Início|Sem categoria|Um maio latino-americano

Um maio latino-americano

-

Por IELA em 09 de junho de 2008

 
Um maio latino-americano
 
As rebeliões não foram só na França
 
Por elaine tavares – jornalista
 
O mês de maio trouxe com ele a lembrança de um outro maio, o de 68, quando em função de uma série de acontecimentos envolvendo as gentes em rebelião, mudou a temperatura do mundo. O epicentro lembrado em prosa e verso foi na França, quando uma manifestação estudantil vinda da periferia de Paris acabou rechaçada pela polícia e fez o país inteiro se levantar em barricadas. Das universidades para as fábricas, das fábricas para a rua e a França, que dormia em tranqüilo berço, sacudiu num frenesi. Os jovens rechaçavam os partidos de esquerda mumificados e inertes, confrontavam um governo fechado à participação e renegavam os pensadores pessimistas que não viam possibilidades de transformação naquele momento do capitalismo. Assim, de um repúdio a reforma Fouchet, que mudava a lógica universitária, as manifestações estudantis lograram aquecer o coração dos trabalhadores e, junto com eles, questionar todo um jeito de organizar a vida. A Europa, que flanava num vazio, se encheu de vida e sacudiu o mundo.
 
Mas, a explosão francesa não ficou sozinha do plano mundial. Em outros países europeus como Espanha e Itália, ou vários outros cantos do planeta a vida pulsava sedenta de rebeldia. Cada lugar com seus motivos, mas todos aparentemente ligados numa mesma onda de vontade de mudar. Daí toda essa magia que ainda emana desta data histórica. Diz o sociólogo estadunidense Immanuel Walllerstein que aqueles dias colocaram por terra os dogmas da modernidade tais como o progresso, a democracia representativa, o estado e a ciência e, embora não tenha durado mais do que dois anos, o movimento francês deixou marcas profundas na construção destes tempos que vivemos.
 
Acreditamos que a idéia do início do fim da modernidade pode ser um bom argumento para explicar a realidade européia, visto que, lá, muitos destes pressupostos chegaram a vingar. Mas, certamente, seriam necessários outros olhares para entender a descolonização africana, os movimentos de libertação em alguns países árabes, o conflito com Israel e as rebeliões e lutas armadas na América Latina. Nestes espaços geográficos, a proposta de modernidade iniciada com as grandes navegações e a consolidação da Europa como centro de um sistema-mundo sempre apareceu como farsa. Basta ver que ela semeou não o progresso, mas a destruição, não a democracia, mas as ditaduras, não um estado soberano, mas um estado dependente, e tampouco conseguiu lograr uma ciência própria, senão uma repetição do mesmo-europeu, quando muito a inovação.
 
Não é sem razão que os motivos que levaram os africanos, árabes e latino-americanos às ruas e à luta armada tenham sido bem diferentes dos que provocaram os estudantes e trabalhadores franceses. Se na França havia um organizado propósito de consolidar os valores do capitalismo de mercado, com universidades tecnológicas e o império da mercadoria, na periferia do sistema as gentes se debatiam em sociedade quase feudais nas quais o capitalismo aparecia apenas como forma de opressão, miséria e dependência.
 
As lutas populares por libertação
 
Na América Latina as lutas populares revigoraram nos anos 50 e, nelas, a intervenção estadunidense foi decisiva. A Guatemala, em 1952, iniciava seu processo de reforma agrária, nacionalizando inclusive a United Fruit, voraz e predadora empresa dos Estados Unidos. Foi o suficiente para que as tropas dos EUA invadissem o país em 1954, liquidando com possibilidades de outras formas de organização da vida que não a imposta pelo império emergente. Esta invasão, inclusive, foi fermento para o processo de libertação de Cuba, que vai culminar em 1958.
 
Também em 1958 o Brasil entra na rota das lutas populares com a criação das ligas camponesas que vão revolver os campos e propor a reforma agrária. Esse movimento só vai ser estrangulado em 64 com o golpe militar. Mesmo os Estados Unidos não ficam imunes aos ventos da mudança e no início dos anos 60 enfrenta a luta dos negros pelo fim da discriminação racial. Movimentos como os do pacifista Martin Luther King levam milhões às ruas. Malcon X, a outra vertente, mobiliza outros tantos, e o nascimento do Partido dos Panteras Negras, de tendência marxista, em 1966, exacerba ainda muito mais este filão. 
 
O ano de 1964 marcará outra série de acontecimentos que desembocam em lutas sociais. A República Dominicana, que ensaiava seus bamboleantes passos em direção a um país livre, depois da cruel ditadura de Rafael Trujillo, também recebe a intervenção dos “marines”. Eleito pelo partido revolucionário, Juan Bosch, um professor de esquerda, não ficou sete meses no cargo. Os Estados Unidos não suportariam uma nova Cuba.

