Início|Brasil|Um imprescindível entre nós

Um imprescindível entre nós

-

Por IELA em 19 de janeiro de 2022

Um imprescindível entre nós

Foto: Rubens Lopes

 
Eu que nasci no aparente, poderia suportar o real?Fernando Pessoa
A reivindicação do homem imprescindível pertence ao dramaturgo, poeta e comunista alemão, Bertold Brecht. É signo poético de uma época (1934) em que a alegria fora considerada expressão de inocência pois “aquele que ri apenas não recebeu ainda a terrível notícia”. A despeito das adversidades, a militância revolucionária, comunista, no século passado, era tributária e portadora de um apelo heroico que, temo, pode ser atualmente percebido como ultrapassado e, não raras vezes, contraproducente. Portanto, devemos admitir sem temor algum, que a militância heroica não somente é rara entre nós, mas pode ser considerada, inclusive, inoportuna. É fácil perceber que no Brasil do século XXI, o heroísmo na política foi derrotado pelo pragmatismo rasteiro que informa a conduta da esquerda liberal dominante, como se a rendição política e ideológica fosse o único meio possível do fazer político. O heroísmo parece, em consequência – tal como advertiu um insuspeito Max Weber – uma propriedade nada humana, restrita apenas aos deuses e aos grandes estadistas, vetadas, portanto, ao homem comum. Nesse contexto, restaria a todos nós, simples mortais, apenas a racional e enfadonha tarefa de administrar nossas vidas orientada pela política de redução de danos e a aceitação conformada de pequenas vitórias nos marcos da ordem burguesa. 
A ideologia dominante – sempre a ideologia da classe dominante – rechaça o heroísmo na exata medida do individualismo típico do político burguês ou pequeno-burguês, um sujeito incapaz de duas moléculas de sacrifício desinteressado; mesmo quando simula sacrifício pessoal, o político burguês está orientado pelo instinto de sobrevivência e reprodução que, via de regra, até sugere tenacidade, mas, heroísmo não. Astúcia talvez, heroísmo jamais! Por isso considero que o “homem imprescindível” é uma espécie de herói, a despeito da genial dialética de Brecht contida na certeira advertência sobre a necessidade e a infelicidade dos heróis para um país.
Danilo Carneiro era um daqueles homens imprescindíveis de que nos falou Bertold Brecht. Não exagero, nem vacilo em dizê-lo. Homem de gesto delicado, fala mansa, sempre gentil, com voz firme, carregada de convicção. Nenhuma arrogância ou vaidade. Cultivou a modéstia embora nunca tenha aliviado para os chamados religiosos e cínicos à virtude… Na verdade, era mesmo implacável diante dos apelos moralistas que lamentavelmente marcam nossa época e empobrecem a política nacional. Portanto, diante de proclamação de extração moralista, lá tínhamos o alerta de Danilo sobre a práxis, esse critério que desmonta tanto o cínico quanto o oportunista. 
Eu o conheci nos anos de 1980 em Floripa quando os eletricitários representavam uma força do sindicalismo combativo em oposição aos pelegos então dominantes nos anos finais da ditadura. Ele figurava pra mim – e também para minha geração – como espécie de reserva de lucidez, cujo sotaque revelava mais um dos cariocas que aportaram em Floripa na esteira da expansão do setor elétrico brasileiro via Eletrosul, a estatal que funcionava ao lado da UFSC. Danilo, que após a prisão amargou a liberdade sob as duríssimas condições da ditadura – portanto, sem emprego e vivendo exclusivamente do apoio da família e de alguns amigos – não podia perder a oportunidade de aumento salarial vinculado à transferência para Floripa na esperança de que ficaria em terras catarinenses apenas seis meses… Nós, estudantes, já vinculados à sorte da esquerda, sabíamos que Danilo era um comunista experiente, uma voz respeitada pelos sindicalistas mais conhecidos, portador de uma autoridade cuja origem ainda desconhecíamos. Aos poucos tomamos conhecimento de sua larga experiência e de seu profundo compromisso com o socialismo e a revolução, razão pela qual a antiga e difusa autoridade ganhou expressão mais acabada e próxima. A militância estudantil sempre o acompanhou e, mesmo à distância, seguia seus passos. A despeito do apreço, perdi a pista do Danilo. A vida é um vaivém tremendo, cheio de surpresas carregadas de lições. E não basta passar pela experiência se delas não tiramos o suco.  
Após muitos anos fora do país, voltei a Floripa. Aos poucos, Danilo reapareceu, com a mesma estatura dos tempos vividos, embora com a marca da crítica mais acentuada à política partidária e sindical, avesso às ilusões de uma época que seria rica de lutas e pobre em conquistas. O timbre de voz, a firmeza ideológica, a crítica como arma e inclusive, o mesmo corpo de quem parecia não envelhecer, atestava a permanência da antiga vitalidade, tal qual o vi pela primeira vez. Nem um quilo a mais, nem um fio de cabelo branco a menos. Ali estava uma vez mais Danilo, intacto feito rocha. 
