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Para que servem as fronteiras???

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Por IELA em 20 de abril de 2005

Para que servem as fronteiras???
Por Elaine Tavares – jornalista
29/04/2005 – Era 2003. Fronteira do Peru com Chile. Eu vinha acabada de uma viagem interminável desde Cusco. Amanhecia, e o Deserto de Atacama se descortinava, tórrido, mas bonito. A fila se arrastava no controle de imigração. Na lotação em que eu estava, vinham mais quatro pessoas, todas peruanas, com imensas bolsas. Depois de quase duas horas esperando, finalmente chegou nossa vez. A mulher peruana à minha frente passou por seu calvário. A agente de imigração era também uma mulher. Foi fria, dura e mal educada. Agarrou a bolsa da outra mulher e a despejou sobre a esteira, vasculhou cada ponto e, depois, deixou tudo espalhado. A peruana, de traços indígenas, recolheu cada peça com uma fisionomia imutável. Nem raiva, nem pressa, nem cansaço, nada transparecia. Eu me preparei para passar pelo mesmo. A mulher pegou meu passaporte e sorriu. “Pase”, disse, delicada. Olhei para ela com uma expressão interrogativa, meio pasmada. E ela imediatamente passou ao outro da fila, peruano. Com ele, repetiu o ritual de desfazer a mala, remexer, jogar tudo sobre a esteira, o rosto duro e frio. Eu fiquei ali, estática, quase com vontade de chorar.
Então entendi. Eram peruanos e chilenos. Velhas rixas sobre territórios, ódios construídos por governos, que vão envolvendo as pessoas comuns e que, depois, fazem, de cada um, um inimigo. Mais algumas boas horas de ônibus e lá estou eu na fronteira do Chile com a Argentina. De novo os agentes chilenos repetem o ritual de humilhação com os peruanos. Bolsas abertas, confusões, caras amarradas. E eu, brasileira, livre, sem qualquer problema. O mais louco é que tanto lá no norte do Chile quanto no leste, os agentes de imigração pareciam ter as mesmas feições que os peruanos, como se pertencessem a um mesmo povo. Aquele jeito índio, autóctone. E se tratavam como diferentes. Uns, chilenos, donos do poder naquele momento. Outros, peruanos, acossados por uma briga tão antiga que sequer conheciam.
Na fronteira da Bolívia, no mesmo ano, outra cena de causar perplexidade. O soldado mal humorado pegou meu passaporte, olhou para mim, carimbou e pronto. Estava feito. Fiquei por ali a esperar uns amigos colombianos que viajavam no mesmo ônibus. O soldado olhou os passaportes e, rispidamente, mandou que fossem os três para uma outra sala onde seriam “interrogados” por um oficial do exército. Assustados, lá foram eles para a outra sala a esperar o militar. Sem conseguir ficar calada, tentei uma conversa com o agente. “Que pasa???” perguntei, tentando parecer simpática. “Son colombianos”, disse, simplesmente, o rapaz. A nacionalidade era digna de suspeita. Pois além de terem sido interrogados por um soldado do exército, os três tiveram que sair, fazer uma fotocópia dos passaportes e deixá-las no posto. Ao entregar, finalmente, o passaporte carimbado, o soldado advertiu: “Ustedes tienen tres dias para salir de Bolívia”. Assim, sem qualquer outro “problema” além do fato de serem colombianos, os três não tinham o direito de passear pela Bolívia.
2005, fronteira entre a Argentina e o Chile. Outro momento de pasmo diante da idéia de fronteira e do preconceito. O caminhão em que viajávamos, de carona, eu e mais duas amigas, sofreu uma pane há 15 quilômetros do posto de imigração. Parou por completo depois de já ter se arrastado pela Cordilheira dos Andes, com outras três paradas forçadas por falta de óleo. O motorista, Samuel, que heroicamente vinha manejando os problemas do enorme veículo, estava preocupado com as amigas brasileiras. Sabia que, àquela hora, o frio já estava começando a baixar e seria muito desconfortável ficarmos todos na estrada durante a noite toda. Tomou a iniciativa de pedir uma carona. Àquelas alturas do dia, era praticamente impossível que algum carro passasse mas, mesmo assim, ficamos à espreita. Como por um milagre, apareceu um carro. Dentro dele, dois bolivianos. Samuel pediu se eles podiam nos levar até o posto. Falando sem parar, o boliviano que dirigia o carro insistia que não podia, que seria problemático, mas àquela altura nós já o cercávamos com as mochilas na mão, forçando a barra da solidariedade. A noite já estava quase instalada, o vento era gelado e tínhamos uma companheira passando mal. Ele, meio a contra-gosto, aceitou e nós pulamos para dentro do carro.
