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A América Latina na mídia italiana

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Por IELA em 12 de julho de 2013

A AMÉRICA LATINA NA MÍDIA ITALIANA
Por Charline Biolchi – estudante de Letras-Italiano, bolsista no IELA*
12.07.2013  – A América Latina é formada por países que pertencem a América do Sul, Central e do Norte. Nossa região foi colonizada, nos séculos XVI e XVII,  por Portugal e Espanha, chamados também de países ibéricos, consolidando uma cultura “latina”, advinda dos países assim considerados na Europa por causa das línguas românicas.  Uma cultura que foi imposta aos povos da América, submetidos ao extermínio e a uma conquista que ainda não acabou.  A América Latina foi também destino forçado de milhões de pessoas escravizadas, traficadas da África, e recebeu correntes migratórias de muitos países europeus e asiáticos, aumentando a sua diversidade sócio-cultural. O conceito “América Latina” originou-se no século XIX sob a influência política dos Estados Unidos e da França.
Nos dias de hoje cresce a importância da América Latina no cenário mundial, assim como se tornam visíveis  a mobilização política e a luta social no continente e Caribe. É por isso que cada vez com maior frequência os meios de comunicação dão destaque para esta parte “exótica” do mundo. No Brasil, muitos intelectuais se mantiveram, ao longo de nossa história, praticamente isolados do contexto da vida latino-americana. O pensamento eurocêntrico dominante abafava o conhecimento sobre o  pensamento crítico que amadurecia em diversas partes do continente latino-americano e do Caribe. Vários pensadores brasileiros tiveram que escrever seus livros no exílio, durante o período da ditadura militar, e algumas de suas obras nem chegaram a ser editadas em língua portuguesa. 
Esta situação gradativamente vai mudando. O próprio Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC) e a Editora Insular, de Florianópolis (Santa Catarina), inauguraram recentemente a edição   de clássicos do pensamento latino-americano: a Coleção Pátria Grande. Através desta iniciativa, já foram publicados, pela primeira vez em Português, os livros  “Subdesenvolvimento e revolução”, de Ruy Mauro Marini, e “O capitalismo dependente latino-americano”, de Vania Bambirra. Da mesma coleção, está para sair “Mais-valia ideológica”, do venezuelano Ludovico Silva. 
 Porém, mesmo com o atual interesse do país e da mídia brasileira pelas temáticas latino-americanas, ainda é reduzida, nas universidades, a reflexão sistemática sobre a realidade do continente e do Caribe. Descobre-se, no entanto, aos poucos que os brasileiros são latino-americanos. E, ainda que de forma fragmentária, a universidade nacional passa a contar com espaços de estudos sobre a realidade deste estratégico pedaço do mundo.  Na Universidade Federal de Santa Catarina, o IELA reúne  interessados no estudo e na divulgação das temáticas latino-americanas.  Com projetos em diferentes áreas, o instituto representa uma proposta de pesquisa, ensino e extensão que contribui para a compreensão das diferenças e contradições que caracterizam a vida no continente.   
 No entanto, se mesmo os que vivemos no mesmo espaço geográfico pouco nos conhecemos, o que dizer, então, de como nos veem outras nações? A América Latina, que foi colonizada de forma violenta,  e teve  muitos de  seus povos originários exterminados,   foi e continua sendo objeto de um colonialismo sem fronteiras nem limites. Mas como ela é vista, na atualidade, por povos de outros continentes?
É nesta direção que foi pensado um projeto de observação da mídia na Itália, país europeu que destinou levas de imigrantes para terras americanas.    A partir de pistas deixadas em alguns meios de comunicação italianos, procurou-se identificar que informações são divulgadas sobre a América Latina ao povo italiano que, na condição de colonos explorados, também emigrou, em número significativo, para o Brasil e outros países das Américas.
