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A dívida não é de Haiti, é nossa: os latino-americanos

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Por IELA em 15 de janeiro de 2015

A dívida não é de Haiti, é nossa: os latino-americanos

A dívida não é de Haiti, é nossa: os latino-americanosPor Gastón Passi Livacic. Cientista Político da Universidad Central de Chile. Atualmente participando do curso EAD- Ditaduras e Revoluções na América latina do Século XX- da PUCSP
28.05.2013 – Na seguinte coluna de opinião tem por escopo diagnosticar as implicâncias da emancipação haitiana criticando os preceitos gerais das teorias clássicas dominantes em virtude da soberania nacional no palco internacional. A emancipação haitiana abriu-nos as portas para as conquistas de nossas independências como também na longa luta democrática do nosso devir histórico, não obstante, muito dos países beneficiados das ondas expansivas dos ideais esgrimidos, na revolução do ano de 1804, em gratidão têm aceitado aplicar o plano de militarização do Haiti em virtude das diretrizes impostas pela ONU – em oposição a nossa história de periferia intervida.
A história política do Haiti nos demonstra que a autonomia e a soberania dos Estados-Nações não se determinam exclusivamente pelas decisões políticas internas. Nas teorias políticas dominantes presumem-se, e ao mesmo tempo nos impõem, que os estados-nações são unidades autônomas e independentes que se projetam – favoravelmente ou negativamente – no palco internacional à luz das suas instituições.  Em estrito rigor, nas teorias dominantes existe uma omissão enorme às diferentes formas de colonização, ou seja, às formas de opressão e intromissão que operam no plano internacional e que configuram a política mundial em função dos equilíbrios de poder.
 O caso de Haiti é a fiel representação da negação da autonomia e da soberania nacional, talvez seja um dos exemplos mais emblemáticos e, sem dúvida, um dos mais extremos a nível global, mas, ao mesmo tempo, isso não isenta a preocupação que, como latino-americanos, devemos ter em relação à intromissão nos assuntos internos efetuadas pelos polos de poder mundiais nas suas diversas formas possíveis.
  O modelo teórico clássico sobre essa premissa está caduco. Na atualidade, existem diferentes olhares sistêmicos em torno à evolução das soberanias nas diferentes unidades “autônomas” que conformam as relações internacionais. Uma citação a considerar é a do sociológico britânico Anthony Giddens em relação à mudança como ponto de referência às relações de poder mundial: “na medida em que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra”- e a natureza das instituições modernas. (HALL. 2005. P, 15)
Outra alusão teórica que atinge os tópicos tratados é a do sociólogo norte-americano Emanuel Wallerstain, que através da sua proposta teórica “sistema-mundo” se inscreve também na linha crítica em oposição a que os estados-nações representem em algum sentido “sociedades” relativamente autônomas que se desenvolvem ao longo do tempo.
  Para Wallerstain, as relações de poder mundiais e históricas estão condicionadas fundamentalmente pelos seguintes efeitos: “uma acumulação incessante do capital como sua força motriz; uma divisão axial do trabalho em que há uma tensão centro-periferia de natureza tal que existe alguma forma de troca desigual”.  (WALLERSTAIN. 2006. P, 307)
Essa troca desigual é abordada através da seguinte perspectiva: “A divisão sistêmica seria ilustrada por uma economia-mundo capitalista cujos Estados centrais iriam ficar entrelaçados numa tensão econômica constante, concorrendo pelo privilégio de explorar as áreas periféricas e ao mesmo tempo ir enfraquecendo seus Estados” (WALLERSTAIN, 2006. P, 263-295)
Nesse sentido, todos os países periféricos ou semi-periféricos “seguindo a linha argumentativa de Wallerstain” são explorados de algum modo, porém, é interessante se questionar o porquê o processo emancipatório do Haiti foi castigado com tanta violência em comparação ao resto dos países latino-americanos.
    Para os países da América Latina, da colonização hispânica, as invasões napoleônicas à Espanha com a consequente prisão do rei Fernando VII proporcionaram o cenário político para as primeiras juntas nacionais de governo.
Nomeando e exemplificado alguns dos países e suas primeiras juntas de governo; México em 1808, Chile 1810 e Argentina 1810.  As consequências correlacionadas daquilo foram os processos de independência; México 1816, Argentina 1816 e o Chile 1818 continuando em similitude aos exemplos colocados.
Para tanto, o caso do Haiti, pelo fato de ter sido colônia francesa contagiou-se das ondas expansivas da liberdade, fraternidade e igualdade da Revolução Francesa, desse modo, explica-se o porquê foi o primeiro país na América Latina em se proclamar independente, no ano de 1804.
