Início|Sem categoria|Os caminhos enganosos da reforma universitária

Os caminhos enganosos da reforma universitária

-

Por IELA em 15 de março de 2005

Por elaine tavares – jornalista no OLA/UFSC
15/03/2005 – Triste destino o dos trabalhadores das universidades, sempre chamados de “arautos da desgraça”, aqueles que, como Jeremias, bradam do alto dos montes a anunciar as coisas ruins que virão. São vistos como urubus, pássaros longevos que sobrevoam as carniças, a espreitar para o almoço. Assim os chamam, quando, entre gritos, protestos e greves tentam mostrar o que virá. Na verdade, eles não são visionários do mal, mas aqueles que, com base na análise da realidade, vislumbram claramente o destino da universidade para o futuro próximo, ou seja, a privatização.
Assim tem sido na discussão da reforma universitária proposta pelo governo Lula. Desde que foram ensaiados os primeiros passos, parte dos técnicos-administrativos anunciavam que seria um grande golpe para as universidades e para todos os trabalhadores. Por isso, pouco tempo antes de anunciar o projeto, o governo envolveu a categoria em questões intestinas, como a reformulação da tabela salarial, armando uma bem urdida armadilha para deixá-los fora do debate. A Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores em Universidades (Fasubra) caiu no laço e, a gosto do governo, vem priorizando a discussão do chamado tabelão. Por outro lado, alguns sindicatos de base, como o da Universidade Federal de Santa Catarina, denunciam a farsa que está sendo a idéia de reforma proposta pelo governo.
“Na verdade, esta é uma contra-reforma e parte de um pré-suposto errado. Junta o setor público com o setor privado na mesma lei, como se ambos trabalhassem com a mesma coisa. A lógica dos governistas é de que todos lidam com educação. Isso é fato. Mas há concepções muito diversas na maneira de gerir uma instituição pública e uma privada, sendo que a última visa lucro e trata a educação como mercadoria. A pública, por princípio, não deveria ter essa idéia. O que nos diz então o governo? Que entende a educação como mercadoria, pois coloca os dois sistemas – público e privado – na mesma bacia. Isso é inaceitável”, diz Raquel Moysés, uma das coordenadoras do sindicato.
Ela denuncia que a chamada Lei Orgânica, que estabelece as diretrizes e normas para a educação pública é recheada de absurdos. Escrita sob as luzes dos planos estrangeiros do Banco Mundial e FMI, a lei começa, de cara, no artigo primeiro, legalizando as Fundações de Apoio, uma espécie de excrescência parasita que vive grudada na universidade a encher os bolsos com dinheiro público e privado, longe dos interesses da sociedade. Desde sempre os movimentos de trabalhadores estiveram lutando para expulsar de dentro das universidades públicas esses organismos e, agora, o mesmo governo que antes era contra, as legaliza.
A idéia de democracia estabelecida pela proposta governista também é algo que foge do normal. Fala em gestão democrática, mas dá todo o poder aos docentes, deixando cada vez mais claro que os técnicos-administrativos são invisíveis, incapazes e prescindíveis. Além disso, a lei cria aberrações sem pé nem cabeça, como os cursos de educação superior, que não configuram graduação. Ao que parece, unicamente legalizam os famosos cursos “caça-níqueis” que formam mão-de-obra para o mercado e sugam os trabalhadores mais pobres premidos pelo canto insuportável do “qualifique-se para o mercado ou morra”. No mesmo grupo está a invenção dos “Centros Universitários”, outra aberração que fica entre ser faculdade e universidade, sendo na verdade nenhuma delas. Outro caça-níquel a serviço do mercado.
