Início|Artigas|Artigas e a Pátria Grande popular

Artigas e a Pátria Grande popular

-

Por IELA em 12 de junho de 2015

Artigas e a Pátria Grande popular

Quando os argentinos decidiram fazer a sua revolução, em maio de 1810, para se libertar da Espanha, na Banda Oriental, hoje Uruguai, também uma ampla base social resolveu se incorporar ao movimento. Pequenos proprietários, padres patriotas, paisanos , índios e negros, todos buscavam construir um mundo novo, livre da colônia. Junto a esse turbilhão estava José Gervásio Artigas, naqueles dia já um soldado do batalhão Blandengues, que havia mostrado sua bravura nas lutas contra os ingleses. Iniciara sua vida nas pradarias, contrabandeando gado, e por isso conhecia todos os recantos da região.
Tão logo Buenos Aires se levantou em armas, Montevidéu também se incorporou. Comandados por Artigas, mil patriotas, armados apenas de facas, na comunidade de Las Piedras, venceram 960 soldados espanhóis muito bem armados. As batalhas eram encarniçadas, e lá em cima do continente, na Venezuela, Simón Bolívar, que iniciara um levante, era derrotado e seguia para o exílio. Quando chega o ano de 1815, apenas a região do Rio da Prata, no sul, era território liberado. E, nessa área, comandava, soberano, o general dos povos livres, Artigas. Apesar de vinculado à Buenos Aires , ele não era homem de obedecer cegamente e  ao longo do processo de guerra foi compreendendo que a Banda Oriental, ou seria um espaço de liberdade e vida plena para todos ou não seria. Artigas torcia o nariz para os planos que chegavam de Buenos Aires, nos quais via a marca da dominação de um pequeno grupo sobre a nação.  Sua vida foi marcada pela luta contra isso: primeiro contra o império espanhol, depois contra os ingleses, os portugueses e, por fim, contra a oligarquia portenha.
Dono de um forte carisma Artigas era seguido por uma legião de famílias de gente sem-terra, pequenos produtores, negros e índios. Constituíam com ele um exército de gente livre disposta a tudo para construir uma pátria. E Artigas sabia muito bem interpretar as forças sociais da revolução. Não é sem razão que durante seu tempo à frente das tropas, dominando o território da Banda Oriental, tratou de editar uma Lei Agrária, distribuindo terras aos agricultores, um regulamento para o comércio, visando dar fôlego à pátria liberta, uma política para os indígenas porque sabia que aquele era território dos Charrua, dos Tapes e dos Minuano, a constituição da democracia direta e os congressos populares. E, mesmo depois, com a volta de Bolívar ao jogo de libertação e todo o processo que acabou por liberar a américa andina e a parte norte, nunca, ninguém chegou aos pés de Artigas no que diz respeito ao compromisso popular.
Certo de que a América liberta tinha de ser uma confederação, ele partilhava dos sonhos de Bolívar em ter uma Pátria Grande divida em províncias. Queria começar essa integração pelo sul. Estava seguro de que os povos livres saberiam guiar seus destinos, sem a necessidade de vanguardas criollas ou de grupos de domínio ligados à oligarquia. Não queria isso. Queria liberdade plena e foi esse seu pensar que levou tanta gente a segui-lo.
O congresso dos povos livres
E foi para consolidar tudo isso que ele decidiu realizar um Congresso dos Povos Livres, no qual representantes de todas as províncias do sul se reuniriam e assentariam as bases para a confederação. Mas, aquele não seria um congresso de generais ou de lideranças de cima. Ele não estava planejado para ser uma dessas reuniões ritualísticas, dos que mandam. Serviria de fato para apontar um caminho de base popular. Em carta aos comandantes, em janeiro de 1815, ele já anuncia: “faremos um congresso geral para ajustar as bases que devem nos reger”.
A partir daí dezenas de cartas foram enviadas a todos os povos para realizassem eleições gerais e tirassem seus representantes, sempre desde um debate com a base. Garantiu também a presença dos delegados indígenas e negros. Sobre isso diz o historiador Salvador Cabral: “Essa será a última vez na história da Argentina  – ainda não havia Uruguai – que os índios esquecidos e sempre explorados habitantes do continente novo , igual que os negros, serão eleitos deputados e autoridades legítimas, entendendo a Confederação dos homens livres como pátria”. É que Artigas entendia que o povo podia ser governado através da prática viva e direta da democracia, no exercício efetivo do poder popular. Tinha sido assim desde o dia em que ele foi definido como chefe. Sempre que tinha de decidir alguma coisa, ele envolvia toda a gente. Isso foi mais um ponto que contou para sua desdita.