A grande interrogante é por que esse grau de crueldade para com a ex-colônia francesa e não da mesma forma para com as colônias espanholas? A linha argumentativa versada não isenta os demais países da América Latina do processo de violência e tensão que se configuraram em torno do período em questão, não obstante, o eixo nodal que se pretende visar remete-se às assimetrias de condições que houve entre o caso haitiano e a generalidade dos demais países latino-americanos.
Uma das teses a ter consideração é que a coroa espanhola estava em decadência há séculos, entretanto, as duas superpotências da época que vieram ocupar esse vazio de poder foram: a Inglaterra e a França. Nessa ótica era instrumental para os novos atores mundiais provocar processos de instabilidade nas zonas de influência espanhola como também no Brasil, sendo assim, a emancipação dos países provocaria uma nova forma de colonização em concomitância aos interesses desses novos atores mundiais e, portanto, ao novo balanço de poder global.
Com a queda irreversível da monarquia espanhola em solo latino-americano configurou-se um novo mapa mundial, nem por isso, o domínio das forças extra-regionais deixaram de operar na região. Os exemplos de neo-colonização abundam no novo marco mundial, em particular no caso latino-americano, os franceses no canal de panamá, os capitais ingleses explorando o salitre no norte do Chile, sul do Peru e no oeste da Bolívia (o acontecimento catalisador da Guerra do Pacífico entre os três países no ano de 1879), os capitais e interesses econômicos ingleses e sua relevância na configuração da Guerra do Paraguai ou Guerra da Triple Aliança, entre tantas das intervenções que houve no período pós- emancipação.
É correto afirmar que os dados trazidos até o momento confirmam que as teorias clássicas sobre o desenvolvimento autônomo dos países são inválidas e estão caducas. Tratou-se e tem se tratado no percorrer da história como uma forma de dominação discursiva. Porém, isso não explica o porquê das assimetrias de condições de opressão e reação em torno dos processos de emancipação que se têm levantado e delimitado na presente coluna de opinião, contudo, abre o caminho na compreensão, ou seja, trata-se de um ponto de partida para a interpretação da crueldade com que tem sido atingido Haiti na sua vida “republicana”.
Assumindo a intromissão implícita das “potências centrais” daquela época (não sendo uma antípoda do que acontece na atualidade, tanto no Haiti como em outros países do orbe) apresentam-se em formato de opressão e de resistência aos movimentos independentistas que começaram a se articular na região, fundamentado nas ondas expansivas do capitalismo em seu afã de abranger os recantos do mundo, como também da transformação dos equilíbrios de poder entre as potências centrais.
Ambos acontecimentos são processos interligados e o eixo comum que os une determinou-se das mudanças nas formas de produção capitalista, nessa senda, o sistema de mercadorias ficou obsoleto e foi violentamente trocado para as novas formas de produção industrial. Nessa perspectiva, a violência e repressão sistêmica contra o Haiti por parte do império francês se enquadra nesse marco do novo mapa político mundial. Foi imperdoável para o Haiti se transformar na primeira colônia a se descolonizar do emergente império francês.
Manifestamente a França não permitiria que a -pérola das Antilhas- como se considerava Haiti naquela época, (apelidado assim, pelo fato de ser a colônia mais rica do mundo) afasta-se do domínio imperial francês. Napoleão não admitiria perder sua relíquia colonial mais importante e como  consequência a mais lucrativa. Os números de produção em matérias prima eram surpreendentes no país contíguo da República Dominicana, pois produziam mais da metade da produção mundial de açúcar como também de café.
Sem dúvida a motivação principal das políticas contracorrente aos pressupostos econômicos daquela época eram essenciais para manter o status quo, porém, tais represálias vieram acompanhadas de métodos para controlar os efeitos colaterais das ideias propugnadas na Revolução Francesa, em particular, do derivado que poderia representar a revolução haitiana. Na perspectiva da teoria do Sistema-Mundo, foi uma abordagem para conter a mudança mundial num eixo instrumental às relações de poder econômicas e políticas do período.
Contudo a contenção da revolução haitiana, contenção em termos de represálias ou medidas contra mudança, não permitiria que à luz dos postulados da revolução francesa, o Haiti permitisse pôr fim da escravidão naquele país. O fim da escravidão era um dos pontos transcendentais de Toussaint Louverture e de Dessalines, líderes e ativistas da ousadia Haitiana. Os Estados Unidos e a França deviam evitá-lo a qualquer custo. Dessa maneira, planejou-se e projetou-se uma política contraofensiva e exemplificadora para evitar novas tentativas dessa índole.
