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De Ciência e Tecnologia, de militares e de perspectivas políticas

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Por IELA em 15 de outubro de 2021

De Ciência e Tecnologia, de militares e de perspectivas políticas

O recente corte que reduz a cerca de 13% o já reduzido orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia aprovado no Congresso Nacional não é um acidente. Ao contrário, é profundamente revelador dos destinos que o país está sendo levado enquanto projeto político que abandona qualquer sinal de que o Brasil, enquanto país soberano, importa. Uma Ponte para o Fracasso. 
Dizer país soberano é mais que considerar sua dimensão espacial, seu território, mas sim requer uma leitura acerca da própria natureza da sociedade brasileira com seus problemas, dilemas e contradições que precisam ser superados, enfim, as múltiplas territorialidades que nossa sociedade comporta. Consideremos, por exemplo, todo o significado da Amazônia diante do colapso ecológico global, a maior reserva mundial de água não só no subsolo, mas também circulando nos “rios voadores”, na maior disponibilidade de Sol que qualquer outro país do mundo, para não falarmos das enormes reservas de minerais metálicos e não-metálicos. E, ainda, do enorme acervo de conhecimentos que nos legaram as 305 etnias indígenas com suas 274 línguas que guardam saberes tecidos há milhares de anos, hoje compartilhados com remanescentes de quilombos e diversos modos camponeses, como as comunidades de fundo e fecho de pasto da Bahia, os faxinalenses do Paraná, os seringueiros, os retireiros do Araguaia, as mulheres quebradeiras de coco babaçu, pescadores e tantos outros grupos sociais que plasmam suas territorialidades nesse imenso e rico território, rico tanto em termos naturais como culturais. Só para chamar a atenção do leitor da relação profunda entre desenvolvimento científico e tecnológico e os conhecimentos desses povos e comunidades tradicionais tomo um só exemplo. A fava d’anta (Dimorphandra mollis Benth) colhida por camponeses e indígenas em amplas áreas dos cerrados brasileiros, comercializada em mercados locais, tem como destino final um dos maiores laboratórios farmacêuticos de uma das maiores corporações multinacionais do mundo com sede na Europa, por suas propriedades medicinais, cujo principal princípio ativo, a rutina [1], age no fortalecimento de vasos capilares.
Trago essa informação à baila para que tenhamos em consideração a relação entre conhecimento científico e a sociedade brasileira, nesse caso implicando a química fina e a antropologia e a sociologia complexa da nossa sociedade em sua diversidade geográfica e ecológica. Isso nos remete aos desafios que a conjuntura nos coloca e os efeitos que se colocam no horizonte pelo que fizermos ou deixarmos de fazer.
Dentro da complexidade que a situação impõe, o corte no orçamento do MCT nos obriga a refletir sobre o enorme significado da C&T para a soberania nacional e a relação que a sociedade brasileira precisa estabelecer com suas Forças Armadas. Afinal, por mais que certos liberalismos à direita e à esquerda subestimem o papel das FFAA, seja por desejo ou mesmo por ignorância, não está no horizonte político de médio ou curto prazo o fim do estado territorialmente configurado e das FFAA. Sendo assim, cabe à sociedade brasileira estabelecer um horizonte político digno a essas instituições e que seja tão digno quanto a dignidade que quer para si própria. Assim, sem prejuízo de avaliarmos criticamente as relações até aqui estabelecidas pela sociedade brasileira com as FFAA, há que colocar no horizonte o que realmente importa, a saber, a função que a sociedade brasileira quer para suas FFAA, já indicando a responsabilidade que cabe à sociedade. Para isso, há que estabelecer claramente as funções para as FFAA, a começar por seus Objetivos Permanentes (OP) entre os quais se inscreve o da defesa da integridade territorial de seu povo, cabendo a esse povo definir por si próprio seus destinos sem tutelas de quem quer que seja. Há princípios que ao longo de nossa história já foram estabelecidos e que devem ser ratificados ou retificados e explicitados publicamente entre os quais está a consideração do caráter estratégico do conhecimento científico e tecnológico para a defesa de um território de extensão continental, o 4º do mundo quando se considera o território contínuo de cada país. 
