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O azul e o grave do Imperialismo: Trilha Sonora para um Golpe de Estado 

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Por João Gaspar/ IELA em 08 de maio de 2025

O azul e o grave do Imperialismo: Trilha Sonora para um Golpe de Estado 

Não pude deixar de sorrir ao ver que Trilha Sonora para um Golpe de Estado seria exibido em um cinema alternativo de Balneário Camboriú. Afinal, devido ao seu tema e à sua – como chamou-a o próprio diretor, o belga Johan Grimonprez – “abordagem caleidoscópica”, o filme é um incômodo sem par (no bom sentido do incômodo), de modo que vê-lo ser reproduzido no talvez mais enclausurado-em-si dos tantos vulgares redutos neoconservadores que temos no Brasil, é digno de palmas, muitas palmas, aos responsáveis por isso.

Embalado, do início ao fim, por potentes composições de Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, Nina Simone, Max Roach, Grand Kalle e outros, cujos compassos regem a própria montagem, o documentário resgata a complexa trama da descolonização africana, buscando retratá-la em toda sua humanidade e, pois, contradição. O jazz ajuda-o, a Grimonprez, sobremaneira a fazê-lo, até por ser azul e vacilante, ainda que grave, também o próprio quadro geral de Imperialismo retratado no longa.

Quadro este que vai sendo formado de uma certa forma difusa-todavia-contínua, pelo diretor, ao explorar as acaloradas sessões do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas durante a Guerra Fria; a atuação conjunta da CIA, do MI-6 e dos serviços de inteligência belga e do apartheid Sul-Africano no sentido de frustrarem movimentos anticoloniais por toda a África; os rostos, punhos e vozes de lideranças independentistas, em seus compromissos e falhas; a instrumentalização da cultura, na política externa, qual arma de gerência do consenso; a divergência entre os discursos oficial e “de corredor”, no âmbito das relações internacionais; a concretude do interesse estrangeiro no Congo (vide Union Minière du Haut-Katanga) etc.

Não há narração exógena ao objeto narrado, na produção do cineasta belga. Esse é um ponto bastante interessante, que traz à tona muito do incômodo a que fiz referência acima. A ascensão e a queda forçada de Patrice Lumumba, expoente do movimento de libertação do Congo-Kinshasa assassinado na província feita-independente do Katanga, por exemplo – que é, precisamente, um dos temas centrais do filme –, são repassadas a partir de uma riquíssima montagem feita com filmagens caseiras, programas de televisão, fotografias e gravações de arquivo, citações diversas e recortes de memórias de pessoas que participaram, em maior ou menor grau, e de um lado ou de outro, dos conflitos.

É um leitor de Mário de Andrade, poderíamos então dizer, acerca de Grimonprez. E sua obra, desnecessário dizê-lo, dessa forma, não é de modo algum facilmente acessável e digerível, uma vez desvairada. Mas é necessário, por um motivo ou outro, mergulhe-se nela, como na Paulicéia.

Dentre as memórias inseridas no documentário, têm destaque as da imensa Andrée Blouin – vocalizadas pela cantora congolesa-belga Marie Daulne –, engajada ativista anticolonialista que trabalhou como a Chefe de Protocolo e o braço-direito de Lumumba, em seu curtíssimo mandato (de junho a setembro de 1960) como primeiro-ministro da República Democrática do Congo.

Por um (in)feliz destino, ela veio a ser tida – palavras saídas da boca dos imperialistas – como a “cortesã dos chefes de Estado africanos”. Após o golpe militar que depôs, prendeu e como que condenou à morte Lumumba, levado a cabo pelo chefe do Estado-Maior congolês Mobutu Sese Seko com apoio dos estadunidenses, belgas e britânicos, Blouin foi forçada a separar-se de sua família e a exilar-se do Congo. Resistiu, sempre. E fez a crítica, também, sempre – inclusive ao autoritarismo dos novos chefes de Estado africanos que ascenderam ao poder no pós-Independência.

Além desse materiais, compõem o mosaico de Grimonprez comerciais da Tesla e da Apple, fornecendo ao espectador pistas do fato de que, para além da bomba atômica – somente possível de ser construída devido ao urânico extraído da África Central –, a pobreza do continente africano é exatamente o que permitiu e permite, ainda, junto das outras periferias do mundo, os tantos e inúmeros prazeres da vida ocidental.

O filme encerra abruptamente, no ápice de uma crescente tensão construída continuamente a partir da bateria de Max Roach e da voz de Abbey Lincoln e que explode, finalmente, quando da invasão do Conselho de Segurança por ativistas anticolonialistas ligados ao movimento pró-direitos civis estadunidense, como, afora os próprios Roach e Lincoln, a escritora Maya Angelou, em protesto contra a morte de Patrice Lumumba.

Vale a pena conferir Trilha Sonora para um Golpe de Estado – nem que seja “apenas” pelos registros do contato travado entre Malcolm X, Nikita Khrushchov (personagem importante para a narrativa) e Fidel Castro, em Nova York, que compõem, também, o longa, os quais, juntos, em seus procederes, adiantam já o caráter azul e grave do Imperialismo, tão bem retratado na obra.

Azul se combate com vermelho, e gravidade…com o quadril. Talvez o tango nos sirva bem – a nós.

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