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O Vermelho e o Verde: o dia do índio e o velho Marx

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Por IELA em 23 de abril de 2019

O Vermelho e o Verde: o dia do índio e o velho Marx

Foto: Apib

Em recente Seminário da Fundação Lauro Campos “O Capital e o capitalismo brasileiro à luz das lutas sociais da atualidade”, um representante indígena do povo Ashaninka, do Acre, foi apresentado ao público como “um representante da nossa pré-história”. O ouvido seletivo de Francisco Piyãko deve ter recusado ouvir a infâmia de ser chamado de fóssil. Também não toquei no assunto quando tivemos oportunidade de conversar, na volta para casa. Eu estava mais interessada em saber como ele nos via, a nós, o “povo da mercadoria” reunidos para discutir a herança de nosso antepassado falecido há mais de 130 anos.
Sem falar o nome das categorias, Piyãnko conversou sobre a “fenda metabólica” de um mundo centrado no capital; da “alienação” da natureza tal qual Marx e do processo de “reificação” enquanto conversávamos sobre um sanduíche descomunal que lhe fora servido… Em pouco mais de um par de horas, reconheci na fala do novo amigo mais da ecologia profunda que permeia a vida e a obra de Karl Marx do que em todo material disponibilizado pelos ecossocialistas de correntes e setoriais do Psol.
Quando ele falou do projeto de abrir um restaurante na cidade próxima a sua aldeia, servindo a culinária típica de seu povo, lembrei da carta de Marx à revolucionária russa Vera Ivanovna Zasulich, onde
“Marx apontou para a grande “vitalidade natural” das comunas arcaicas e argumentou que as comunas mais tardias, especialmente aquelas que os alemães introduziram, “se tornaram o único foco de liberdade e vida popular em toda a Idade Média”. Para Marx, essa vitalidade foi fundada em uma organização diferente do metabolismo entre humanos e natureza — a forma comunitária de produção. Assim, as comunas de aldeias russas poderiam funcionar como o lugar de resistência contra o capital e estabelecer o socialismo sem passar pelo capitalismo. “Historicamente muito favorável à preservação da ‘comuna agrícola’ através de seu desenvolvimento posterior é o fato não só de que é contemporânea à produção capitalista ocidental e, portanto, capaz de adquirir seus frutos sem se submeter ao seu modus operandi, mas também que sobreviveu à época em que o sistema capitalista permaneceu intacto. ”
E na frase seguinte conclui:
“ Hoje encontra esse sistema, tanto na Europa Ocidental quanto nos Estados Unidos, em conflito com as massas trabalhadoras, com a ciência e com as forças muito produtivas que ela gera — em suma, numa crise que terminará por sua própria eliminação, através do retorno das sociedades modernas a uma forma superior de sociedade “arcaica” onde a propriedade e produção são coletivas. ” (1)
Foi um encontro efêmero, mas que ajudou a encontrar o Velho Marx dos ecossocialistas do segundo estágio, notadamente Paul Burkett, Jonh Belamy Foster e principalmente o japonês Kohei Saito, que revelou o caráter imanente da ecologia de Marx, e a clara continuidade com sua crítica da economia política só compreendido após a análise sistemática dos seus cadernos de ciências naturais que serão publicados pela primeira vez no novo Marx-Engels-Gesamtausgabe, conhecido como MEGA 2.
Sim, é possível trazer Marx não apenas para “lembrar” o “dia do índio”, mas para todos os debates ecológicos do nosso tempo. Basta que nos juntemos à tarefa e consigamos avançar no tempo, saindo da década de 70, “quando as graves ameaças ambientais à civilização humana tornaram-se progressivamente mais visíveis nas sociedades ocidentais, e Marx foi repetidamente criticado por novos estudos e por um movimento ecológico emergente por sua aceitação ingênua da ideia comum do século XIX, defendendo a completa dominação humana da natureza”.(2) Segundo os críticos, tal crença inevitavelmente levou-o a negligenciar o caráter destrutivo que é imanente na indústria moderna e na tecnologia que acompanha a produção e o consumo em massa. Nada mais anos 70 do que refutar a ecologia de Marx com hegelianismo.
Também não dá para se pretender vanguarda tendo por base os ecossocialistas da primeira geração, onde a persistente reserva em aceitar a ecologia de Marx — como Ted Benton, André Gorz, Michael Löwy, James O’Connor e Alain Lipietz — que a reconhecem somente até certo ponto. Daniel Tanuro, por exemplo, um queridinho dos ecossocialistas brasileiros, chega a afirmar “que o tempo de Marx é agora tão distante em termos de tecnologia e ciências naturais que sua teoria não é apropriada para uma análise sistemática das questões ambientais atuais, especialmente porque Marx não prestou atenção suficiente à especificidade da energia fóssil em contraste com outras formas de energia renovável”.(4)
Vou ousar dizer que nada mais colonizado do que importar a pauta energética para a periferia latino americana, onde o que deveria estar no topo da pauta é a questão da produção agrícola e a supressão da biodiversidade do nosso solo tropical, o gastrocolonialismo a que estamos submetidos e suas consequências no metabolismo social.