Então, contou que estava com problemas com os homens da imigração. Tinha tentado entrar no Chile com um primo que não tinha carteira de identidade. Era o outro garoto que estava no banco da frente. Disse que, na Bolívia, fica muito caro para as pessoas fazerem os documentos e quase ninguém os tinha. Ele já morava no Chile havia anos e agora o primo vinha também tentar a sorte. “Sin documentos, no pasó”. Os soldados o mandaram de volta para a fronteira com o Bolívia e seguraram o passaporte. Só voltaria a entrar no Chile se deixasse o primo no outro país. Ele agora estava voltando para o posto, mas já haviam decidido. Deixaria o primo ali, no meio do gelado deserto, para que tentasse a travessia à pé. E assim foi. No começo da fria noite da quebrada de San Pedro de Atacama, um garoto boliviano, de cara índia, com uma pequena sacola na qual estavam todos os seus pertences, desceu para a longa caminhada. Parecia tão pouco abrigado para aquele frio mas, mesmo assim, seguiu, com aquela expressão impenetrável que têm as gentes de descendência quéchua. “El vá a pasar”, vaticinou o primo, enquanto olhava pelo retrovisor o garoto desaparecer em meio ao nada.
Dez minutos depois chegamos no posto, dentro do carro do boliviano. Ele já havia pedido que não falássemos nada do primo. Claro que não falaríamos. Tivemos que dizer aos guardas toda a história do caminhão e que o homem nos havia apenas dado uma carona. Desta vez, não valeu ser brasileira. O fato de estarmos no carro de um boliviano, que havia tentado passar um outro sem documentos, nos tornou suspeitas sabe-se lá de que. Fomos revistadas, as malas também. Não houve sorrisos nem palavras afáveis. Só não passamos por mais nenhum constrangimento porque Samuel, o motorista do caminhão, que é chileno, havia ligado para o posto falando que precisava de ajuda. Isso bateu com a nossa história e deixamos de parecer perigosas traficantes.
Estas são apenas algumas histórias singulares do que acontece nas fronteiras da América Latina e certamente nas de outros continentes também. Isso sem falar nas milhares de mortes ocorridas no longo e odioso muro que separa o México dos Estados Unidos. Separados por linhas imaginárias, feitas muitas vezes não pela vontade dos povos, as gentes são submetidas a coisas absurdas, humilhações, preconceitos, discriminações e até assassinatos. No mais das vezes, pessoas de uma mesma etnia, de um mesmo ethos e que constróem um abismo entre si, praticamente sem sequer saberem os motivos. Fico pensando em Bolívar, bramindo sua espaça na libertação dos povos da latino-américa e, nessa missão, ajudando a criar os estados-nacionais, as fronteiras, enfim… Que diria ele disso tudo? Que análise faria dessa nossa américa separada, cortada, segmentada, sem um projeto de uma verdadeira integração cultural, humana e espiritual?
Então me remeto aos novos bolivarianos que andam por essas estradas tentando mudar as coisas. El Che e seu sonho de vida digna para os povos do mundo, Chávez e sua proposta de ALBA, uma integração latino-americana que consolidaria o sonho de Bolívar. Uma América com seus estados nacionais sim, com suas soberanias asseguradas. Mas, ao mesmo tempo uma América integrada, unida, que pudesse reconhecer as gentes como irmãs num mesmo projeto. Uma América em que as fronteiras fossem apenas pontos de passagem onde pudéssemos parar, ir ao banheiro, dizer o quanto estamos felizes por estar entrando naquele país, comer um pão – quem sabe – e seguir, acenando entre sorrisos. Me doem as fronteiras com seus agentes mal humorados, suas esperas e suas discriminações. Sei que há muita coisa em jogo e que existem pessoas do mal. Mas, algum outro jeito há que se inventar para controlar isso. Assim, insisto em continuar lutando por uma Pátria Grande, sem cercas, sem carimbos, onde as gentes possam circular, livres, tal e qual a própria América Latina, que há de também, um dia, conquistar a sua soberania.

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