A historiografia refuta e omite sobre Aliança franco-norteamericana e sua expedição no mesmo caso de Haiti.  Os polos industrializados e as sociedades baseadas nas suas economias em regimes escravistas temiam que as ondas expansivas da liberdade colocassem o “fim da escravidão”, como tinha se proclamado no Haiti e, ao mesmo tempo, que esses postulados se espalhassem pela face da terra.
Os Estados Unidos e a França impingiram um embargo econômico ao Haiti. As sanções norte-americanas só foram suspensas em 1863, quando o país deixou de ser escravista. A França, usando seu poderio militar, forçou o Haiti a pagar indenizações pelos escravos libertos de aproximadamente 150 milhões de francos − para se ter uma ideia comparativa do montante indenizatório, em 1803, o território da Louisiana foi vendido aos Estados Unidos por 80 milhões de francos. Desse período à atualidade, o Haiti foi contraindo empréstimos financeiros, inclusive junto à França e aos EUA. Isso explica, em parte, a dívida externa atual que é de $1.248 bilhões. (MELANI. P, 1-2)
Por ser a primeira república negra, ser o primeiro país na terra a abolir o regime escravista pagou-se muito caro e paga-se até a atualidade.  Ser pioneiro e vanguardista em detrimento às relações de poder políticas, culturais e econômicas tem lhe custado uma vida de intromissões, injustiças e violações aos direitos fundamentais do povo haitiano.
A intervenção internacional e a violação à soberania haitiana tem sido uma constante, desde a emancipação à época presente. Primeiro foi França, por um longíssimo tempo os Estados Unidos e, desde o ano de 2004 ao dia de hoje, no plano internacional de estabilização da ONU no Haiti agem militarmente em conformidade à ajuda humanitária através das milícias e a coerção militar dos exércitos dos seguintes países da América Latina: Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Paraguai, Peru, Guatemala, O Salvador todos eles liderados pelo Brasil. Ajuda Humanitária?
    Administrações que se catalogam de progressistas e revolucionárias que se jactam de serem emancipatórias das classes militares no poder, que se refratam de serem artífices das transições democráticas nos seus países parecem algo pretensiosa, todavia estão intervindo militarmente no Haiti. É claro, somente protegem seus interesses partidários, mas não suas supostas convicções de vida nem também seus supostos ideais democráticos. O apoio à MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) manifestamente é estar contra ao respeito à democracia e à soberania nacional de um povo latino-americano.
Devemos rememorar os nomes como os de  Toussaint Louverture, de Dessalines e outros tantos que foram partícipes da independência haitiana como também de todo o povo daquele país, porquanto são parte importante da nossa história, parte importante da nossa liberdade. Como latino-americanos somos parte do sofrimento, violência, opressão de gerações e gerações de haitianos que à luz de projetar um futuro melhor tem entrado em um túnel sem saída.
Sem um Haiti as primeiras juntas Nacionais dos diversos países teriam culminado nas proclamações dos gritos independentista? Talvez e provavelmente sim, porém, talvez não com a rapidez com que aconteceu. O último postulado é impossível respondê-lo, entretanto entraríamos num terreno de especulação, mas, evidentemente o Haiti guiou nossos caminhos republicanos aglutinando-nos em sentimentos anticolonialistas, ao mesmo tempo, proclamando a liberdade e a longa luta democrática com os caminhos a seguirmos.
É inconcebível que um país ainda tenha dívidas da época colonial, ou seja, há mais de dois séculos, contudo, só por buscar um futuro melhor e por interferir na expansão capitalista de alguns particulares e da expansão econômica do império francês. O valente povo merece nosso respeito e nossa verdadeira ajuda, não a militarização dos países irmãos contagiados das ideias políticas de liberdade e fraternidade.
Na verdade, os únicos devedores somos nós, os latino-americanos, pois as potências centrais só procuram a lei do máximo benefício, ou seja, um ponto de inflexão para com Haiti parte do que nós como latino-americanos possamos fazer. Em última instância, como ações como essas estamos legitimando uma história de intervenções unilaterais, legitimando uma história de crueldade, legitimando uma história de imperialismo. Ainda assim, devemos ouvir discursos partidários míopes em defesa das políticas assistencialistas e populistas no imaginário dos partidários dos  chamados governos progressistas.
 À luz do exposto, a política vai além das intervenções internas, as verdadeiras relações de poder per se acontecem no palco internacional e não defendendo projetos assistencialistas, progressista ou autoproclamados como revolucionários.  Referências bibliográficas
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. DP&A editora. Rio de Janeiro, Brasil, 2005. MELANI, Ricardo. Super-exploração e destruição das pérolas das Antilhas. PDF. WALLERSTAIN, Immanuel. Impensar a Ciência Social. Os limites dos paradigmas do século XIX.

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