Para os desavisados, Marx publicou apenas o tomo I d’O Capital, onde a teoria de Liebig em 1865–1866 levou-o conscientemente a abandonar qualquer modelo prometéico reducionista de desenvolvimento social e a estabelecer uma teoria crítica que converge com sua visão de desenvolvimento humano sustentável. “Em comparação com os Cadernos de Londres de 1850, nos quais o otimismo de Marx negligenciava o problema do esgotamento do solo sob a agricultura moderna, seus cadernos de 1865 a 1866 demonstram vividamente como vários cientistas e economistas como Justus von Liebig, James FW Johnston e Léonce de Lavergne ajudaram-no a desenvolver uma crítica mais sofisticada da agricultura moderna. “Em 1868 — isto é, logo após a publicação do primeiro volume de O Capital, em 1867 — optou por estudar mais livros de ciências naturais, fazendo-o ainda mais intensamente. Notavelmente, ele leu vários livros nessa época que criticavam muito a teoria de exaustão do solo de Liebig. Depois de um tempo, Marx relativizou sua avaliação da teoria de Liebig e, ainda mais apaixonadamente, argumentou sobre a necessidade de uma sociedade pós-capitalista realizar um intercâmbio racional com a natureza. A figura importante neste contexto é um agrônomo alemão, Carl Fraas, que criticava Leibig. Na pesquisa histórica de Fraas, Marx chegou a encontrar uma ´tendência socialista inconsciente`”.(5)
Enfim, tanto os críticos setentistas quanto os ecossocialistas da primeira geração reclamam que a “ecologia de Marx”, como tal, pode, na melhor das hipóteses, apontar o fato banal de que o capitalismo é ruim para o meio ambiente. Nada mais contestável: “ Entre os escritos de Marx, é possível encontrar vários argumentos claros que indicam seu forte interesse em problemas ecológicos. Se a afirmação de que a ecologia de Marx é apenas de importância secundária para sua crítica da economia política foi aceita como convincente por muito tempo, a razão pode ser parcialmente encontrada na tradição do marxismo ocidental, que lidava principalmente com formas sociais fetichistas da ciência da lógica de Hegel), enquanto o problema de “material” ou “conteúdo” foi largamente negligenciado. Se o “material” se integra em seu sistema, os textos de Marx abrem caminho para a ecologia sem muita dificuldade”.(6)
Lembremos que somente na década de 1870 Marx desenvolveu a teoria do metabolismo. Alguns volumes de sua biblioteca pessoal apontam para o desenvolvimento maduro da ecologia em Marx: Bernard Cotta, solo alemão, sua composição geológica e a influência dos últimos sobre a vida humana (Deutschland Boden, Sein geologischer Bau und Dessen Einwirkung auf der Leben der Menschen; Leipzig, 1858); Jean Charles Houzeau, Clima e Solo (Klima und Boden; Leipzig, 1861); Adalbert Adolf Mühry, Visão Geral Climatográfica da Terra (Klimatographische Uebersicht der Erde; Leipzig, 1862); e Robert Russell, América do Norte: sua agricultura e clima (Edimburgo, 1857). Marx também acompanhou os debates sobre a teoria do esgotamento do solo de Liebig: Adolf Mayer, Capital do Fertilizante e Cultivo de Roubo (Das Düngerkapital und Raubbau; Heidelberg, 1869); Clemente Mandelblüh, tabelas para o cálculo do esgotamento do solo e reabastecimento da energia do solo (Tabellen zur Berechnung der Bodenerschöpfung e des Bodenkraft-Ersatzes; Leipzig, 1870); e Johannes Conrad, a visão de Liebig sobre o esgotamento do solo e seu raciocínio econômico, estatístico e histórico (Liebig’s Ansicht von der Bodenerschöpfung und ihre geshichtliche, estatistische und nationalökonomische Begründung; Göttingen, 1866). São apenas exemplos: o interesse de de Marx era muito mais abrangente do que os títulos sugerem. Suas investigações o levaram a ver que as desavenças metabólicas eram o problema mais sério do capitalismo!
Marx também leu vários livros sobre sociedades e comunidades pré-capitalistas e não-ocidentais, com um foco particular na agricultura e propriedade fundiária, como pode ser visto nos famosos cadernos etnológicos. O marxista peruano José Carlos Mariátegui também esclareceu a questão do índio em 1928, nos Sete Ensaios de interpretação da realidade peruana. Lá se vão 90 anos e a questão do índio segue sendo a questão latino americana: a propriedade da terra. Se tais feitos, aliados a todo material que vem emergindo do projeto MEGA 2 não nos servirem para avançarmos numa teoria marxista revolucionária para a superação do subdesenvolvimento a que esse sistema nos impõe, resta-nos apenas seguir a prática indígena que Marx já observava em meados de 1870, ir para a aldeia ou uma ecovila. De uma forma ou doutra, encontraremos o velho Marx. E sim, ele é verde. E absurdamente vermelho.
(1) Todas as aspas numeradas são uma tradução livre de trechos do livro KARL MARX’S ECOSOCIALISM: Capitalism, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy de Kohei Saito publicado pela Montly Review Press, Nova Iorque, em 2017. 
Ivana Melo Jacques é Militante da Revolução Brasileira e Presidente do Psol – Balneário Camboriú – SC
 

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