Após os permanentes combates contra FHC, sofremos os anos regressivos do petismo. A universidade se transformou num refúgio incômodo, pois, a crítica – nossa antiga e necessária companheira – era agora muito mal recebida tanto nos sindicatos quanto nos partidos encantados com postos no governo. O ambiente universitário, cada vez mais ensimesmado, foi também se tornando hostil ao pensamento crítico sob o invólucro de um academicismo miserável e alienado, que, a despeito do isolamento social, teima em não desparecer. Portanto, tanto dentro da universidade quanto “lá fora” o mar não estava pra peixe… Nesse contexto, a crítica e as incessantes advertências de Danilo, vaticinavam a decadência político-ideológica da esquerda liberal que apenas percebíamos e, de certa forma, no fundo, ainda resistíamos em reconhecer e também em aceitar. Na verdade, as ilusões liberais ganharam notoriedade naqueles anos repletos de inocência e oportunismo, razão pela qual, tanto na boca do sindicalista, do deputado, quanto do presidente da república… o país “avançava”. Também naquela época, lá estava Danilo, uma vez mais navegando contra a corrente. Mantinha acesa a chama da crítica e idêntica lucidez no trato de seu compromisso com o que chamou a “emancipação humana” impossível nos marcos do capitalismo e menos ainda num país dependente.
No esforço de criação do IELA, reencontrei Danilo como presença constante nos primeiros eventos organizados pelo Instituto e também nas primeiras Jornadas Bolivarianas. Num debate qualquer, diante da expectativa duvidosa de público, a única certeza era que teríamos Danilo no  auditório, disposto a indagar o conferencista com seu arsenal infinito de questões. Na verdade, ele funcionou para muitos de nós com um espelho, pois a solidão e a angústia do militante derrotado pela ditadura e pelo regime liberal burguês não cabe em poucas palavras. O comentário ou a “pergunta” exigiam, portanto, tempo… muito tempo… Nas primeiras intervenções se apresentava como “Danilo Carneiro, Tortura nunca mais, Rio de Janeiro”. Depois, completamente integrado ao IELA não recordo ele repetir muitas vezes àquela auto-apresentação… Ao condutor da mesa de debates cabia certamente solicitar brevidade na intervenção diante da qual, com paciência exemplar, ele admitia de imediato. Era um homem disciplinado; em alguns momentos, frente a temas mais candentes, relativos à vida e morte nos rincões da América Latina, também verteu lágrimas produzidas por aquelas dores que não curam jamais, especialmente agudas porque derivadas da tortura que, certamente, o acompanharam até seu último sopro de vida.
Depois, de maneira natural – não recordo o momento exato – ele literalmente acampou no IELA. Eu diria que entrou para o IELA, embora sem vínculo formal algum com a universidade, orientado exclusivamente pelo infinito amor à leitura e ao saber. Tal qual um operário, batia cartão no IELA. A presença constante era apenas percebida em função dos raros dias nos quais se ausentava. Danilo não veio… Danilo ainda não chegou… Com frequência, após aula noturna, quando voltava à minha sala para deixar o material, enxergava as luzes do IELA acesas. Era uma sorte de senha, um clarão que anunciava conversa longa, pois havia a certeza que lá estava Danilo estudando. A conversa, então, era tão inevitável quanto interminável. “É complicado, Nildo, é complicado…”, assim começava invariavelmente uma resposta naquelas conversas noturnas que somente terminariam muito mais tarde quando eu oferecia a carona como único meio para prolongar ou encerrar a conversa, pois ele morava coladinho à UFSC. Às portas do condomínio, claro, eu desligava o motor quando o assunto exigia ou simplesmente recordava que amanhã seria outro dia no Instituto… 
A discussão era permanente e, de fato, interminável. Em consequência, não raro, ao abrir a porta de minha sala para a aula matutina na UFSC, lá estava um texto tirado da internet e jogado por baixo da porta sobre algum tema relevante ou polêmica pendente – a crise econômica global, o problema energético, o conflito na Ucrânia, os Estados Unidos, etc – com algum alerta ou recomendação adicional escrito à mão. Pra Danilo, ninguém tinha a última palavra pois a realidade era sempre mais rica e vital. “É complicado Nildo, é complicado…”. Por isso, ele estava sempre revisando pontos de vista, agregando novos dados, exigindo respostas mais precisas e também sorrindo diante das “novidades” que banalizam nossa vida política e intelectual. Quando tomava conhecimento tardio de alguma atividade ou evento na UFSC que julgava de alguma importância política ou teórica, logo consultava Danilo que era presença certa: “e aí Danilo, o que achou?”. A resposta era sempre firme, crítica, precisa e, não raro, ácida. 
