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Carta de Marx a Stuart sobre a Natureza do Estado

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Por IELA em 16 de novembro de 2017

Carta de Marx a Stuart sobre a Natureza do Estado

 

Marx e Stuart Mill

Marx a John Stuart Mill.
JSM, [1] delineaste um compromisso histórico entre a liberdade individual, as demandas públicas e de género e o despotismo-martelo caldeu. A validação do desenho de bom governo ficou dependente das expectativas e práticas da classe dominante e carece de aval de assalariados e desempregados e da massa informe de desclassificados, bem como de pequenos burgueses aliciáveis com apanha-migalhas-cabo de prata. Nesta complexa teia e tensa correlação-competição, a burguesia não pode dilatar e disfarçar infinita e indefinidamente os seus interesses e os seus procedimentos e as suas alianças (nacionais, regionais, intercontinentais). Seja pela ditadura de classe, seja pela democracia de classe.
O Estado burguês, não obstante o recurso à concentração da violência e ao manejo da psicologia social, é intrinsecamente precário como a eterna nobreza que a fraterna burguesia apeou, guilhotinou, desapossou ou desposou em segundas e terceiras núpcias. Elizabeth II simboliza a consanguinidade e a conjugalidade da nobiliarquia-burguesia com pretensões perenes: cinge a coroa desde 1953. E almeja manter (pelo menos até 2020) as AFD. [2] Como Chefe da Igreja Anglicana terá concertado a data com o Criador do Céu e da Terra e dos Windsor. Deus é uma excepção e abre excepções. 
O reinado médio da rainha das abelhas é de 2-3 anos. E o himenóptero justifica o trono com folhas de serviços e mapas de produção: exerce o governo da colmeia e põe 2.000 ovos por dia. Quantos contrapõe a Apídea da Commonwealth? JSM, gostaria que abordasses estas pertinências ou impertinências com a ponderada Harriet. [3] Em século e meio (provavelmente) já fizeram o balanço da abolição da escravatura (processo inacabado), da crise dos anos trinta (recidivante), das duas guerras mundiais rem grossos volumes e da terceira em fascículos, das campanhas de alfabetização e qualificação do tecnocapitalismo, das mundializações fabris, tecnológicas e informatacionais, da descolonização e do neocolonialismo, da dissolução do campo socializador europeu e do predomínio do capital financeiro sobre a iniciativa industrial, mercantil, agrária e piscatória e – questão fulcral da manutenção do Poder a qualquer custo – da prevalência da manu militari e da justiça unilateral-extraterritorial sobre a perseverança negociadora e a equanimidade das nações.
Além deste intróito, aproveito para vos expor a tese sobre a OEBFD. [4] Espero que tenham empreendido a transição do liberalismo utilitarista-oitocentista para o socialismo de quinta geração-século XXI. Bastará reparar na retórica fraudulenta e no rasto sanguinário e rapinário do neoliberalismo (séc. XX-XXI) para se constatar onde desaguaram os virtuosos ou desvirtuados arquétipos do liberalismo (séc. XIX). Haja autocrítica, temeridade, militância e constância: a civilização, mesmo com atraso e muitas vítimas e muitas vacilações e muitas deserções e muitas decepções, vai desbravando caminho. O capitalismo arranja mil problemas por cada cem que resolve. Nos 150 anos da edição do primeiro volume de Das Kapital, [5] decidi reabrir um debate: Marx – de profundis. [6] Saudações do proletariado e do proletarianet.
(Correspondência Highgate – Avignon). [7] 
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A Organização do Estado Burguês de Fachada Democrática está expressivamente plasmada no modelo anglo-saxónico: dois partidos em união de facto e casas separadas emulam-se e alternam-se. Nas quebras de sufrágio, o par poderá interpactar-se segundo o fraternal incesto ou recorrer a próteses-suportes de ocasião. A regra, porém, é a dança de cadeiras a duo. A editora CPR [8] encarrega-se do LUB. [9] Os co-autores e co-editores também partilham passarelas e paramentários. Um pronto-a-vestir à saison: ganga coçada ou rota e camisa desabotoada nos protestos sociais, sindicais e estudantis e fraque engomado e botas cardadas nas cerimónias de posse e na repressão dos protestantes.
