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Terra, liberdade , rosas e canções

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Por IELA em 29 de maio de 2008

Terra, liberdade , rosas e canções           
 
por carmen susana tornquist  – professora na UDESC
 
29/05/2008 – Reza uma interessante filosofia de botequim, que um relacionamento amoroso, para “dar certo”, precisa de três ingredientes básicos: atração (a  inexplicável e inesquecível química), valores compartilhados pelos dois/duas amantes, e ainda, projetos, igualmente compartidos pelos “sujeitos” da relação, ainda que estes últimos  não necessariamente tenham que ser totais, completos..Ou seja, muita química(esta, sempre inteira, total e absoluta), alguns valores e certos projetos em comum bastariam para garantir um bom período de significativa felicidade conjugal.
 
Esta “fórmula” poderia se empregada para pensar sobre os amores presentes na obra de Ken Loach. Sua engajada trajetória iniciou nos anos 60, da qual exibimos no Cinearth, Terra e Liberdade(1995),Pão e Rosas(2000) e Canção para Carla(1987). Nestas películas, os relacionamentos amorosos não são meros recursos para descansar o público das dramáticas tensões inerentes às revoluções e movimentos sociais: são eles mesmo politizados, problematizadores das tensões entre valores éticos e morais, dos projetos da disputa e interlocução entre projetos próximos, mas não iguais – micropolítica do cotidiano.
 
As relações amorosas, que prometem “virar o mundo de cabeça para baixo”, tal qual as revoluções, não tardam em revelar as vicissitudes e dilemas da existência em comum, da vida no coletivo, das diferenças e da diversidade. Amantes e combatentes, apaixonados por seus amados e por seus ideais, experimentam limites e desafios, e, quase sempre, se defrontam, de pronto, com escolhas, com dilemas de difícil resolução. Apenas um Beijo(2006) é que foge à esta tradição loachiana, onde vemos um “final feliz” , onde diferenças étnica, culturais e religiosas são abolidas pelo amor romântico moderno, final que, não sem razão, deixou muita  gente incomodada e curiosa.
 
 Nos três filmes citados, nos defrontamos é com a impossibilidade das relações entre indivíduos de mundos tão diversos, como mexicanos em busca de trabalho e sindicalistas profissionalizados e intelectualizados do Primeiro Mundo, ou entre ativistas do front anti-fascista, revolucionário “nativos” e aqueles advindos da Inglaterra, como em Terra e Liberdade. Este “amor”, tão louvado em verso e prosa, é histórico, socialmente situado e construído, fonte de ilusões e cegueira, e sempre fugaz: é o que dizem os historiadores, psicanalistas e pessoas mais sensatas e racionais do que os devotos do mito do amor repentino. Loach não é (ou não era?) um romântico, e costuma inviabilizar os amantes que põe em cena, seja pela morte, seja pelo regresso a terra natal. Vimos isso em Terra e Liberdade, quando Blanca morre fuzilada por ”camaradas”, assinalando o fim de um projeto realmente revolucionário na Guerra Civil Espanhola., e também o fim de sua (segunda) relação com um “camarada” estrangeiro/inglês.
 
Vimos isto também em Pão em Rosas, quando Maya, após a vitória nas lutas do sindicato dos faxineiros, vê seu romance com Sam (sindicalista libertário e rebelde) ser abortado em função de ter assaltado um mercado para pagar a matrícula na universidade ianque para seu ‘ex-pretendente”, este entusiasmado com o sonho americano. Desertando da alegria geral dos faxineiros latinos e afro-americanos, ela é, ao final, deportada junto com outros companheiros, e volta ao México, deixando para trás aqueles momentos de luta e fragmentos deste romance baseado na tríade acima citada(atração, valores, projetos).
 
Em Canção para Carla, não é diferente: a jovem nicaraguense, refugia-se em Glasgow, deixando para trás seu povo, e sua família, à época em plena revolução, após um brutal ataque dos contra a seu grupos de “músicos sandinistas”. Mas este auto-exílio não é definitivo: ela mantém aceso o desejo de retornar à sua nação em luta, colaborar com a revolução sandinista, em cujas trincheiras permanecera seu compañero Antonio. Nos anos 80, “Nica” e os valentes sandinistas entusiasmaram não apenas este povo, mas toda uma geração de idealistas](entre eles, certamente, Ken Loach). O diretor faz com que Carla encontre acolhida de um jovem condutor de ônibus local, parceiro de classe, que a acompanha, fascinado pela sua “beleza que vem de longe” – alteridade – em seu projeto de retorno à Nicarágua, cego e desinformado (como tantos brancos/europeus daquela época) do que realmente significava uma revolução  em solo latino-americano.Levada, em parte pela dedicação de seu amante escocês , em parte pela possibilidade de regresso, mas sem se iludir com uma redenção qualquer, seja ela política, seja amorosa. Se Geo se fascina e se atira neste projeto de alteridade (apaixonado e sem razão),Carla sabe da dureza deste mundo, e se dança ao som de auspiciosas canções para arrecadar dinheiro, sobreviver e retornar, é porque aprendeu a tirar sangue das pedras, a buscar alegrias mínimas numa História de atrocidades ..
 