A iniciativa deste trabalho desenvolvido no IELA foi de buscar  evidências para  entender como é divulgada, desde fora (neste caso na Itália), a vida no continente latino-americano, seus povos, contradições, conflitos e dilemas humanos, intelectuais e éticos.  A partir da leitura de notícias, procurou-se   identificar que informações  sobre a realidade de países latino-americanos e do Caribe chegam ao conhecimento  de leitores  italianos.
 Para realizar o trabalho foram selecionados três meios de comunicação (em versão eletrônica). A pesquisa deu-se através da observação diária de dois jornais italianos (La Repubblica e Il Manifesto) e uma agência de notícias  (L’Ansa). Procurou-se verificar se eles publicaram diariamente notícias relacionadas à América Latina e, no caso de publicarem, quais os principais assuntos selecionados.  De posse dos dados,  buscou-se traçar um panorama,   ainda que parcial e relativo, de como a América Latina e o Caribe parecem ser apresentados através pela mídia. Neste artigo são apresentados alguns aspectos observados durante o período de acompanhamento das notícias, que ocorreu entre abril de 2011 e agosto de 2012.
Nem todos os dias havia textos que tratassem de assuntos relacionados a algum dos países da América Latina. Os dois jornais e a agência apresentaram disparidades quanto à porcentagem de notícias divulgadas durante o período de pesquisa. De um total de setenta e uma,  o jornal Il Manifesto encontrou-se na última posição, tendo publicado apenas 9,86% das notícias. Já a agência L’Ansa obteve um percentual superior, aproximadamente 28,17% dos textos.  E, finalmente, o jornal La Repubblica foi o que mais divulgou o continente,   com uma média de 61,97% dos textos publicados. Vale lembrar que esses índices relacionam-se ao período de observação citado anteriormente.
Em geral, os assuntos abordados variaram bastante. Divulgou-se temas relacionados à política, como mudanças de governo, resultados de eleições, visita de membros de governos à Itália com a função de representar algum país latino-americano. Exemplo disso, uma notícia divulgada em junho de 2011, no jornal La Repubblica, com o título “Peru escolhe seu presidente entre Fujimori e o ‘Lula’ Andino”. O texto trata do segundo turno das eleições para a escolha do novo chefe de estado daquele país, e cita o Peru como um país rico, envolto em um surpreendente crescimento econômico. A  votação seria entre Ollanta Humala e  a filha do ex-ditador Fujimori que estava na prisão por corrupção. No que se refere à eleição, o texto informa que a última pesquisa publicada atribuía 51,1% dos votos para a candidata de centro-direita, enquanto Humala tinha ficado com 48,9% dos votos.
Mas, a poucas horas das eleições, segundo a notícia, teria havido uma diferença de apenas um ponto percentual, o que impedia uma previsão confiável. Se Fujimori prevalecesse seria a primeira mulher e a mais jovem presidente do país andino. Se Humala vencesse, previa o jornal, se fortaleceria o eixo Brasil-Colômbia. No texto era apresentada a posição dos concorrentes que, segundo La Repubblica,  tinham  programas de governo semelhantes. De  modo geral, a notícia resume o contexto socioeconômico e político-cultural em que aconteciam as eleições peruanas. A história política dos dois candidatos é mencionada, porém não há declarações de representantes do movimento social, estudantil, etc, sobre as problemáticas de seu país e as questões eleitorais.
No período observado aparecem notícias em que o foco são  as tragédias, os traficantes, as doenças, a pobreza, o incesto, os homicídios, a repressão no trabalho e o turismo sexual. Para demonstrar como esses temas aparecem nos três veículos analisados, apresenta-se brevemente algumas notícias que mereceram algum destaque.