Sempre que termine o turno de governance , o primeiro partido da Situação assume as vestes e as poses de maior partido da Oposição. Modula o solfejo. Reaviva a paleta. Recupera ou renova slogans. É sobremaneira tocante a faceta humanista: o escritório opositor passa a preocupar-se com o produto das suas fábricas: milhões de enjeitados, injustiçados, ludibriados. As sessões de choro visam adular as vítimas e acomodar o descontentamento em tendas de promessas e albergues de mendicidade. Embora nenhuma destas Companhias de Teatro Partidário seja da Oposição Real, os comparsas ocupam e desocupam a boca de cena e os bastidores, oferecendo a cenoura e brandindo o chicote, usurpando gramáticas, administrando o Espaço Cívico, dificultando as migrações através da desqualificação das forças alternativas e de um continuum de barreiras à recepção do seu discurso.
O duopólio dispõe de financiadores-investidores, assessorias inteligentes e orquestração mediática. O refrão mais repetido é o da equivalência duopartidocracia-democracia. Os disc-jockeys tamborilam e cantarolam: É a democracia a funcionar. Obviamente: é a concepção mais barata de governo do povo. A democracia de largo espectro pressupõe quatro imperativos: política soberana e de maioria social, economia estratégica pública, serviços de saúde e educação universais, acesso generalizado às valências culturais e lúdicas. A burguesia, quando não consegue estabelecer um regime de portas blindadas, abre a portaria da alternância.
E um dos desmentidos do bipartidarismo/multipartidarismo como condição democrática (fundacional e irrenunciável) é o derrubamento de presidentes e governos eleitos sempre que as forças mais sistémicas perdem o volante do voto. Exemplos: Portugal (1926), Espanha (1936), Irão (1953), Paquistão (1953), Guatemala (1954), República Democrática do Congo (1960), Turquia (1960/1971/1980/1997), Birmânia (1962), Dominicana (1963), Brasil (1964/2016), Indonésia (1965), Grécia (1967), Chile (1973), Argentina (1976), Haiti (1991/2004), Argélia (1992), Venezuela (2002), Honduras (2009), Paraguai (2012), Egipto (2013), Tailândia (2014), Ucrânia (2014).
Estes golpes têm um padrão: são preferentemente executados pelas oligarquias autóctones e legalizados pelos tutores internacionais. O telemaquinador, supervisor e certificador mais experimentado é o Polícia do Mundo. Todo o mundo sabe quem é. Pela amostragem, o apego da burguesia à liberdade e às suas estátuas traduz-se em boas notícias para as empresas de lágrimas de crocodilo: milhões de mortos, milhões de refugiados e exilados, dezenas de milhares de presos, torturados e desaparecidos. 
Matéria recomendável para o novo ano escolar: o que medularmente distingue um modelo capitalista real de um modelo socialista real não é o quadro monopartidário ou bipartidário ou multipartidário (mas) o directório constitucional de classe. Na ex-República Democrática Alemã (1949-1989), a representação camaral, além de incluir elementos das organizações de massas e das elites, congregava parlamentares de quatro partidos: Partido Socialista Unificado da Alemanha, Partido Liberal Democrático da Alemanha, Partido Nacional Democrático da Alemanha, Partido Democrático Camponês da Alemanha.
Na Polónia, também vigorou um Estado Socialista (1945-1989) e coexistiram três partidos: Partido Operário Unificado Polaco, Partido Democrático, Partido Camponês. Em Cuba, o actual chefe de Estado, interpelado, numa entrevista televisiva, quanto ao monopartidarismo vigente (escrutinado por métodos circunscricionais e basistas), retorquiu: Ficariam satisfeitos se optássemos por uma democracia à americana, o Partido de Fidel e o Partido de Raúl? [10] A OEBFD finge que exorciza e neutraliza a luta de classes por meio de agentes duplos e trucagens e convoca-nos para que escutemos os seus carros de som, agitemos as suas bandeiras e soltemos os seus balões.