Não é qualquer coisa não só em extensão como em qualidade, como destacamos ainda que resumidamente acima. Pelo menos desde a Revolução de 1930, quando a questão nacional começa a ser posta efetivamente no horizonte político soberano, que o Brasil vem buscando caminhos próprios que devemos retomar onde a política externa não seja algo que não se debata amplamente na sociedade para que deixe de ser simplesmente uma política de estado, ainda que assim o seja.
Ainda durante os anos trinta do século passado a aproximação com a Alemanha, por muitos apontada como sendo por razões político-ideológicas com o regime político alemão, tinha como horizonte a aproximação do Brasil com o país de mais destacado desenvolvimento científico e tecnológico da época, o que se colocava como coerente com o OP de defesa nacional por meio do acesso que aquela aproximação poderia trazer ao país. Não façamos julgamentos anacrônicos diante dos crimes hediondos cometidos pelo regime nazista alemão, conforme revelados sobretudo no pós-guerra. O Brasil não foi o único país a não se posicionar devidamente contra o que, mais tarde, se revelaria como holocausto. O que, sim, deveria nos preocupar é que o Brasil abrigou, na sua própria sociedade, forças políticas que aderiram ao nazi-fascismo que só não foram maiores no mundo do que na Itália e na Alemanha, como se viu com a Partido Integralista entre nós. Isso sim deveria nos preocupar pela força política que esses grupos ainda hoje mostram sua expressão em nossa sociedade e que nos remete a um autoritarismo de largas raízes na nossa formação política e que tem suas fontes no latifúndio (vide bancada ruralista) e na colonialidade racista e patriarcal. Afinal, o Capitão do Mato, do qual Borba Gato foi um dos principais personagens, aí está bem vivo sinalizando o pior de nós. Não se combate isso só com slogans.
Ainda no imediato pós-guerra se desenhou um novo quadro geopolítico para a segurança nacional. O uso da bomba atômica sem nenhuma razão propriamente militar para jogá-la em Hiroshima e Nagasaki contra civis e num país já derrotado militarmente, serviu justamente para definir o novo quadro geopolítico mundial sob hegemonia estadunidense: nenhum país seria, desde então, soberano se não dominasse o ciclo nuclear e não tivesse a sua bomba, ainda que para dissuadir quem quer que fosse a não tentar nenhuma aventura contra si. Desencadeou-se, desde então, uma corrida nuclear que chegou, nos anos 1980, à capacidade de destruir a vida tal qual a conhecemos algumas dezenas de vezes, quando bastava somente uma. Desde então, a humanidade passou a viver sob o espectro da morte e do fim da ilusão iluminista que associava ciência e emancipação humana. Afinal, desde então, a ciência não está necessariamente a serviço da vida, haja vista ter sido um artefato científico, a Física Nuclear, capturado por interesses bem mundanos, como é da natureza da política, para que se afirmasse definitivamente a tese de que a guerra é um assunto sério demais para ficar nas mãos dos militares. Para aqueles que se movem numa leitura entre direita e esquerda de um modo abstrato, registre-se que não foi nenhum comunista que viria alertar para os perigos de ficarmos nas mãos do complexo industrial-militar, mas sim o General estadunidense Dwight Eisenhower (1890-1969). 