O Brasil também sofreria a intervenção através do apoio dado ao golpe militar que depôs João Goulart, também articulado no campo da esquerda.  Na distante Palestina nasce a OLP, em resposta ao crescente poderio de Israel, estado criado com o aval dos estadunidenses, dentro da velha política intervencionista, nas terras antes ocupadas pelos palestinos. E é ainda sob o seu manto que Israel leva às últimas conseqüências seus desejos de poder, estreitando ainda mais as fronteiras da Palestina em 1967, na famosa guerra dos seis dias. Desde então, os conflitos com os palestinos só tem se acirrado, com cada dia mais uma lista de maldades sendo praticada pelo estado sionista. Não bastasse tudo isso, os Estados Unidos iniciam uma guerra contra o Vietnã, estendendo seus tentáculos para a Ásia.
 
Já na África, o processo de descolonização seguiu numa outra vertente. Gana se independizou em 1957, pendendo para o bloco soviético. Em 1960 outras 16 nações lograram a independência sem que houvesse maior interferência por parte dos EUA. E em 1962 foi a vez da Argélia, também assumindo um viés socialista. A Europa tremeu, pois neste roldão foram-se espaços importantes de dominação, mas estava enfraquecida depois da guerra. Além disso, o tratado de Ialta, fechado por EUA e URSS, equilibrava os pontos de intervenção de cada grande potência. De qualquer forma, o fim do colonialismo no grande continente africano foi um momento importante na história e mexeu com as estruturas da política européia, dando seus respingos na luta que floresceria em 68.
 
O 68
 
Então, quando na França os estudantes levantaram barricadas contra o sistema capitalista, os países da periferia já vinham trilhando longa caminhada de lutas pontuais. Mas, ninguém nega, os protestos em paris colocaram mais lenha na fogueira. No Brasil, os jovens estudantes iniciaram seus levantes bem antes do maio. Foi em março, pouco depois da morte de Edson Luis numa das tantas passeatas que faziam contra a ditadura militar. E, por longo tempo, foi nas universidades que se formaram os grupos de resistência que atuariam, inclusive, na luta armada. Não havia vazios naquelas mentes, e boa parte dos que estavam envolvidos com os protestos, fazia política de forma consciente. Havia um regime ditatorial para derrubar.
 
Os estudantes mexicanos foram os que pagaram o maior preço. Lutando por melhorias na universidade nacional, os estudantes da capital fizeram emergir um grande movimento envolvendo outras universidades do país. Até que, no dia 2 de outubro, pouco antes das Olimpíadas que se realizaram naquele país, o governo decidiu – a pedido dos Estados Unidos – dar um basta ao movimento. E, quando milhares de jovens marchavam pela praça central, uma ação do exército manchou de sangue a política mexicana. Naquele dia, mais de 300 pessoas – número oficial – tombaram mortas, no chamado massacre de Tlatelolco.  
 
Na Colômbia, neste mesmo ano, tomam corpo vários grupos de libertação entre eles as FARC e o ELN. Na Nicarágua e em El Salvador principiam também as articulações para lutas futuras que desembocariam nos sandinistas e na Frente Farabundo Marti. A vida na América Latina seguia se apegando a coisas essenciais como por exemplo, o próprio direito de existir. Um ano depois, em 1969, a Argentina também entraria na rota das lutas, apesar da sangrenta ditadura, quando, na cidade de Córdoba, os trabalhadores protagonizaram greves gigantescas, com total apoio popular, contra as propostas de abertura de mercado interno para multinacionais e em resposta a proibição das greves pelo governo. Aquele episódio sacudiu o país e abriu caminho para lutas mais organizadas contra a ditadura.
 
Promessas não cumpridas
 
As lutas por libertação iniciadas nos anos 50 ainda não se cumpriram nesta “nuestra América”, mas o desejo das gentes segue desperto. Os anos 70 foram duros tempos de embate com o império na América Central e chegaram a configurar alguns momentos importantes como o primeiro governo sandinista. Mas, a força da política e das armas estadunidenses lograram destruir esses sonhos. Foi necessário então um longo processo de reestruturação que só começou a se desenhar no início dos anos 80, com a organização do povo chiapaneco no sul do México.
 
A derrocada da União Soviética também tirou do eixo muita gente boa e a propaganda capitalista do fim de todas as utopias conseguiu arrebanhar muitos adeptos que se perderam na apatia. Mas, o primeiro de janeiro de 1994 inauguraria um tempo novo na luta latino-americana e que até agora segue gerando frutos. Foi quando estava para entrar em vigor o plano Nafta, que criava um bloco entre Estados Unidos e México, que um grupo denominado “zapatistas” ocupou militarmente cidades e proclamou em alto som: Ya basta! Nunca más el mundo sin nosostro. Eram os povos originários de Chiapas, que introduziam no cenário pós-moderno de fim de tudo, a atual luta contra o neoliberalismo.
 
