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A reforma agrária de Santa Catarina, fraudulenta e ilegal

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Por IELA em 21 de junho de 2015

A reforma agrária de Santa Catarina, fraudulenta e ilegal

Li cada uma das 447 páginas do livro de Gert Shinke  “O golpe da reforma agrária – fraude milionária na entrega de terras em Santa Catarina” e não me surpreendo que esse trabalho tenha sido recebido com olímpico silêncio pela imprensa local.  Fruto de uma meticulosa pesquisa, o livro mostra quem recebeu terras no estado durante a ditadura civil/militar, quanto levou e como conseguiu. Tudo isso configurando uma fenomenal fraude orquestrada pelos governantes para garantir seus currais eleitorais. Sob a figura do Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina, as terras públicas foram para as mãos privadas e muito pouco chegou, de fato, aos agricultores. Logo, o que aconteceu não foi uma reforma agrária, mas uma festa politiqueira.
Gert Shinke  começa seu trabalho traçando um breve histórico sobre o modelo de ocupação da terra no Brasil e em Santa Catarina, baseado em gado, armas de fogo e arame farpado. Conta como os mais ricos foram se apropriando das terras desde a chegada dos portugueses na comitiva de Cabral. Depois, mostra qual era a proposta de reforma agrária que estava embutida nas famosas reformas de base de João Goulart, o presidente que foi deposto pela ditadura militar. Em seguida discorre sobre os anos 70, época em que se deu boa parte da história da fraude. Toda essa complexidade histórica é narrada com um texto simples, sem a empolação acadêmica.
E, a partir do capítulo cinco Gert abre a tampa da caixa de pandora do IRASC, o tal Instituto de Reforma Agrária, ao qual chegou nas suas buscas de fontes para respaldar a ideia de que uma grande extensão de terra no Pântano do Sul deveria ser um parque público. Assim, o que era para ser só um elemento de disputa numa batalha comunitária, acabou sendo um universo, até então desconhecido, do que chama da maior fraude já vista no estado. 
A pesquisa de Gert desvela que o IRASC, criado em 1961, para alavancar a reforma agrária sonhada por Jango, acabou sendo o espaço da entrega de milhares de hectares de terra durante a ditadura militar, sem qualquer ligação com sua inicial função. E ali está o nome e o sobrenome de todos os que dirigiram o Instituto, os que governaram o Estado, e dos que foram beneficiados.
Os documentos mostram que foi a partir do governo de Ivo Silveira que os títulos começaram a ser distribuídos em maior volume.  Para se ter uma ideia, de 1962 a 1964, anos anteriores ao golpe, foram emitidos 330 títulos. De 64 a 68, quando a reforma agrária já tinha ido para o saco, em Santa Catarina o IRASC emitiu 2.145 títulos de terra.  De 1969 a 1971, foram 4.620 títulos e de 1972 a 1974 chegou a emitir 7.590 títulos, sendo o período de maior distribuição, configurando 76,2% de tudo que já foi titulado em Florianópolis desde 1904. Nesse período governaram o estado Celso Ramos, Ivo Silveira/Jorge Bornhausen, Colombo Salles e Antônio Carlos Konder Reis.  
Gert levantou todos os números e verificou que o IRASC distribuiu 1.100 glebas em Florianópolis, o que daria algo em torno de 60 quilômetros quadrados, considerando que cada gleba mede o equivalente a 7,8 campos de futebol. Alguns títulos surpreendem como é o caso dos que foram dados a Abel Just, no Pântano do Sul, cuja soma ultrapassa os 600 mil metros quadrados. Pelo menos 69 das glebas distribuídas ultrapassam os 100 mil metros quadrados, o que equivale a terra demais para uma única pessoa. 
A documentação ainda mostra que apenas uma minoria – quase insignificante – usava a terra para plantar, como requereria se fosse o caso de estar se fazendo uma reforma agrária. Os demais apresentam argumentos como morar e legalizar, em documentos muito simples, sem que precisassem provar qualquer relação com a agricultura.
Cada tabela, quadro ou documento mostrado no livro foi fotocopiado dos arquivos oficiais e ali está tudo comprovado. Definitivamente os governantes aproveitaram o Instituto de Reforma Agrária para promover a maior distribuição de terras no estado inteiro, sem que, de fato, estivesse sendo feita uma reforma agrária. 
Tudo isso mostra como a questão da terra – principalmente em Florianópolis que virou uma paisagem especulada – encerra muito mais mistério do que pode sonhar nossa vã filosofia. O trabalho paciencioso de Gert também nos leva a pensar sobre como se dá a propriedade e quem, de fato, tem direito à ela. Se efetivamente a terra precisa cumprir uma função social, o escândalo da distribuição de títulos em Santa Catarina comprova que, aqui, esse quesito não foi considerado. O papel do IRASC foi, efetivamente, garantir o acúmulo patrimonial aos “amigos da corte”, aprofundando o abismo entre os ricos e os empobrecidos.
A exemplo do que aconteceu no tempo da Lei de Terras, o período da ditadura militar em Santa Catarina serviu para enriquecer uma boa pá de gente, a que, na sua maioria, detinha informações privilegiadas sobre como requerer as terras, coisa que era feita de forma singela e rápida.  
A obra de Gert Shinke é o retrato impressionante de como alguns governantes e funcionários públicos  fizeram uso das terras públicas para garantir riqueza e poder. Um livro imperdível para quem quer realmente conhecer as entranhas da história do nosso estado. E pensar que muitos ainda enchem a boca para, por exemplo, criticar a demarcação de terras indígenas ou ocupações feitas por famílias sem-terra e sem-teto. Bocas essas que sempre estiveram convenientemente fechadas quando escândalos como esse, narrado por Gert, se fizeram.
O golpe da reforma Agrária, editado pela Insular, é de leitura obrigatória.

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