E assim (sem violência aparatosa e categórica) conquistam tempo e espaço para os seus relógios e mapas de poder. E o que nos mostram as LMH? [11] Auditadas as contas do planeta, apuraremos um saldo positivo do centenário de Outubro (1917-2017). Incentivador e insuficiente. À espera de autocrítica sem tabus e de valor funcional acrescentado, na medida em que demonstrou desvios práticos e défices de guarda-avançada. Também frequentemente pecou por falta de previsão e pragmatismo na arquitectura do Plano e gestão do Orçamento, da modernização do mercado de consumo export e interno. As derrapagens dos custos do complexo militar e do internacionalismo a fundo perdido foram duas causas de quebra estrutural no redireccionamento de meios. 
Voltemos, porém, ao campo de prisioneiros da fórmula burguesa. Apesar de abalos telúricos de baixa intensidade, socorrendo-se da corrupção metodicamente organizada, da política-espectáculo e das miragens da sociedade da abundância, a burguesia vai mitigando a fome aos olhos (através de ementas de campanha), enquanto o estômago se queixa do PUB, [12] servido pelas ECC. [13]
Os mal-nutridos permanecem dependentes do alimentador sistémico, dos Refeitórios de Adictos. Normalmente os enfastiados perdem-se nas instalações sanitárias da alternância ou vagueiam por grupúsculos coléricos ou engrossam a mole dos vencidos do sofá. A junção destes factores faz com que (em estados-estandartes desta espécie de democracia) a soma das deserções e dos votos nulos oscile entre os 40% – 50%. Há cases de 60%. Os teóricos mediatizados e os bufões parlamentares sublinham a necessidade e a premência de combater a abstenção, mas rezam em privado para que milhões de inscritos se mantenham desmotivados: se não votam em nós, que não votem contra nós. Muitos eleitos sobrevivem graças aos que desistem de exercer o direito de voto. 
Prezado JSM, o expediente electivo burguês dá sinais de cansaço? Tem-se progressivamente esvaziado como expressão e medida da vontade nacional ? Os cenógrafos e guionistas sentem patentes embaraços na montagem das narrativas? As roupagens e os figurinos começam a não caber nos roupeiros? Os cabides poderão sugerir o design das forcas? É um facto. O capitalismo desconfia de todos os competidores e de todos os vassalos. Entrou na fase do emir decrépito perante o harém. Não deixa, mesmo assim, de exibir mão cada vez mais dura e pénis cada vez mais mole: supõe-se triunfante ab absurdo e anuncia o Fim das Ideologias e o Fim da História. Faz a apologia da cartucheira, do eunucado e da cegueira. Corta a raiz ao pensamento. Ignora a antítese. Fossiliza a síntese. Proclamitifica-se. Não se equacionando a extinção da humanidade, talvez ande a confundir o nosso fim com o fim da sua história. E terá indicadores ambientais. Os cisnes cantam mais do que o habitual. 
Nesta conjuntura, adianto uma sentença do Segundo Manifesto Marx-Engels (em ultimação): FOI ABOLIDA A PENA CAPITAL EM MUITOS PAÍSES. FALTA ABOLIR A PENA DO CAPITAL EM TODOS OS PAÍSES. [14] Missão ciclópica. A burguesia perde combates e recupera posições (políticas, culturais, sociais, económicas, militares, territoriais). Reendurece a musculatura. Refina o know-how cleptocrático, securitário e propagangster. A classe burguesa e os seus factótons regem-se por uma máxima do Manifesto Capitalista Roths-Adams: RIQUEZA MÁXIMA PARA A MINORIA. MISÉRIA MÁXIMA PARA A MAIORIA. [15] Assim é. Assim tenderá a ser.
Mesmo quando a governança recorre à caixa de socorros externos: ligação às máquinas FMI, desemprego pandémico, sangrias emigratórias e suas divisas-receitas, sucessivas transfusões de empréstimos-abutres, reescalonamento de dívidas para o doente amortizar as intervenções cirúrgicas e sempre que se impõe a criatividade, contas maquilhadas por assessores da batota. Teríamos dezenas de cases para ilustrar o intervencionismo. Centremos a atenção num país paradigmático: Grécia – a cartada dos coronéis de 1967 e o esquerdismo confusionista de 2015. Duas cartoladas com o mesmo objectivo: debitar ao povo a crise do sistema capitalista.