É por isso que o Congresso chamado por ele não foi uma resposta a conjuntura difícil que vivam – com os portugueses tomando Montevidéu. Era definitivamente um encontro para discutir conjuntamente e organizar a Confederação do Oriente como uma entidade histórica, e, assim, avançar na integração. Ao longo do ano foram sendo eleitos os delegados e eles vieram da Banda Oriental, de Entre Rios, Misiones, Corrientes, Santa Fé e Córdoba. Era muita gente. Foi o congresso mais representativo e democrático do século 19. E, lavrado nas atas de eleição de delegados, o objetivo bem definido: ali se discutiria a independência dos povos livres.
Entre os pontos que constavam na pauta das assembleias de eleição estavam a autonomia diante de Buenos Aires, garantia de soberania das províncias, que os representantes das províncias também passassem a ser eleitos pelos povos livres e não pela Assembleia Constituinte e que se garantisse a produção nacional frente ao estrangeiro. Já se desenhava aí a pátria sonhada, livre da oligarquia de Buenos Aires, bem como adiantava o desejo de fazer tremular a bandeira tricolor dos povos livres.
O encontro abriu no dia 26 de junho de 1815, em Entre Rios, no Arroio de La China, território artiguista de primeira hora. Ali, os representantes de todas as províncias se debruçariam sobre a questão do comércio interprovincial e estrangeiro, o papel dos indígenas na pátria livre, a política agrária. Artigas estava decidido a juntar todo mundo, incluindo o Paraguai e mesmo a aristocracia mercantil de Buenos Aires, na qual não confiava. Seu horizonte era a Pátria Grande.
Já nos primeiros dias de congresso, a relação com Buenos Aires foi tensa. Artigas insistia na independência com integração, mas Buenos Aires só queria garantir o mercado. Aceitava a independência, mas com caráter separatista, pouco se lixando para os ideais de integração. Artigas ainda tentou sensibilizar os portenhos no sentido de que precisavam se unir para defender Montevidéu. Para tanto, o congresso decidiu aprovar a ida de uma delegação até a capital para aprofundar esse debate.
Era 11 de julho quando a delegação finalmente aportou em Buenos Aires. Em Arroio de La China, os demais esperavam. Os delegados levaram a seguinte reivindicação: devolução dos armamentos e a prensa que tinham sido tomados pela ocupação portuguesa e mais armas para Santa Fé e Córdoba. Havia o firme desejo de defender o território contra as investidas portuguesas. Mas, ao chegaram com as propostas, não foram atendidos, acabaram levados de volta à fragata  e lá detidos. Foram tratados como bandidos. Indignados, decidiram encerrar a missão e voltar.
As razões de Buenos Aires
O historiador Salvador Cabral analisa a decisão de Buenos Aires dizendo que eles já sabiam que os espanhóis iriam dar uma trégua no sul, porque precisavam deter Bolívar na Venezuela, então, por isso, decidiu rifar Artigas e os Povos Livres. A meta de Buenos Aires era apenas garantir o domínio sobre Santa Fé, por onde escoaria o comércio. Para isso teria de tirar dali os artiguistas e seus sonhos de pátria grande. Não queria saber de indústria nacional, seu negócio era com os ingleses. Queria garantir riquezas para a elite local, nada de emancipação para o povo. Ao perceberem isso, os delegados ainda tentaram negociar, deixando Santa Fé para Buenos Aires, mas não houve acordo. Artigas seguiria tendo muito poder e a oligarquia portenha queria o general fora de combate.
Foi dessa forma melancólica que a generosa proposta de uma Confederação do Oriente se  acabou. Os delegados voltaram para o congresso com todas essas notícias e análises da realidade. Ficou claro que a partir dali Buenos Aires também seria uma força inimiga no processo de construção de uma pátria livre. Então, aquele que foi o mais democrático congresso do século 19 se desfez para que todos pudessem retomar as armas. Só que agora não seria mais contra os espanhóis, mas para defender a pátria contra os portenhos que se aliavam aos ingleses e portugueses para derrotar Artigas.  