A proposta governista ainda traz em seu corpo um instrumento de perversidade pois – ao mesmo tempo em que engana os trabalhadores com um falso projeto de carreira – abre as portas para o famigerado Regime Próprio por Universidade, o que pode jogar por terra qualquer avanço que os trabalhadores das federais venham a ter com a reestruturação de tabela que está em curso. Com a instituição do regime próprio, cada universidade vai poder definir a vida funcional de seus trabalhadores, admitir ou demitir. “Isso aí nada mais é do que o processo de privatização em andamento”, insiste Raquel. Além de dividir cada vez mais os trabalhadores, bem na lógica da outra reforma que já está no Congresso: a sindical.
O projeto apresenta elementos que poderiam ser, à primeira vista, considerados um avanço. Mas, uma leitura mais cuidadosa revela as armadilhas. Um exemplo é o Fórum Nacional de Educação. Da maneira como está colocado não deixa claro quem vai fazer parte dele, como será constituído etc… É um jogo de cena para parecer democrático. E, por incrível que pareça, tem sido um dos pontos de crítica da direita brasileira que insiste em dizer que, com o Fórum, a educação vai ficar nas mãos dos sindicatos, da CUT e do Movimento Sem-Terra. Nada mais falso. Tudo indica que quem vai mandar é a iniciativa privada.
A lei de reforma fala também em eleição direta para reitor nas universidades, mas não se manifesta sobre, no mínimo, a paridade no processo. Até agora a comunidade universitária não tem tido o direito de escolher o seu dirigente, sendo ele eleito através dos Conselhos Universitários, com maioria docente. Ao falar em eleição direta, mas sem especificar como seriam as eleições, o governo deixa brecha para que os docentes continuem a ter peso maior no processo. Mais uma vez os técnicos-administrativos podem ficar com peso menor, fazendo coro ao que o projeto insinua quando dá mais poder aos docentes: os TAs são incapazes e não podem decidir, de forma paritária, a vida da universidade.
Não bastassem todos esses problemas, a proposta de reforma do governo Lula pretende jogar os trabalhadores aposentados, sejam docentes ou técnicos, para fora da folha de pagamento das universidades, dando seqüência ao desejo de exclusão que já vem de outros governos e que, até agora, a luta dos trabalhadores conseguiu barrar.
Outro ponto grotesco é o financiamento das bolsas estudantis através do jogo de azar. A população brasileira, já tão sofrida, vai financiar duas vezes a universidade. Primeiro, com os impostos e, depois, apostando na loteria, na enganosa promessa de que pode ficar rico. O governo incentiva a enganação e ainda tem a cara de pau de colocar isso no projeto. Um mico mundial.
Estes são apenas alguns pontos que mostram o quanto o projeto de reforma universitária pode ser nocivo aos interesses dos trabalhadores, das universidades e da sociedade. Visivelmente, ao colocar sob a mesma lei dois sistemas de ensino tão diversos – o público e o privado – o governo está tentando desqualificar o serviço público e deixando claro à sociedade que a educação vai passar a ser tratada como mercadoria, bem ao gosto da Organização Mundial do Comércio. “As pessoas que ainda acreditam que o Lula é um dirigente de esquerda precisam abrir os olhos. Esse é um governo neoliberal que segue, à risca, a receita dos organismos internacionais”, dispara o dirigente sindical, Ivalter Coutinho.
Quais as saídas?
Para os trabalhadores que estão em luta contra a reforma universitária proposta por Lula este é um momento conjuntural muito difícil. Há uma grande apatia entre as categorias que fazem a universidade em função da desesperança que se instalou tão logo a máscara do governo “de esquerda” caiu. Além disso, a cena política brasileira vive um desmonte das instituições partidárias e sindicais. A eleição para a presidência da Câmara dos Deputados colocou os políticos em descrédito. Os deputados, longe de auscultar suas bases sobre os destinos da casa – e conseqüentemente do país – preferiram votar num candidato que oferecia aumento salarial, férias de 90 dias e mais contratação de funcionários para seus serviços. Nada mais internista e fisiológico. Mostras da pequena política que toma conta do país.