Centremos o olhar num país contra-hegemónico: Cuba – tem sofrido invasões militares, incursões terroristas, centenas de tentativas de assassínio do Comandante, dezenas de anos de bloqueio para mostrar que o socialismo é um projecto falhado. Decepção imperial: o modelo cubano, pesem as nefastas dificuldades do estrangulamento, sobreviveu ao mais longo assédio da História Moderna. [16] E só em regime socialista (mobilizador de todos os recursos físicos e psicológicos) poderia ter resistido e subsistido. 
Caros JSM, HTM, Subscrevei o Apelo de Highgate: Mortos de Todo o Mundo, Uni-vos!
[1] John Stuart Mill (1806-1873). Filósofo, economista, activista cultural e de causas de género. [2] AFD/Altas Funções Decorativas. [3] Harriet Taylor Mill (1807-1858). Mulher de JSM. Companheira intelectual e de intervenção na res publica. HTM cooperou reconhecidamente em trabalhos de JSM: Economia Política (1848), Sobre a Liberdade (1859), A Sujeição das Mulheres (1869). Produção autónoma e biobibliografia: The Complete Works of Harriet Stuart Mill, Jo Ellen Jacobs, Indiana University Press, 1998. [4] OEBFD/Organização do Estado Burguês de Fachada Democrática. [5] Das Kapital / Kritik der politischen Ockonomie, I volume, Karl Marx, Verlag von Otto Meisner, Hamburg, 14/09/1867. Calendário dos quatro volumes: 1867, 1885, 1894, 1905. [6] De profundis /das profundezas do abismo ( Ofício de Defuntos / Salmos , 129,1). [7] Highgate. Distrito londrino que dá o nome ao cemitério-última trincheira de Karl Marx (1818-1883). Stuart Mill e a esposa jazem em Avignon. [8] CPR/Câmara Par do Reino. [9] LUB/Livro Único Bicolor. [10] O Partido Comunista de Cuba teve refundação multipartidária. As forças que mais directamente participaram na Revolução (1959) enveredaram por um processus unitarizante: 1961-ORI/Organizações Revolucionárias Integradas (Movimiento 26 de Julho, Partido Popular Socialista e Directório Revolucionário);1962-PURSC/Partido Unido da Revolução Socialista Cubana;1965-PCC/Partido Comunista de Cuba. O PCC, como força autónoma, foi instituído em 1924. [11] LMH/Longas Marchas da História. [12] PUB/Prato Único Burguês. [13] ECC/Empresas de Catering Corporativo. [14] Primeiro: Manifest der Kommunistischen Partei /Manifesto do Partido Comunista, Karl Marx, Fredrich Engels, London, 21/02/1848. [15] A divisa adoptada, em 1848, pela Grande Revolução Burguesa, parecia outra: Liberté, Égalité, Fraternité. Mas este amour à française revelava, acima de tudo, uma aproximação musical às vítimas da opressão, da desigualdade, da desumanidade, face aos levantamentos sociais da época (com o proletariado industrial a adquirir-acumular músculo de classe). La burgeoisie oferece-se para enquadrar (na sua trindade laica) o operariado e os desvalidos em geral. Dirige-se ao coração dos seus miserables . Promete-lhes os seios da República. Comuna de Paris, nunca mais! O Manifesto de Marx e Engels tem a mesma data. Alerte Rouge. [16] Assembleia Geral das Nações Unidas (01/11/2017). Aprovada por 191 estados-membros mais uma resolução (apresentada por Cuba) contra o bloqueio económico, comercial e financeiro, em vigor desde 1959 e com custos acumulados a caminho de 1.000 milhões de dólares. E quantos países votaram ao lado do bloqueador de Cuba? Israel, o bloqueador de Gaza. Dois Estados (democráticos) ignoram o resto do Mundo. Para que servem as maiorias, mesmo absolutas, mesmo esmagadoras, perante a arbitrariedade e a impunidade de algumas minorias? 191-2. Jogo claro. Resultado concludente. Os EUA, isolados e despeitados, respondem aos 191: agravam as sanções e as interdições e sabotam o incipiente processo de normalização diplomática. 
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