Por conta disso os delegados não puderam mais discutir, conjuntamente, o caminho a seguir. Em guerra, Artigas teve de lançar resoluções sobre os temas que apenas tinham sido levantados nas assembleias de eleição dos delegados do congresso. Foi assim que nasceu a Lei Agrária, que distribui terras aos livres, o regulamento do comércio exterior, com garantia de proteção à indústria nacional, e a política do índio. Essas três leis, diz o historiador Salvador Cabral, são as que transformam Artigas num dos maiores visionários da época.
Mas, se as resoluções artiguistas aprofundam a pátria popular, elas também levantam o ódio dos inimigos locais. A lei agrária, por exemplo, afasta o fazendeiros e dá mais apoio aos índios e gauchos soltos, mulatos e negros. A terra passava a ter mais interesse social do que individual. O propósito de Artigas era criar uma classe média rural terminando com o que ele chamava de “maus europeus e piores americanos”, donos do latifúndio parasitário. “Os mais infelizes serão os mais privilegiados”, dizia. E os negros, índios e pobres ganhariam terra se com seu trabalho garantissem a sua felicidade e a felicidade da província.  A originalidade do sistema artiguista diante dos liberais, aponta Cabral, estava justamente aí, ele exigia que as liberdades individuais salvaguardassem a liberdade das comunidades. E foi por isso que os fazendeiros decidiram se aliar a Buenos Aires, porque estavam mais preocupados com suas riquezas.
A Lei Aduaneira, lançada em setembro, atiça ainda mais o ódio dos aliados dos portenhos. Com ela, fixavam-se impostos para os artigos estrangeiros. Europeus pagavam mais, americanos pagavam menos. Pro exemplo, o tabaco que chegava da Europa tinha de pagar 15% enquanto o que vinha do Paraguai pagava apenas 4%. Assim, Artigas protegia o produto nacional e garantia um comércio mais equilibrado com as pátrias chicas.   
A lei do índio, estabelecendo direitos, coloca os povos originários não como aliados táticos numa situação de guerra, mas como um dos principais objetivos de sua concepção política. O índio era parte inconteste desse novo mundo que se construía e estaria dentro dele, com todos os direitos que sempre lhes fora negado. Artigas não abriria mão disso.
A destruição de um sonho
Artigas foi um homem de profunda grandeza e cheio de amor pelo processo histórico que desenvolvia com toda aquela a gente que ele escolheu, e por ela foi escolhido, como aliada. Com o povo livre da Banda Oriental ele sonhou uma pátria grande, integrada e solidária. Mas, não apenas sonhou, ele construiu coletivamente os contornos concretos.
E foi por isso que a oligarquia de Buenos Aires tramou a sua destruição. Em um congresso chamado para Tucumã – obviamente não democrático como o de Artigas  – Buenos Aires negocia com os portugueses a invasão da Banda Oriental, visando agradar aos ingleses e derrotar Artigas. Por quatro anos o povo livre resiste, mas a Batalha de Tacuarembó, em 1820, tem os portugueses como vitoriosos. É o fim da Banda Oriental artiguista.
Derrotado, Artigas decide subir para o Paraguai e com ele vão centenas de famílias em mais um êxodo. Parte dos índios Charrua, que decide ficar, ainda resiste em pequenas escaramuças. Mas, em 1831, quando o Uruguai já é um país independente, ainda que  sob a influência inglesa, o grupo é atraído para uma armadilha e todos acabam massacrados em Salsipuedes. Não bastava exilar Artigas, havia que cortar todas as cabeças que tivessem memória dos tempos em que índios, negros e paisanos foram livres. Por isso, a chacina. Os que conseguem escapar fogem para o Rio Grande do Sul, onde vão se juntar a novas rebeliões contra os portugueses.
Assim, são a cobiça, os interesses econômicos das elites locais e a traição que destroem a democrática proposta de vida  iniciada por Artigas e sua gente. Mas, como sempre acontece, cortam-se as cabeças, mas as palavras seguem saltitando. E  aquele hiato de democracia direta, de cooperação e de soberania popular ainda vive. Vez ou outra assoma, intenso e fulgente, nas ruas, nos campos, nas gentes.
Artigas cavalga com o povo livre, chamando para novas batalhas. E se ouve: “os mais infelizes serão os mais privilegiados”, e a luta avança. 

Últimas Notícias