Um belo dia descobri que Danilo era – para minha mais absoluta surpresa! – o “seu Danilo”. A despeito da disposição para a conversa sem cerimônia ou credenciais, alguns estudantes o tinham em grande consideração e não omitiam o trato reverencial mesmo após longos períodos de convivência. A paciência e rigor na explicação aos estudantes de graduação era a mesma destinada aos intelectuais de outros países que nos visitavam todos os anos. O “seu Danilo” ministrava uma espécie de curso livre aos estudantes mais antenados e interessados na política com exigências teóricas e sobretudo, históricas. As longas conversas ocorriam com tamanha frequência que já faziam parte da rotina do Instituto. Os anos se passaram sem que eu percebesse que Danilo já era um octogenário pois há anos mantinha a mesma forma. No entanto o tempo é implacável e ainda a vida simples, austera mesmo, que orientou sua vestimenta e alimentação, não impediu que lentamente, suas energias não se revelassem eternas como ingenuamente muitas vezes pensei. Os sinais da vida se exaurindo apareciam sutilmente na hora da comida ou nos frequentes reclamos sobre restrições em função das limitações físicas, várias delas derivadas das torturas nos porões da ditadura.
É preciso dizer que Danilo nunca lamentou sua sorte. As atrocidades que sofreu como preso político quando capturado no Araguaia e também as consequências físicas e mentais que sempre o acompanharam quando a ditadura bateu em retirada, jamais foram motivo para reivindicar trato especial e menos ainda para se colocar como vítima inocente de uma trama na qual era, de fato, plenamente consciente. Essa conduta constitui um contraste notável com as gerações atuais que se julgam portadoras de direitos por determinação natural e não raro se consideram vítimas de uma trama que simulam não dominar! Creio ouvir novamente seu alerta inicial, “É complicado Nildo, é complicado…”. Portanto, sempre que o tema era a pretensão de qualquer reparação histórica, ele nunca se pretendeu uma vítima especial; ao contrário, diante dos juízos apressados daqueles que se julgam portadores de direito – de qualquer natureza – Danilo indicava a derrota política como a causa da impunidade que o regime militar garantiu para torturadores e responsáveis pela tortura.
Em consequência, invariavelmente exigia maior preparo político e intelectual da esquerda, rememorando em voz alta, o quanto sua geração, a despeito dos esforços realizados era despreparada intelectualmente para os desafios de seu tempo. Mas nunca deixou de hierarquizar a responsabilidade da direção política (o Partido) em primeiro lugar, da mesma forma que registrava o compromisso, a firmeza e honestidade de alguns camaradas que tombaram em combate, pagando com suas vidas as convicções. 
A recusa em reivindicar a condição da vítima indefesa e impotente – um refúgio comum nos dias que correm – pode ser vista no valioso depoimento de Danilo Carneiro à Comissão Nacional da Verdade (criada pela Lei 12.528/2011 e sancionada em 18 de novembro de 2011, foi finalmente instalada em 16 de maio de 2012). Naquela oportunidade é possível vê-lo na plenitude da forma política ao participar na condição de depoente numa das inúmeras audiências públicas, na qual não vacilou em qualificar tanto a Anistia quanto o trabalho da própria Comissão como uma… farsa!! É tão inesquecível e exemplar sua crítica quanto covarde a conduta de um José Carlos Dias, ministro de justiça de FHC e membro da Comissão – em pleno governo Dilma Rousseff – tentando calar Danilo quando ele, com lucidez, rigor e convicção, recordava as condições políticas sob as quais uma geração de jovens e militantes decidiu assumir luta armada contra a ditadura do capital nacional e estrangeiro. Quando a covardia e cumplicidade de José Carlos Dias tentou limitar o depoimento as atrocidades da tortura que sofreu, é possível reconhecer em Danilo sua rapidez mental, o brilho do olhar, a sagacidade da palavra utilizada, diante de uma Comissão que jamais chegaria à verdade e, portanto, não passava de um simulacro de justiça histórica!
