

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