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“Centelha” é uma janela desde o mundo

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Por IELA em 14 de julho de 2022

“Centelha”  é uma janela desde o mundo

Cena do filme “Centellha”

O texto a seguir fala sobre o filme “Centelha” [1] de Renato Vallone [2], um dos mais importantes montadores do cinema brasileiro atual, que será exibido no KINOFORUM – FESTIVAL INTERNACIONAL DE CURTAS METRAGENS DE SÃO PAULO, ENTRE OS DIAS 18 e 28 de agosto/2022. 
Como se deve chegar até a um filme quando se tem no coldre um pente de palavras? Vestindo nos pés um par de pantufas que acobertem os ruídos exóticos ao Set? Usar de luvas como quem ensaia um gesto neutro que evite o esgarce do texto fílmico? Sobremaneira, evitar o borrão de tinta que faça sacolejar tripés, escaninhos de classificação, gêneros como depósitos ao conforme da compreensão rasteira, será mesmo que se deve colocar aí aquele que chega com um torrencial de palavras-imagens até às imagens-palavras em movimenço? Haveria quem dissesse (para o perfeito sono aquietado de uma crítica de eunucos…) que apenas há o que o filme enseja, e para lá do filme já nada teria valia, certificação, legitimidade protocolar. Dar o dedo do meio a este chapa branquismo sobretudo porque desconfiamos que Renato Vallone não pense assim, que o cinema de Vallone não se dirija a homens de seriedade germânica enrustida na cara e no armarinho de gestos compassados. Seríamos pretensiosos em afirmar com todas as letras que Centelha trespassa o quadro no que se deposita largo e fundo sobre a corcunda de um mundo aleijão e alienante? Que Centelha é a forma com que Vallone estica os carretéis da audição para fazer (nos) gritar a sua personagem social? 
Qual será o nome a que atende esta personagem? Fazemos consulta rápida a Renato Vallone. Queremos uma pista mesmo que falsa. Quase que propomos a ele um jogo de sete erros. É que os nomes da personagem lhes arrancamos dos seringais de um Brasil profundo, das veias e nódulos de Nuetra América – porque os nomes, todos os nomes, uma legião de errantes, passantes, retirantes sacoleja quente/empapado/carcomido nos rodopios da volante em barcaças, cabriolés, carros-de-boi, pés de chinelo, carroças, trens cargueiros. São tantos os nomes que qualquer que seja a pista deixada por Vallone não abarcaria a totalidade do que falta. Porque é da falta o de que se trata. Porque é da falta a condição primeira e estrutural. E porque – sabemos – um filme, todo filme que se preze em seu dever histórico de relatar, de destecer a tessitura-mundo, é um feixe de sínteses. Renato Vallone se mostra atento – os olhos espelhados na personagem que parece em miração. Personagem que sussurra, que sibila, que soluça palavras e garatujas. Personagem encurvada na que as costas é plano de pouso em carga lenta – um tempo/tampo de imagem que se arrasta/alastra na duração do tampo/tempo daquela vida dilacerada. Centelha é rastilho de pólvora no que basta que se lhe caia uma gota de querosene que será o mundo o que virá a tona, a entornar o copo. Porque um filme tantas vezes é uma gota de água. 
Centelha nos apresenta Severino, nos apresenta Corisco, Moleque Ricardo, Vaqueiro Manoel, Raimunda, Maria dos Anjos, Adelina, Maura Lopes Cançado, Fernando Diniz, Juan Pérez, José Nadies, Viramundo; o homem seco, o feixe de ossos e de funções físicas;  o homem encharcado, as veias estufadas como se por meio delas os anos de pesadume se postassem em alto relevo; o homem encalacrado, sem terra, sem distintivo, sem gado, sem calçado, sem colchão para lançar sobre a cama de pedra, sobre o estrado que grita nas caladas de uma noite sem curva porque os calos lhe doem nas costas; o homem gabiru, homem carangueijo, dos manguezais, dos seringais, dos sertões de chão e pés rachados, das gentes do eito de barriga de verme porque melhor que seja de verme o que lhes preenche as vísceras do que fosse de ar o que lhes causa um eco-de-intestino; homem de Centelha, cercado de guerra, cercado de morte, cercado de arame enfarpado, cercado de coronéis e de generais e de genocidas – que tudo somado dá neste nove foras zero; homem de Vallone a dar com os córneos nas paredes de sal e do cais do Valongo, cercado de fome e de nadas povoados de niilismo ou de redenção. 
Renato Vallone nos oferece um retrato em preto e branco de Cléber – mas Cléber são tantos e são ninguéns. Cléber está no mapa da fome e não está no mapa cartográfico. Mérito para Centelha que faz ver, que lança fagulhas rasteiras de verdades sensíveis que toca e toca e toca e repica e repica e escarneia porque Cléber é aquele que se esconde e se mostra e se lhe esconde e se lhe apaga. Centelha é peça de contrainformação, um caldo de cultura a por lenha em direção a uma guerra necessária e urgente. Que transvalora e repovoa.

Cena do filme “Centelha”

Notas 
1. Centelha – Nos termos de Renato Vallone, o filme CENTELHA é  o delírio da fome de um homem que incorpora, no decorrer de um ritual ancestral, os demônios de um país doente.
2. Renato Vallone iniciou sua relação com o cinema em 2006. Nascido e criado na zona periférica do Rio de Janeiro, foi considerado, em 2016, um dos mais inventivos montadores do cinema brasileiro com diversos prêmios. Em 2016, ganhou o prêmio Olho de Ouro, em Cannes, com o documentário “Cinema Novo”, junto a Eryk Rocha. Tem editado diversos longametragens de gêneros distintos, entre eles, Sertânia, de Geraldo Sarno.

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