Naquela memorável audiência, Danilo recordou apenas o óbvio, pois as vítimas da ditadura pretendiam legítima e tão somente que o Estado – num governo presidido por uma vítima do arbítrio e da tortura – utilizasse as prerrogativas do poder presidencial para ordenar a imediata abertura dos arquivos destinados a passar a limpo os crimes de uma ditadura de classe e abrir as portas para a verdade e a reparação histórica. Não por acaso Danilo indica que foi torturado em várias capitais, inclusive em Brasília, e com ironia corrosiva afirmou que um dos locais era bem perto do palácio do Planalto de tal forma que se Dilma colocasse o ouvido na janela do gabinete presidencial poderia escutar os urros da tortura a que foi submetido. Ora, Danilo sabia que a verdade histórica não poderia emergir de uma Comissão que jamais enfrentou os limites políticos inerentes ao pacto de classe no qual os governos petistas navegavam sem jamais disputar a hegemonia burguesa. É um depoimento em que o guerrilheiro, embora derrotado, com marcas profundas no corpo e na mente, ainda exibe imensa lucidez política. Eu recomendo que todos vejam aquele vídeo dilacerante (Audiência Pública – Guerrilha do Araguaia: Danilo Carneiro) para perceber a dor das vítimas da ditadura, mas também para observar como há uma propriedade humana que não sei qualificar com precisão, mas que se mantém intacta a despeito de tudo e de todos: a lucidez! Bem sei que é impossível não se comover com as lágrimas e seu choro contido, mas o que me cativa profundamente naquele dilacerante depoimento é a lucidez do militante derrotado e momentaneamente isolado diante da trama liberal em curso que exibiria pouco tempo depois o espanto dos inocentes com a hegemonia pro-estadunidense e liberal nas forças armadas que os neófitos podem também reconhecer. 
Danilo sabia contra quem lutava pois afirma que, na condição de militante comunista, tinha estudado os métodos aplicados pelo imperialismo francês na Argélia. No Brasil, ao contrário da França, jamais tivemos o equivalente do general Paul Aussaresses quem confessou claramente a tortura como uma arma legítima da doutrina militar francesa contra os argelinos que lutavam pela independência do país africano. Naquele depoimento, disponível eletronicamente, é possível ver como ele, na condição de preso político barbaramente torturado durante meses em várias cidades do país, conseguiu lutar pela vida quando intimamente, nos limites da resistência individual, já desejara a morte. Quem o salvou? Além do amor e apego à vida que pulsa mesmo nas situações mais adversas, Danilo indica que evitou o suicídio graças as canções que outros camaradas entoavam nas celas ao lado da sua – entre eles, o advogado Paulo Fonteles – que o fizeram entender o que era, de fato, um ser humano. 
Danilo encarou a luta armada aos 20 e poucos anos e permaneceu 2 anos na selva até sua prisão. “É complicado Nildo, é complicado…”. Na busca inútil por uma verdade definitiva sobre aquela batalha perdida, sempre ouvi o alerta da falta de preparo teórico para a tarefa, a despeito da entrega e da disposição de luta. No entanto, jamais renegou o recurso às armas na luta contra a ditadura com a mesma convicção com a qual não deixava de indicar o despreparo teórico de sua geração e especialmente da direção do partido para semelhante desafio; em consequência, dedicava longas horas diárias ao estudo como quem ainda procurava sanar um erro do passado para o qual, sabemos, não há remédio possível. Ao sair da cadeia com as marcas permanentes da tortura que levaram muitos de seus ex camaradas julgar que havia sido assassinado nas salas do terror, iniciou a luta pela anistia e realizou um esforço notável – em condições de clandestinidade ainda – para abrir uma discussão no partido (PC do B) sobre a luta no Araguaia. Com amargura e realismo, observou que a direção do partido não tinha o menor interesse em revisar um dos capítulos mais duros e heroicos da esquerda brasileira. A autocrítica do Partido (PC do B) jamais chegaria, como sabemos. É Danilo quem confessa que após o massacre da Lapa, onde Pomar foi assassinado pela repressão, não tinha a menor esperança em encontrar a revisão crítica da empreitada na qual consumiu sua juventude e ideais e na qual perdeu camaradas pelos quais tinha profundo amor e camaradagem. Uma vez mais, Danilo estava só, buscando entre os sobreviventes, explicações que jamais chegariam…