Em uma notícia do jornal La Repubblica, publicada no mês de junho de 2011, a manchete chama a atenção: “O relatório sobre o trabalho no mundo se parece com um boletim de guerra”. Ao continuar a leitura, ficamos sabendo de  um estudo anual feito pelo Sindicato Internacional (ITUC) que   fornece uma visão geral sobre a situação de milhões de pessoas e diz que  a repressão mais forte ocorre na América Latina. Além disso, segundo o texto, a  Colômbia tem a primazia nos assassinatos de sindicalistas, embora situações dramáticas também ocorram em Bangladesh, Paquistão, Filipinas, Uganda e Suazilândia, Guatemala, Brasil, El Salvador e Honduras. A problemática da violência no mundo do trabalho é apresentada quase unicamente a partir do relatório divulgado, sem discutir   problemas políticos, econômicos e sociais que levam aos assassinatos e execuções de trabalhadores, sindicalistas e militantes do movimento social.
Uma notícia, de julho de 2011, publicada pela L’Ansa,  surpreende com o seguinte título: “Pai sexagenário engravida filha de dez anos de idade”. A notícia conta que o pai, um imigrante equatoriano que vive na Itália, viajava  com a filha para regressar ao seu país de origem. No entanto, graças a uma série de comunicações entre autoridades italianas e equatorianas, ele é preso na chegada. Conseguem prendê-lo sob a acusação de estuprar a filha de dez anos, engravidando-a. O crime foi cometido na Itália e as autoridades pediram a extradição do homem.
Em geral, há também várias notícias relacionadas com os esportes no Brasil como, por exemplo, resultados de jogos de times de voleibol e futebol, Copa de 2014, comentários sobre jogadores brasileiros conhecidos na Itália, como Ronaldinho Gaúcho. Uma notícia, publicada em junho de 2011, no jornal La Repubblica,  intitula-se “Ronaldinho e suas saídas à noite, uma linha para denúncias”. O conteúdo exposto é de que o Flamengo estaria incomodado com as noitadas do jogador, por afetar seu rendimento em campo. Em razão disso, havia criado uma espécie de serviço de controle popular em que, inclusive os fãs, denunciavam a presença do gaúcho em lugares específicos nas horas extras. No texto afirma-se que a ideia foi ridicularizada e criticada em muitos lugares, até porque no Brasil, conforme o jornal, não prevalece uma cultura de delação e de controle oculto.
A maioria das notícias encontradas nos três meios enfatiza aspectos negativos sobre os países da América Latina. Frequentemente são destacados  temas desagradáveis como eventos trágicos, tráfico, doenças, incesto, homicídios, turismo sexual. Raros são os textos com abordagem de aspectos positivos. Dentre elas, aparecem um projeto em defesa do planeta, um festival latino-americano na cidade italiana de Trieste, um projeto de economia sustentável e o aumento de vendas de carros  no Brasil.
Em uma edição  de junho de 2012, do jornal La Repubblica, o título é o seguinte: “Búzios, a cidade inteligente no Brasil, nasce o laboratório de consumos verdes”. O conteúdo gira em torno da sustentabilidade. É apresentada uma forma de escambo organizado, um modo antigo de dar valor às coisas que a pessoa pode comprar e um gosto inesperado pelo futuro, com uma combinação surpresa: o desconto na conta de energia elétrica. A notícia explica que, na cidade litorânea, a  pessoa entrega o lixo selecionado – cada tipo de material tem um valor diferenciado – e ganha um desconto na conta de luz.  Trata-se de um projeto criado pelo governo brasileiro,  com o objetivo de  criar a primeira cidade inteligente da América Latina.
Também em junho de 2012,  no mesmo La Repubblica,  uma notícia dá destaque para o momento favorável ao país sul-americano:  “As vendas no Brasil triunfam; aumentos de 70%”. Afirma-se que,  apesar da crise mundial, as vendas de carros voam, registrando novo recorde, já que elas aumentaram em 70% graças aos incentivos fiscais lançados em maio pela presidenta Dilma. O texto diz que é por este motivo que as indústrias automobilísticas ao redor do mundo estavam investindo no Brasil. Não há informações sobre   a complexidade da atual crise mundial da economia.  É mais uma abordagem superficial sobre o aumento das vendas no Brasil, com destaque para o recorde no comércio de automóveis.
