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Uma análise materialista do racismo

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Por IELA em 28 de junho de 2016

Uma análise materialista do racismo

O IELA oferece à comunidade um importante debate sobre racismo, o Estado e o Direito, com a presença do professor Silvio Luiz de Almeida, Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ele atua como professor de Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do Direito e Ciência Política da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e de Filosofia do Direito e Introdução ao Estudo do Direito da Universidade São Judas Tadeu (SP). É advogado e presidente do Instituto Luiz Gama (SP) e tem uma caminhada larga no debate sobre o racismo.
O Instituto Luiz Gama (ILG), o qual dirige,  é uma associação civil sem fins lucrativos formada por um grupo de juristas, acadêmicos e militantes dos movimentos sociais que atua na defesa das causas populares, com ênfase nas questões sobre os negros, as minorias e os direitos humanos.
Silvio Luiz profere a conferência “Estado, Direito e uma análise materialista do racismo”. Será no dia 30 de junho, quinta-feira, às 14h, no Auditório do CSE.
A seguir uma texto de Silvio Luiz de Almeida sobre o tema:

Professor Silvio Luiz de Almeida

O ACESSO À UNIVERSIDADE E A EMANCIPAÇÃO DOS AFROBRASILEIROS. Silvio Luiz de Almeida
Ter o nome de um familiar ou amigo na lista de aprovados do vestibular é um momento especial na vida de qualquer família brasileira. Esta alegria é ainda maior quando a universidade é pública, visto que no Brasil a universidade pública é tida como de maior qualidade e, por este motivo, a mais disputada entre os candidatos. Passar no vestibular, ainda mais no de uma universidade pública, tem o simbolismo de um rito de passagem, como se só agora depois da aprovação, o novel universitário estivesse pronto para exercer sua autonomia. Nasce a perspectiva de ascensão social e de um possível lugar ao sol no mercado de trabalho.   Nas famílias negras a situação ganha contornos mais expressivos. A discriminação de que os negros deste país historicamente são vítimas, produziu tamanha distorção social que é possível afirmar que a universidade brasileira é eminentemente branca, principalmente a pública, em que, paradoxalmente, estudam os mais ricos que, não por acaso, também são brancos.  Um simples olhar para a realidade nos revela a seguinte situação: no ensino médio, os mais ricos estudam nas escolas particulares e que oferecem as melhores condições. Já os mais pobres fazem o ensino médio na escola pública, que geralmente está caindo aos pedaços, com professores desmotivados e sem os equipamentos mínimos. Mas quando a questão é a universidade, inacreditavelmente, os ricos preferem ir para as escolas públicas e gratuitas, que recebem grande investimento governamental e em que o ensino, a pesquisa e a extensão têm maior qualidade. E os mais pobres? Vão para as universidades e faculdades privadas e pagas, em que o ensino, salvo raras e conhecidas exceções, é precário e onde praticamente não se tem pesquisa e extensão. E o pior de tudo é que tanto o aluno rico que fez o ensino médio em escola privada e boa, quanto o aluno pobre que estudou na escola pública e ruim, fazem o mesmo vestibular para entrar na universidade pública, um vestibular para o qual o aluno rico da escola privada é preparado, desde o primeiro dia de aula. No final das contas a universidade gratuita, que é paga principalmente pelos mais pobres (lembremos que os tributos que sustentam o Estado incidem de forma mais sensível sobre eles), é majoritariamente freqüentada pelos mais ricos.      