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As galinhas e o capital

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Por IELA em 04 de janeiro de 2018

As galinhas e o capital

Hoje eu fui ao supermercado e na seção de ovos eu vi essa embalagem. Os ovos que, até então para mim, eram divididos entre “brancos” e “vermelhos”, “comuns” e “caipiras”, agora são divididos também entre “galinhas livres” e – como é de se supor mas ninguém diz – “galinhas não-livres”. Ou galinhas presas, em cárcere privado.
A embalagem ainda dizia que as aves das quais vieram esses ovos foram criadas com “todo cuidado necessário”, de forma respeitosa para que elas pudessem “expressar seu comportamento natural como ciscar, empoleirar e bater as asas”.
É verdade que a indústria alimentícia não é do tipo que se preocupa muito com os animais. Todo mundo conhece os maus tratos.
Essa empresa, me parece, tentou inovar e buscar um novo posicionamento de mercado. E esse curioso posicionamento se baseia, justamente, na livre expressão das galinhas, por assim dizer.
Eu imagino, então, que se trata de uma linha de ovos destinada para aquela parcela do público consumidor que se preocupa com a saúde e o bem-estar dos animais, mas que não quer deixar de consumir ovos.
Galinhas com liberdade de expressão garantida e ovos produzidos de maneira politicamente correta. Isso tudo sintetizado em…. um produto na prateleira do mercado.
Genial. É mais que um produto, é um estado de consciência tranquila. Perfeitamente ao seu alcance, ali, na prateleira, por apenas alguns reais. O capitalismo é mesmo muito doido…
Como isso é possível? É simples: desde que não se questione a propriedade privada dos meios, vale tudo.
Certa embaixadora da ONU uma vez disse que o feminismo deveria ser mais que política e ser também empreendimento e gerar renda. O mesmo vale com o pink-money, com cantores pop criticando o racismo, a LGBT-fobia. As princesas da Disney deixam de serem brancas e europeias e também deixam de precisar dos príncipes e um longo etc.
Não estou questionando essas coisas. Elas são importantes e fazem parte de uma “revolução cultural” pela qual estamos passando. Há uma explosão de pautas identitárias e há cada vez menos espaços para as opressões. A síntese disso talvez seja o homem-branco-hétero-classe-média reclamando nas redes sociais: “o mundo está chato”. Essa é uma grande vitória. O avanço das pautas identitárias representa, principalmente do ponto de vista subjetivo, uma grande vitória para o indivíduo oprimido.
Agora, é fato também, que o capitalismo pode tolerar e incorporar – e isso é importante – boa parte dessas pautas. Marx escreveu em “A miséria da filosofia” que estamos em uma época em que tudo se corrompe, ou “para nos expressarmos em termos de economia política, o tempo em que cada coisa, moral ou física, transformada em valor de troca, é levada ao mercado para ser apreciada em seu mais justo valor”.
Quer dizer, tudo vira mercadoria para ser comercializada, seja essa coisa material ou subjetiva, como a tal liberdade de expressão das galinhas. Provavelmente esse produtor está mais preocupado em agregar valor e posicionar seu produto no mercado do que com a expressão das galinhas. Talvez ele até acredite nisso que ele vende, mas no fundo acaba por transformar sua crença em mais um produto de mercado. E vamos ser sinceros, em termos de “libertação animal”, as galinhas continuam sendo exploradas. Não é a gaiola que define o estado da liberdade.
Esse é o problema dessas teses de “empoderamento pelo consumo” e também de “capitalismo humano”. Elas têm um limite que é o de que o máximo que elas podem nos oferecer é mais um produto. O que pode ser suficiente para muita gente. Mas agora, se você estiver excluído desse ciclo de consumo… bom, você nem consome e nem tem essa sua “liberdade”. E sob o capitalismo as estatísticas são evidente. A maior parte da população não ultrapassa o subconsumo. A marginalização é política, de direitos e também econômica. O que significa que o tal “empoderamento pelo consumo” é a libertação de uma minoria. Não tem nada a oferecer à grande massa.
A dificuldade é, portanto, como conciliar o combate às opressões, as conquistas identitárias, à superação do capital. E isso implica no questionamento da propriedade. Caso contrário, logo logo a “livre expressão” vira produto na prateleira.
Mas enfim. Saindo da loja, me deparei com mais uma cena. As faxineiras terceirizadas do mercado numa pequena fila próxima à saída. Uma a uma, elas abriam o saco de lixo recolhido para mostrar a um segurança que não estavam furtando nada.
Na mesma loja em que era possível comprar “ovos de galinhas livres”, as faxineiras são tratadas como potenciais criminosas. Vai ver porque o salário de terceirizada não dá para comprar a dignidade… Mas tenho certeza de que se o respeito ao trabalhador agregasse valor às mercadorias, seria possível ler em alguma faixa no mercado: “Trabalhadores livres de gaiolas”, e os defensores do “capitalismo humano” aplaudiriam de pé.
 
 

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