Entre os diversos acontecimentos destacados nos três meios de comunicação, dois deles especificamente mereceram maior número de notícias.  Trata-se da doença de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, e do “Caso Battisti”, que gerou desconforto diplomático entre Brasil e Itália, com  ampla repercussão na Europa.
Sobre o caso Battisti, os dois jornais e a agência divulgaram várias notícias. Grande parte foi publicada entre os meses de junho a agosto de 2011. O jornal La Repubblica veiculou que Lula temia protestos e por esse motivo havia cancelado uma viagem para a Itália. Na notícia intitulada “Cesare Battisti é um homem livre: o Brasil decide pela não extradição”, o jornal critica a posição do Supremo Tribunal Federal, afirmando que o STF contrariou a Convenção de Viena.
 L’Ansa veiculou que Lula cancelou a  visita que faria a Roma  por temer contestações. No entanto, em Brasília, segundo a notícia,  o ministro brasileiro das Relações Exteriores dizia  que o caso não afetava as relações diplomáticas entre Itália e Brasil. A agência destacava  ainda, em outros textos, que a corte brasileira decidira a favor do “ex-terrorista” e que isso teria esfriado as relações entre os dois países,  podendo até  se  transformar numa crise diplomática.
A doença de Hugo Chávez aparece com destaque no período de junho a setembro de 2011 e março de 2012. O jornal La Repubblica  especula sobre o mistério em razão do qual Chávez havia cancelado sua participação, na data de 5 de julho de 2011, na cúpula latino-americana ocorrida na Venezuela.  E aquele dia 5 de julho, afirmava o jornal, não representava um dia qualquer, pois, naquele ano, a data correspondia ao 200o aniversário de independência da Venezuela. Havia suspeita, segundo o jornal,  de que Chávez estivesse com algum problema grave  de saúde, embora ainda não houvesse confirmação oficial.
Diversas outras notícias falam sobre o desafio de Hugo Chávez na luta contra o câncer e também de sua permanência em Cuba para tratar da doença. Dentre as várias publicadas pela agência L’Ansa,  uma delas comenta o apoio que Chávez estava  recebendo de Fidel Castro e   cita uma mensagem de otimismo que  o líder cubano havia enviado ao presidente venezuelano.  Nas notícias que se seguiram, a agência também informou sobre o retorno de Chávez a Caracas para continuar o tratamento contra o  câncer.
Nessas notícias, o enfoque sobre a realidade venezuelana é superficial. As notícias não falam  da importância de Hugo Chávez para a América Latina e sobre a repercussão de sua liderança para as relações com países  de outros continentes.  Não há menção ao processo político, social e econômico desencadeado por Hugo Chávez na Venezuela, criticado por governos, como  o dos Estados Unidos, que  tentava  minimizar e deslegitimar  a sua influência   no continente latino-americano e no mundo.
Embora limitada à observação de três meios de comunicação, a pesquisa confirma o que o IELA vem constatando em seu esforço para romper o isolamento que, no Brasil,  ainda caracteriza os estudos latino-americanos: a América Latina ainda é uma ilustre desconhecida  para os brasileiros e, muito mais,  para países europeus como a Itália. Enquanto no Brasil o pensamento acadêmico e a divulgação da mídia ainda revelam grande dose de eurocentrismo, os meios de comunicação observados  relatam  fatos da vida latino-americana de modo vago e impreciso, a partir de um olhar europeu sobre a América Latina colonizada. Nos textos divulgados a contextualização histórica, política, econômica e social é mínima,   pouco contribuindo para que o leitor italiano pudesse vir a compreender  um pouco mais a vida no continente situado ao sul do mundo, um espaço estratégico para as relações geopolíticas e humanas.
* O trabalho foi realizado com a orientação da jornalista Raquel Moysés.

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