Carla  e seu apaixonado namorado/amigo(?) Geo, chegam, então, à esta centro-américa, num momento em que os Contras já iniciariam sua vitória, e os revolucionários já estão sentindo os ventos da falência de seu sonho, começando um caminho triste de exaustão e desencanto. Amigos, parentes, companheiros de Carla foram mortos, torturados, destruídos, despedaçados… O cansaço de uma luta que se revelou inglória é a casa para a qual Carla traz seu namorado escocês. A identidade de classe, que em solo europeu os aproximara, (ele, operário/desempregado, ela migrante latina sem dinheiro nem documentos), vai cedendo espaço a um grande abismo, fronteira suficientemente sólida para afastar, quem sabe, sabiamente, os amantes. Geo dissera, logo no início do romance, ao levar Carla ara admirar uma bela paisagem que lhe aprazia admira porque estava sempre mudando: Carla, calada, nada falara de mudanças, mas agora, em solo próprio, é um sentido muitíssimo mais denso da mudança que vem a experimentar.
 
A cumplicidade dos corpos já se anunciara difícil no primeiro encontro erótico entre os dois: Georges  tem inscrições corporais voluntariamente tatuadas em seu ombro, Carla traz nas costas marcas da guerra., e já nesta cena o “amor erótico” é ´barrado pela experiência que atravessa as carnes. Prova dos nove para um “amor” que nem sempre “tudo suporta, tudo crê, tudo aceita”… Geo conhece bem o lugar dos subalternos, seus amigos, sua família, seu bairro, seu trabalho não acena para outro lugar, mas tudo isto num país cuja preocupação maior era diminuir o numero de fumantes! Carla é bela e fascinante, vem de um desconhecido continente, um grande Outro, de quem Geo nem sequer tinha notícias antes de esbarrar em Carla. É ele, enfim, quem desiste de fato do projeto de um “ a dois” e retorna…. Não há protestos, não há milagres: cada um tem seu projeto, cada qual sabe seu definitivo lugar. Valores, projetos, químicas…
 
Será possível o “diálogo” verdadeiro, o convívio intercultural, intercontinental, internacional? É possível “vivermos juntos”, terceiro mundo, primeiro, quarto,… quantos mundos cabem neste mundo, enfim? Não há milagre não há Pasárgada, não há salvação – “tudo que é sólido desmancha ar, e  homens (e  mulheres) são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida ,sua relação com os outros”. Até aqui, nada de romantismo.
 
Para Ken Loach, talvez a resposta não seja sempre e infindavelmente “ não” (veja-se ” Apenas um Beijo”), mas parece que; para ele, também, o sonho do amor romântico, do “viver juntos” em diálogo e troca permanente, é daquelas preciosidades, difíceis de conquistar e que requerem trabalho permanente (revolução permanente) para seguirem vibrando.
Mas ainda há muito mais neste filmes, focadas na dimensão macro-política. Há muito mais, também, recorrências na sua vasta obra, com mais de 40 filmes, sem falar nos documentários, pouco conhecidos entre nós.Ceb lembrar que Loach é um dos cineastas que compõe o mosaico de filmes  “11 de setembro”: ao tratar da queda das Torres Gêmeas, rememora o Outro 11 de setembro, 1973, Chile, ditadura militar, assassinato de mais um projeto de autonomia nacional. América Latina e Terceiro Mundo são, mesmo, centrais nas preocupações deste diretor. E que a escolha do atores não é aleatória: em Canção para Carla vemos Robert Carlyle, que atuou em O padre e Ou tudo ou nada, e ainda o “pai de Billy Elliot, aquele sindicalista amargurado pela dureza da vida operária, entre outros atores engajados nesta filmografia inglesa de inspiração “neo-marxista”.E claro, atores nicaragüenses, mexicanos, espanhóis, paquistaneses, ocupando papéis centrais e coadjuvantes e  falando em suas próprias línguas.
 
Além disso, outros “outros” que também são colocados em cena nos filmes de Loach(ou melhor, outrAs): são mulheres: elas sempre estão em cena, e não são personagens quaisquer. Ocupam posições importantes, são protagonistas e/ou fortes coadjuvantes, e não faltam diálogos densos que tratem da suas experiências de mulheres, trabalhadoras,companheiras: testemunhos não exatamente incomuns de violência e violação, penúria e fardo, de lutas e de resistências. Lembremos o dilacerante diálogo entre Rosa e Maya, em Pão e Rosas, quando esta fica sabendo das razões de seu “egoísmo”, ou de Blanca, quando se revolta – mas sem desertar – com o comando central de seu partido, designando as mulheres para tarefas “femininas” do cuidado com os “combatentes”.Curar feridas, cozinhar comidas, preparar as camas. Lembremos da velha senhora catalã, que, em meio ao fogo cruzado entre stalinistas e trotskistas, pergunta a eles porque não deixam de lutar entre irmãos e vão combater os fascistas, os verdadeiros inimigos. Mulheres, nós o sabemos, estiveram e estarão presentes nos processos revolucionários de qualquer nível e em qualquer lugar.
 
 Os filmes de Loach parecem sempre nos convocar, ainda e sempre, a pensar sobre política, utopias, revoluções, relações…sem romantizá-las e idealizá-las( assim como não romantiza as relações amorosas) mas sem desistir de buscar uma “nova suavidade”, e, quizás, uma nova sociedade . Não é porque “A” revolução se revelou muito mais difícil do que supunham nossas “vãs” filosofias, que devemos deixar de buscá-las. Utopias- políticas e amorosas – servem para isso, para seguir caminhando, não foi isso que disse Galeano?       

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