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Sequestro dentro de casa

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Por IELA em 06 de outubro de 2004

Sequestro dentro de casa
Por Raquel Moysés – jornalista no OLA/UFSC
06/10/2004 – O painel de movimentações sociais da semana de 13 a 17 de setembro, construído a partir do acompanhamento de fatos e eventos protagonizados por parcelas de povo da América Latina, revela focos de resistência de alguma consistência e eventos pontuais que representam disputas e desmascaram relações mal disfarçadas de subordinação de dirigentes públicos transformados em serviçais, muito bem pagos, do sistema financeiro e de multinacionais.
De todos os acontecimentos, brevemente relatados no Painel de fatos e lutas na AL, um deles chama especial atenção. Durante uma reunião do tratado de livre comércio, um representante do ministério da Fazenda do Chile abandonou a missão a serviço de seu país para passar a zelar pelos negócios do FMI, junto ao qual assumiu cargo de assessor. Outro representante público, do Peru, largou a mesa de negociação para ir cuidar pessoalmente da saúde de uma multinacional de medicamentos, na qual assumiu cargo de alto escalão.
A situação, aparentemente bizarra, não causa espanto nem é coisa distante do cenário cotidiano da pequena política brasileira.
Numa lúcida abordagem do professor Francisco de Oliveira, da USP, publicada na revista da Adunicamp, está delineado o quadro dramático das relações perigosas que, no Brasil de Lula, desencadeiam o que o sociólogo, guiado pelo gosto literário, chama de “O Rapto das Sabinas”. A metáfora, traduzida sem meias palavras pelo intelectual brasileiro, dá conta de como se opera no país o seqüestro das organizações da sociedade civil pelo governo petista. O sociólogo, que foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e um dos primeiros a romper com o partido,logo nos primeiros meses do governo, analisa como, ao se transformar no “partido da ordem”, o PT, de principal referência das organizações da sociedade, se transforma em adversário dos movimentos sociais.
Esta operação de seqüestro da sociedade civil em ato, na análise de Oliveira, tem como devastador efeito a desmobilização que o governo está conseguindo impor no meio social. “Nessa marcha, ele desmobiliza os movimentos sociais e seqüestra, portanto, aquelas forças que, de fato, são as que estavam com capacidade de reorganizar a ordem dominante”, avalia.
E, por mais trágico que possa parecer, nessa guerra surda que o governo trava contra as organizações da sociedade, conta com a colaboração militante de algumas lideranças fortes dos movimentos que, paradoxalmente, no interno das próprias organizações, acendem o pavio que as vai implodindo desde dentro. Uma das estratégias mais bem-sucedidas, como bem lembra Francisco de Oliveira, é a de “pelegar” o movimento dos trabalhadores dentro do campo minado pelas reformas.
A mal sucedida batalha contra a reforma da previdência deu o sinal de alarme. Algo de muito podre contaminava os ares e dava a largada à temporada de caça inclemente àqueles que ainda ousavam levantar as bandeiras dos direitos contra os parceiros amáveis do sistema financeiro, ávidos por novos lucros prometidos pelos fundos de previdência.
Daí para a frente, a mistificação do diálogo engendrada com a conivência de muitas das antigas lideranças aguerridas não deixa mais margem à dúvida. Para manter a ordem constituída, honrar os contratos com o capital, os compromissos com a sociedade vão sendo um a um rompidos. As reformas estão aí para revelar esse estado de coisas, despindo e expondo as opções feitas. Mantidos intocáveis os direitos do capital, todos os outros são reformáveis. E, para isso, a estratégia é paralisar os movimentos sociais, usando as mentes e braços de suas próprias crias. Cooptados, os melhores filhos dos trabalhadores, os mais brilhantes, fazem o serviço de nocautear os movimentos, anulando-os desde dentro.
Por que nos escandalizaria, portanto, ver servidores públicos do Peru e Chile abandonarem sua função pública para ir servir os que condenam seu próprio povo a uma condição de desgraça e escravidão.

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