Com isto se quer afirmar que proporcionalmente à participação dos negros na composição étnico-racial da sociedade brasileira, o número de negros universitários é praticamente irrelevante. Segundo a “Síntese de indicadores sociais” do ano de 2007, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1997, apenas 9,6% dos brancos e 2,2% negros, de 25 anos ou mais, tinham concluído a universidade. Em 2007, esses percentuais eram de 13,4% e 4%, respectivamente. Ainda consoante a pesquisa, no ano de 2007 a taxa de freqüência em curso universitário para estudantes entre 18 e 25 anos de idade na população branca (19,4%) era quase o triplo da registrada na negra (6,8%). Este déficit de escolaridade ajuda a compreender porque a diferença de renda entre brancos e negros chega até 50% a favor dos brancos. De tal sorte que não é difícil inferir que para as famílias negras do Brasil a entrada de um dos seus na universidade representa não só a realização do sonho de mobilidade social, mas também a vitória contra uma desigualdade historicamente construída. Afinal, o negro universitário é aquele que superou a sina e fugiu da ponta mais robusta e perversa das estatísticas; a ponta em que estão alocados aqueles que não ingressaram no ensino superior, e a quem estão reservados os trabalhos precários e, conseqüentemente, os mais baixos salários.   Mas além do orgulho e do sentimento de identidade, é necessária uma maior reflexão sobre o significado da entrada do afro-brasileiro no ensino superior. O problema maior repousa no fato de que muito se pensa na inclusão do negro na estrutura universitária, mas pouco se reflete acerca da própria estrutura da qual se quer participar. Não se pode perder de vista o fato de que a estrutura do ensino superior é apenas parte da mesma estrutura social que produz a desigualdade e a discriminação que se volta contra os afro-brasileiros. Ou seja, sem a devida reflexão crítica, o esforço para acessar ao ensino superior pode transformar-se numa frustrada tentativa de salvar o oprimido oferecendo-lhe mais opressão, o que seria o mesmo que oferecer a alguém que reclama de falta de ar um saco plástico para envolver a cabeça.  Cabe considerar que o “ser negro” é muito mais do que a cor da pele. Em primeiro lugar, “ser” exprime uma condição existencial. E existir implica em estar no mundo com os outros. “Ser”, portanto, é situação e relação. “Ser negro” ou “ser branco” é pertencer a uma imensa rede experiências cujos significados só se apresentam mediante a análise da situação concreta e das relações histórico-sociais que formam este “ser”. O modo de ser do homem ou mulher negros se reflete, antes de tudo, em uma ligação específica com o mundo e com os outros, uma relação cuja compreensão não está na análise biológica ou meramente simbólica, vez que o ser humano é ser social.  Assim, a diferença entre um branco e um negro não pode jamais ser explicada pela biologia, mas somente pela análise social. A vida histórico-social construiu tais diferenças. Um negro é um negro porque é tratado como negro, enquanto um branco é um branco porque é tratado como branco. Ao “ser negro” está associada uma rede de símbolos e valores que ao ser branco não aparecem. Isto se explica pelo fato de que ser branco é “normal”, ou seja, à rede simbólica e valorativa dos brancos é a “norma” (daí o “normal”), é a regra. A dos negros é a exceção, é o exótico, o que é “anormal” (fora da norma). “Branco” não se refere apenas à cor da pele, mas a todo um conjunto de atitudes e de privilégios políticos e econômicos que nossa sociedade atribui aos que possuem um fenótipo europeizado. A universidade não está no universo das relações que socialmente foram reservadas aos negros. Ela pertence a uma estrutura de mundo projetada para a exclusão do negro. Neste ponto, é emblemático o fato da universidade brasileira ter sido declaradamente criada para formar as “elites” que governariam este país. A emancipação das minorias através do ensino jamais foi um projeto do Estado brasileiro, que entre outras coisas, sempre zelou pela ausência da questão racial no debates educacionais. Os cursos universitários de direito no Brasil, por exemplo, foram inaugurados sob a égide de um regime escravocrata, o que significa que os “conteúdos” das disciplinas ensinadas aos alunos tentavam equilibrar um discurso liberal em defesa dos direitos fundamentais do homem e, ao mesmo tempo, a legitimação de uma realidade jurídica que tratava os negros como “coisas”. Daí não ser incomum que seja imposto ao universitário negro o abandono de sua identidade histórica e o rompimento com os laços de solidariedade com seus semelhantes. O “ser negro”, enquanto produto da história, é levado a emular o “ser branco” despindo-se de seus referenciais simbólicos e alienando-se de sua condição existencial, de seu ser-no-mundo, de sua situação política. Este processo se dá desde o ambiente acadêmico até o conteúdo das disciplinas (que muitas vezes, mesmo nos cursos de humanas, “apagam” a questão racial de suas respectivas abordagens). Ao adentrar nas estruturas que possibilitam a “ascensão social”, o negro muitas vezes passa a servir à causa da opressão, mas sem nunca deixar de ser oprimido.   