Além disso, o país vive uma crise no campo, com assassinatos, violência e mais uma etapa de demonização do Movimento Sem-Terra, como se fora ele o responsável pelo caos no interior. Na verdade, o MST apenas quer que Lula cumpra o que prometeu: agilidade na reforma agrária. Mas, ao que parece, Lula tem preferido fazer aliança com o agro-négocio, que impõe suas pautas, decide pela liberação dos transgênicos e financia a barbárie no campo. Na cidade, as gentes, sem emprego, sem comida e sem lugar para morar, ocupam áreas e são reprimidas como se fossem bandidos. Tiros, mortes, violência. O caos. Enquanto isso, os bancos divulgam mais um ano de lucros astronômicos. O que significa que tudo segue como antes. Nada mudou.
Dentro desse turbilhão, os trabalhadores das universidades que estão em luta tentam encontrar algum canal de diálogo com a sociedade para que as armadilhas do projeto sejam percebidas. Não tem sido fácil, até porque, de forma equivocada, movimentos importantes, e sempre aliados, como o MST, o Movimento dos Atingidos de Barragens, as Mulheres Agricultoras e a União Nacional dos Estudantes, estão dando apoio ao projeto.
Na mídia, a direita raivosa ataca o projeto do governo com base em falsas questões. Diz que Lula está jogando a universidade na mão do MST e dos sindicatos. Isso é uma bobagem. Insaciável, a classe dominante quer muito mais do que o projeto já lhe dá, então parte para o ataque usando os velhos “medos” de que sempre lança mão. Diz que os comunistas vão tomar conta do país. Ora, nada mais antigo e sem lógica. A reforma governista está entregue ao capital. Mas o empresariado quer mais. “ É por isso que nós, os trabalhadores, precisamos continuar a fazer a crítica, sem medo de sermos comparados com a direita. Isso não se sustenta. Os argumentos não são iguais. Nós estamos em defesa do serviço público, a direita defende o capital”, diz Jussara Godói, coordenadora de Comunicação do Sintufsc.
Mas, apesar da denúncia e da luta de alguns sindicatos de base, a Federação que congrega todos os sindicatos das universidades está cindida. Parte dela apóia o projeto governista e o dilema que está posto é: vai a Federação seguir a política cutista de sindicalismo propositivo, considerada suicida pela ala mais radical? Vai a federação acreditar que é possível disputar o projeto nas mesas de negociação?
“Nós já tivemos provas mais do que cabais de que esta política de negociação só serve aos que mandam, aos que dominam. Desde os anos 80, quando a CUT deu a guinada para a conciliação de classes, que as mesas de negociação só negociam perdas, nunca ganhos”. É o que denuncia o advogado trabalhista Cláudio Antônio Ribeiro. “O sindicalismo de propostas tira do trabalhador a sua capacidade de resistir, no combate, ao neoliberalismo. Conciliação é coisa típica do fascismo, não discute o conflito, camufla e o consenso é um pântano. A superfície é serena, mas se a gente mergulhar, lá está a podridão”.
Para os sindicalistas que estão bradando contra a reforma, a Fasubra não deve entrar nesse pântano e tampouco insistir em colocar um projeto alternativo para negociar perdas, apostando na política da migalha. “O que temos de fazer é a luta. Dizer não ao projeto, mobilizar os trabalhadores, esclarecer a sociedade. A proposta de negociação, levada pela CUT desde os anos 80, está esgotada. Só trouxe perdas aos trabalhadores. Não é inteligente seguir insistindo nisso. Não cabe aos trabalhadores oferecer alternativas ao governo. Cabe a nós fazermos a luta, desmascarar as jogadas sujas, desarmar as armadilhas. Resistir, combater. Só a luta efetiva pode vencer o neoliberalismo. Já não dá mais para crer que a negociação é o caminho e que as partes envolvidas no jogo têm forças iguais. Nela, só os que têm poder vencem. Insistir nisso é ir como carneirinhos para o abate”, finaliza Raquel Moysés.

Últimas Notícias