Quatro anos depois um militar bolivariano, Hugo Chávez, faz sua aparição na Venezuela, falando em pátria grande e socialismo. Vai provocar outra onda de movimentos com base autóctone e libertadora. Os ideais de Bolívar de uma união das nações desta parte do continente vão se cruzar com o renascimento das idéias de Tupac Amaru e Tupac Catari, que reivindicam um lugar para o povo originário. Isso posto gera um caldo rebelde que começa a fazer história. No ano 2000, os povos originários do Equador encabeçam uma luta sem trégua contra o presidente Lúcio Gutierrez que havia sido eleito em cima de promessas que não se atrevia a cumprir. Pois o povo cobrou e defenestrou. O povo boliviano protagoniza em 2002 outra luta importante: a guerra da água, que foi uma batalha violenta das gentes de Cochabamba contra as multinacionais e o governo. Lutas que abriram caminho para outros levantes em 2003 e 2004, que acabaram expulsando do poder um presidente que falava com sotaque gringo.
 
Em 2005 outra luta que aparece com força é a revolta dos invisíveis, os imigrantes latinos, que saem às ruas nos Estados Unidos pelo direito de ficarem no país, contra as leis de imigração cada dia mais duras. Pela primeira vez esse povo, frequentemente amedrontado, mostra a cara e reivindica viver o prometido “sonho americano”, tão alardeado pelo império. Em 2006 o México volta à cena com a luta da gente de San Salvador Atenco. Um conflito que começou por conta de uma nova lei que acabava com as terras comunais, coisa considerada quase sagrada pelos mexicanos. Para a construção de um aeroporto, o governo desapropriou terras e o povo saiu às ruas. Foram reprimidos com violência policial, prisões ilegais e estupro de mulheres.
 
Também em 2006, e ainda no México, o mundo vai acompanhar a luta do povo de Oaxaca. Esta também começou de uma simples greve de professores que foi rechaçada pela polícia e encontrou acolhida entre a população. Revoltadas com todo um histórico de violência e retirada de direitos durante o governo Fox, as gentes se organizam em barricadas, tomam as ruas, as rádios, as televisões e enfrentam a repressão por seis longos meses, exigindo a saída do governador do estado. A guerra só termina quando a morte de um jovem estadunidense leva o governo a promover a tomada da cidade de forma violenta. Ainda assim, o povo logra vencer na sua reivindicação inicial e o governador deixa o cargo.
 
Agora, em 2008, as gentes de “Nuestra América”, da Pátria Grande, Abya Yala, seguem lutando para construir um esperado re-começo de vida cooperada e solidária, de riquezas repartidas, de outra forma de organizar a vida. O movimento dos povos originários segue firme na defesa dos territórios, dos recursos naturais. Lutas heróicas são travadas na Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, todas em defesa da água, contra a privatização e o tratado de livre comércio com os Estados Unidos. Na Colômbia, camponeses, indígenas e trabalhadores urbanos lutam pela conquista da soberania. No Chile os estudantes estão na rua, agora mesmo, pelo direito à uma educação pública e o povo Mapuche enfrenta bravamente as empresas estrangeiras de celulose. No Paraguai o movimento dos sem-terra cresce e reivindica. Na República Dominicana cresce o movimento por moradia. Costa Rica se levanta contra o TLC, Porto Rico insiste na luta por independência. No Uruguai, camponeses e trabalhadores enfrentam a lógica neoliberal. No Haiti, as gentes resistem a toda barbárie liderada pelo Brasil numa guerra de ocupação. No Brasil insistem os movimentos contra as barragens e pela terra. No Equador e na Bolívia a queda de braço por um sociedade socialista segue renhida. A Venezuela vai resistindo aos ataques do império. É um tempo de muita movimentação popular.
 
Mesmo na Europa, a erupção da questão migratória vai gerando focos de tensão e lutas. As gentes até ontem dominadas e destruídas estão cobrando suas faturas. O índice de migração para os países ricos é crescente e, segundo Wallerstein, em menos de 10 anos, os migrantes poderão formar a metada das populações destes países, tendo portando uma força abissal.
 
A cara do mundo, que também como casa geral agoniza, está mudando depressa. O desafio agora é fazer com que destas lutas todas possa brotar algo novo, completamente novo, que dê outra direção à humanidade. Samir Amin, no seu livro sobre o eurocentrismo apresenta a tese de que foi a periferia do mundo tributário que logrou inventar o capitalismo que se estendeu e virou um sistema-mundo. A se considerar isso, a força da periferia, então está nas mãos desta parte do mundo inventar um jeito de viver que garanta a vida do planeta e também de todas as gentes. Algumas pistas já se anunciam na recuperação de valores antigos que seguem sendo universais tais como a cooperação, a solidariedade, a auto-gestão, a distribuição da riqueza. Um legado das comunidades originárias que pode ser re-inventado e trazido à luz, não como retorno ao passado, mas como alavanca para a construção de um futuro diferente, onde caibam todos e não só alguns.
 
 

Últimas Notícias