Pede-se ao negro que se torne branco. Subjugado pelas forças de uma estrutura social racista, o negro tende a assumir o papel do opressor, negando sua condição existencial, que é histórica, e que por ser histórica, é essencialmente política. Torna-se uma versão trágica daquele personagem do cinema americano do início do século passado, em que os atores brancos pintavam o rosto de negro porque os negros não podiam atuar; no caso, da universidade, quando alienado, o negro pinta o rosto de branco, conquanto sua pele permaneça negra, com tudo o que significa ter uma pele negra na sociedade em que vivemos.  Por estar imerso na realidade opressora – no caso a universidade -, não surpreende que o oprimido identifique-se com o opressor ao invés de libertar-se. Isto se verifica na fantasia da “integração” que, longe de estabelecer parâmetros para uma convivência autêntica e respeitosa, é uma forma de exigir a supressão do compromisso que o negro universitário tem para com todos os outros afrobrasileiros.    Formam-se médicos ou advogados inconscientes de sua responsabilidade racial e política, preocupados apenas em como atender nas grandes clínicas ou escritórios dos bairros ricos e de classe média alta, em que serão sempre o “médico negro” ou o “advogado negro” dos brancos e ricos. Servirão apenas como a “prova” daqueles que alegam a “justiça” e a “meritocracia” de um sistema que de justo e meritocrático nada tem.   A luta pelo acesso ao ensino superior é relevante e deve ser feita de modo sistemático pelos movimentos sociais, até para que possam ser ocupados espaços de poder do qual a universidade, como produtora de conhecimento, é exemplo. Todavia, a transformação do estruturalmente oprimido numa caricatura do opressor somente pode ser evitada se a entrada no ensino superior não for vista apenas como uma oportunidade de “mobilidade social” (que na prática significa ascender ao mundo dos sociologicamente brancos), mas como um ato político, na sua inteireza. Que a entrada no ensino superior não seja vista como um ato de superação de um indivíduo, mas o resultado de um trabalho coletivo, que resulta no compromisso social do universitário. Deve a vida universitária ser vista como esclarecimento, de tomada de consciência do aluno de sua posição no mundo e, portanto, das possibilidades de mudança.   Só assim, com a libertação do negro, poderíamos pensar no fim da oposição negro-branco, vez que tal contradição é baseada no poder que um pólo detém sobre o outro. A libertação do negro é também a libertação do branco, no sentido de que o fim da dominação que sustentava a relação, a significação social de “ser negro” e “ser branco” fica esvaziada de conteúdo.  O universitário afrobrasileiro deve saber que jamais será livre enquanto permanecer inerte face à ausência de liberdade dos seus semelhantes. A dignidade e a liberdade são conquistas que vão muito além da aprovação no vestibular e requer o envolvimento de todos que acreditam na possibilidade de um mundo justo.   REFERÊNCIAS Sobre educação e luta para que oprimidos não se tornem opressores, o mestre Paulo Freire soube como ninguém falar a respeito em seu clássico livro “Pedagogia do oprimido”: http://paulofreirefinland.org/wp-content/uploads/2007/02/pedagogia_do_oprimido.pdf As estatísticas que demonstram a situação do negro no sistema de educação superior estão na “Síntese de indicadores sociais 2008” do IBGE: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2008/indic_sociais2008.pdf Sobre a questão racial e sua vinculação com as políticas educacionais, há um interessante artigo sobre o conceito de branquidade na educação do pesquisador Michael W. Apple, da Universidade de Wiscosin nos EUA http://www.unemat.br/pesquisa/coeduc/downloads/politicas_de_direita_e_branquidade_a_presenca_ausente_da_raca_nas_reformas_educacionais.pdf
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