Para o tema que aqui nos interessa mais de perto, qual seja, o da relação que a nossa sociedade deve estabelecer com as suas FFAA aprendendo com a nossa própria história para afirmar e/ou superar determinadas políticas, cabe o registro do papel protagônico das FFAA na criação do CNPq, em 1952, para que tivéssemos um núcleo de pesquisa próprio e que pudesse nos levar ao domínio do ciclo nuclear que, pelas razões apontadas na conjuntura pós-Hiroshima-Nagasaki, se transformara em política de estado. O mesmo se dava com a afirmação da hegemonia estadunidense que, desde então, se consagrara com a substituição da matriz energética cada vez mais com base no petróleo em detrimento do carvão. Desde então, nenhum país da periferia do sistema mundo capitalista moderno-colonial terá paz se tem petróleo. É só comparar a situação dos países que têm petróleo situados no Mar do Norte, com a situação da Nigéria, da Venezuela ou mesmo do Oriente Médio. Um dos momentos de maior sinergia da sociedade brasileira com os militares, nos anos 1950, nos proporcionou a criação de uma das maiores empresas petroleiras do mundo, inclusive em termos de sua capacidade científica e tecnológica pioneira em exploração em águas profundas e, ainda, de uma relação modelar da universidade com os interesses maiores da sociedade e brasileira. Tudo indica que a descoberta do pré-sal nos obriga a uma leitura mais realista e que leve em conta a situação política de países ricos em energia, seja ela de combustíveis fósseis, seja de combustível vivo, como a do Sol nosso de cada dia com a fotossíntese. Afinal, a energia não é uma matéria qualquer, mas sim uma matéria que associada ao conhecimento permite realizar trabalho, isto é, transformar qualquer matéria. 
A situação vexatória a que nos vemos submetidos numa sociedade/país que dispõe de reservas de petróleo que se contam entre as maiores do mundo, da maior extensão de terras exposta à energia solar (biomassa/fotossíntese) entre todos os países do mundo, com uma comunidade científica que já se mostrou competente para desenvolver o conhecimento necessário (vide petróleo em águas profundas, ou o Pró-álcool) nos obriga a um posicionamento firme e que retomemos um debate que mobilize os mais amplos setores da sociedade brasileira que hoje paga preços aviltantes de gasolina, óleo e gás de cozinha cuja origem do problema está em colocar nossa maior empresa de energia sob os ditames da bolsa de valores de Nova Iorque, obra iniciada por FHC e que, desde então, vem sendo continuada. 
Como se vê, a diminuição do orçamento do MCT é uma verdadeira Ponte para o Fracasso que vem sendo a síntese do projeto conservador que se delineia como Ponte para o Futuro que nos deu Temer-Bolsonaro.
A de se indagar que movimento foi esse que nos levou de uma política de defesa mais soberana, ainda que sempre relativa dada nossa condição periférica e dependente no sistema mundo capitalista mundial, à condição subserviente que ora se apresenta. A tradição que vinha sendo elaborada, pelos menos desde os anos 1930, indica que a soberania territorial implica desenvolvimento científico e tecnológico, ainda que, como sempre, aberto às alianças geopolíticas que mais viabilizem a afirmação de nosso povo com sua contribuição própria ao processo civilizatório (Darci Ribeiro). Afinal, a imensidão territorial do nosso país exige grandeza de espírito para que, com inteligência, afirmemos nossos valores ao processo civilizatório, inteligência essa que valorize o intercâmbio científico e tecnológico e a inteligência da cultura de nosso povo tão rica e diversa. Para isso a sociedade brasileira haverá de enfrentar o desafio de formular uma política de defesa para suas Forças Armadas que a dignifiquem tanto quanto a dignidade que quer para si.
Enfim, como se avizinha um ano eleitoral, tudo indica que certo consenso se vai forjando de que é preciso mudar, mas é preciso que se veja também o tamanho das responsabilidades que se apresentam no horizonte, para que não nos frustremos mais adiante e tenhamos mais do mesmo numa sucessão continuada que nos leve, novamente, de Pôncio a Pilatos.      
Nota
1 – A rutina é uma substância química que atua no processo de envelhecimento, melhora a circulação sanguínea e alivia as dores de varizes e hemorróidas por meio de mecanismos ainda desconhecidos.

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