Eu sempre admirei sua recusa à auto ilusão. O famoso brado de um personagem de Guimaraes Rosa presente nas primeira páginas do Grande Sertão Veredas iluminou de imediato a convicção de Danilo: “quem moi no aspro não fantesia”… Danilo moeu no áspero e, portanto, não se iludia e menos ainda vendia ilusões. A contestação na Comissão da Verdade é expressão contundente do cinismo petista e da concepção alimentada pela conciliação de classes que sempre se volta contra os oprimidos. No entanto, a despeito de vento e maré, Danilo jamais perdeu a paciência e praticava o exercício da razão mesmo nas condições aparentemente mais adversas. Portanto, jamais perdeu a paciência num debate, jamais! Tampouco desprezava o interlocutor, mas não deixava de ser claro em marcar a diferença num tempo em que todos querem ser simpáticos e sugerir acordos tão fúteis quanto fatais. Danilo, ao contrário, valorizava a crítica e somente nos casos em que envolvia a tortura que ele e sua geração sofreram, deixava se levar pela emoção e as lágrimas se revelavam sempre mais potentes que sua tradicional e invejável disciplina. A despeito da vida relativamente folgada que poderia ter, mantinha uma conduta simples, sem qualquer luxo, sempre orientado pelas marcas da causa que abraçou na juventude e honrou sem vacilação até sua morte. 
No IELA, nas conversas com convidados ou mesmo lançamentos de livros, após a atividade pública, fazíamos também pequenos encontros em que Danilo era presença certa. Nesses momentos, portador de larga experiência, observei o quanto o domínio da História conta e pode ser decisivo. Talvez por isso mesmo, Danilo investia tanto na conversa com os estudantes sem, contudo, fazer apologia da juventude. Os livros, sempre os livros! A leitura, sempre a leitura! Um contraste com a época dos youtubers, influencers e famosinhos fugazes das redes digitais que não deixarão menos que doses permanentes de alienação e passatempo… 
A pandemia nos afastou. Vez ou outra uma chamada telefônica para breves atualizações sobre questões políticas que ele considerava de urgência. Na real era um chamado na forma de recado. E claro, a antiga recomendação de textos, artigos, etc… No último novembro um pedido de ajuda mais sério, o primeiro em muitos anos, orientado pela dor na coluna e a incapacidade de comer algo em vários dias em função de problemas estomacais derivados de medicamentos destinados a minimizar a crise na coluna. No seu apartamento, encontro Danilo deitado, incapaz de gastar energia para levantar. Após ouvi-lo sobre o diagnóstico grave e dar minha garantia de levá-lo a cartórios e bancos, mudei o tema da conversa para as questões políticas e intelectuais na esperança de minimizar preocupações e animá-lo… Ao lado da cama, muitos livros. Entre eles, Materialismo e empiriocriticismo, de Lenin. Eu interrompi sua arenga contra os remédios, o sistema de saúde, o futuro e ingenuamente rejeitei suas preocupações sobre a possibilidade da morte, supondo que minha negativa poderia assegurar o desejo de vê-lo caminhando na UFSC na volta as aulas presenciais. Ao lhe perguntar como estava vendo a situação lá vinha sua resposta… “É complicado Nildo, é complicado…”. Agora, ao contrário de todos esses últimos anos, a conversa era interrompida pela dor aguda na coluna de “origem patológica”, segundo suas palavras. Diante da surpresa em vê-lo pessimista, aleguei que um resultado definitivo somente existiria em duas semanas e que já existem bons tratamentos, razão pela qual não caberia sofrer antecipadamente ou preocupar-se além da medida. Em resposta, ele recordou a evolução da doença de um amigo e camarada comum – o magro Vitor – a quem visitou diariamente até sua precoce morte em 2017, razão pela qual pretendia resolver tudo antes de uma fatalidade.
No último encontro – juntamente com Waldir Rampinelli – sugeri a elaboração de um livro de entrevistas sobre sua trajetória política. Ele, finalmente, aceitou a ideia e meu otimismo supunha o início do projeto logo após o tratamento no Rio de Janeiro, tal como comuniquei a Elaine Tavares. No último dia do ano recebi, por meio de seu sobrinho, um abraço do Danilo. Ademais, a informação de que a quimio iniciara, mas a situação era grave em função de uma isquemia miocardia. Nas primeiras horas da manhã do dia primeiro de 2022 um áudio informava que Danilo não estava mais conosco. Após a receber a triste notícia de sua morte, recordei aquele sentido de urgência que ele tinha, teimando em deixar tudo encaminhado, sem pendências legais de qualquer ordem, como quem sabia estar se despedindo da vida. Recordei também a fácil aceitação de minha proposta em escrever um livro de entrevistas contando sobre sua valiosa militância. Hoje, com uma dose de tristeza, não consigo evitar a lembrança de seu sorriso irônico; afinal, qual o valor de um livro diante de uma vida tão exemplar?  
****

Foto: Felipe Maciel Martínez

Na cozinha do Iela, dando classes

Na biblioteca do Iela

Revisão: Junia Zaidan

Últimas Notícias