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Em busca dos antecedentes ideológicos de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes nas ciências sociais

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Por Gilberto Felisberto Vasconcellos em 30 de outubro de 2023

Em busca dos antecedentes ideológicos de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes nas ciências sociais

Gilberto Felisberto Vasconcellos

A descoberta tardia de José Carlos Mariátegui por Florestan Fernandes não fez deste um sociólogo bolivariano da Pátria Grande. Antenado em Péron e na literatura peronista (Ugarte Jauretche, Scalabrini Ortiz), Abelardo Ramos denunciou Buenos Aires como a vampira do desenvolvimento desigual das regiões argentinas.

O mestre Florestan Fernandes, socialista em A Revolução Burguesa no Brasil, esquentou a marmita segundo a qual na periferia a burguesia é necessariamente “compradora” e incapaz de promover o progresso, a justiça e o desenvolvimento.

Quando do atrito entre Ruy Mauro Marini com FHC e José Serra, antes de surgir o PT, Florestan não veio para a peleia que envolvia o conteúdo de classe de sua sociologia ensinada na USP não tomou partido entre o marxismo de Marini e o liberalismo de FHC e Serra, ufanistas do capitalismo por este ter industrializado a periferia.

A expressão “petucanismo” (a hibridez paulista de PT e PDDB) acudiu-me com a antinomia Marini e FHC-Serra. É muito tênue a reverberação do conceito de superexploração do trabalho na sociologia de Florestan Fernandes, a qual tem menos afinidade com Marini do que o compadre FHC. Este nunca acreditou no marxismo de Florestan, nunca o considerou marxista no que tange à reflexão sobre o Estado e a sociedade. A mistura de cinismo e trapaça ganhou um ministério da cultura com Francisco Weffort que logo largou a simplória estampa mujique. O seu livro best-seller, o mais citado na pós-graduação de ciências sociais, é sobre o populismo que pretendia enterrar a Era Vargas e vilipendiar Leonel Brizola.

A Campanha da Legalidade, subversiva e esquecida

Ano aziago, 1989, muro de Berlim, dissolução da União Soviética, sobem Collor e Fujimon, Leonel Brizola perde as eleições, e com isso fica evidente a amnésia do golpe de 64.

A questão do poder. No caso de Florestan não fica claro se ele o queria. O poder em uma sociedade semicolonial, periférica e dependente. O poder do Estado diante do poder do capital estrangeiro. A ditadura de 64 foi instaurada pelos interesses das multinacionais, tendo como instrumento a Fiesp, anti-brizolista.

Em 1961, lecionando na universidade, Florestan não teve olhos para ver a resistência popular da Campanha da Legalidade em Porto Alegre. Aí estava delineada a programática de Leonel Brizola, que era chegar ao poder para transformar o país. Isso foi ridicularizado mais tarde por Lula quando o acusou de pisar no pescoço da mãe a fim de ser presidente da República. Hoje é possível interpretar essa deselegante diatribe de Lula através do seguinte: o PT chega ao poder e não transforma o país. O poder petista não enfrenta o latifúndio, as multinacionais e o imperialismo. Essa impotência já estava na sociologia bandeirante com sua erosão cognitiva inter-regional incapaz de tematizar o Brasil como um todo, conforme dizia Gunder Frank em sua crítica ao dualismo econômico, a expressão esquizofrênica entre o arcaico e o moderno. Nenhum figurão o refutou, apenas João Manuel Cardoso balbuciou algumas banalidades a fim de bajular o livro de FHC e Falleto com a retorica da sociedade civil sem luta de classes.

O estrangeirismo mental do intelectual paulista é um reflexo da acumulação de capital que se realiza internamente no país e, em última instância, destina-se à exportação. A peleia do governador Leonel Brizola contra as multinacionais não despertou nenhum comentário favorável de Francisco Weffort. Os discípulos de Roger Bastide estudaram a integração do negro na sociedade de classe, todavia, não atinaram para a contradição nação-imperialismo que estava rolando na Porto Alegre de 1961. Foi aí Leonel Brizola começou a ser estigmatizado de “populista”.

Se não me falha a memória, em 1989 nenhum intelectual na teoria literária e nas ciências sociais de João Paulo declarou publicamente o voto em Leonel Brizola presidente. Vingou a atitude ambígua diante do golpe de 64: de um lado, repulsa à ditadura; de outro lado, tácita concordância por ter banido e exilado o “populismo” brizolista. A candidatura Lula, o operário de carne e osso para falar com Miguel de Unamuno, deu azo para perdoar o golpe que instaurou a ditadura. Complexo militar de enfermidade.

Infelizmente ainda não surgiu nenhum pesquisador idôneo que estudasse os nexos entre o revolucionarismo proletário da Polop e a campanha subversiva da Porto Alegre brizolista. O líder revolucionário desafiou o conformismo da fraqueza que desiste da luta antes de lutar. Acrescente-se a inveja diante da liderança de Leonel Brizola manifestada por Carlos Lacerda e pelos generais de 64 que nunca tiveram voz de comando.

Há em cada militar da mais alta patente a narcísica fantasia de comandar a tropa. Os generais de direita com as canelas enferrujadas se viram confrontados com a ousadia estratégica de um civil, como se o governador do Rio Grande fosse um general do povo. Na memória surge no horizonte histórico a vexatória guerra do Paraguai analisada pelo historiador marxista Nelson Werneck Sodré pondo realce que em país subdesenvolvido e dependente não há condições materiais de existir um Exército profissional e tecnologicamente eficiente. Resulta daí o complexo colonial de inferioridade das Forças Armadas nacionais em relação aos países hegemônicos, notadamente os Estados Unidos com autonomia no fabrico das armas e capacidade de matar em sucessivas guerras no exterior. Essa máquina de guerra é inalcançável por parte das Agulhas Negras, o que constitui um permanente motivo de frustação na travessia de nossos generais.

As Forças Armadas depois de 1964 convenceram-se de que sua função é combater o inimigo interno identificado a comunismo e nacionalismo anti-imperialista. É por aí que se compreende o arrojo sádico de um general bolsonaro, como Augusto Heleno, atacando o Haiti favelado. Na caricatura do comando militar esse general de pijama estava louco para cometer uma atrocidade contra os fracos. Lembro a ironia de Abelardo Ramos chamando a atenção que os proprietários de negros eram “escravocratas e gramáticos sutis”. Isso foi dito em História da Nação Latino-Americana. Parece o estilo de Oswald de Andrade que tinha por ambição escrever uma Pequena Enciclopédia Proletária com 50 volumes para o povo. Em 1930 a teorizar sobre o sentido da antropofagia dizia que deus era uma ‘’potência estrangeira’’.

À altura de 1945 a Escola Superior de Guerra, conectada à insignificância da burguesia, nasceu como agente histórico. É o que testemunharam duas grandes personalidades em áreas diferentes: Leonel Brizola na política e Glauber Rocha no cinema. Quanto a Leonel Brizola refiro-me ao seu julgamento, ainda elíptico, sobre a queda de Getúlio Vargas e de João Goulart. Caíram sem lutar, dizia para os ouvintes militantes na fundação Pasqualini no Rio de Janeiro. O depoimento é de cunho oral. Atritou-se João Goulart no desdobramento da Campanha da Legalidade e na questão do parlamentarismo. João Goulart diante da encruzilhada histórica de 1961 teria demonstrado tibieza de caráter político.

Os cunhados ficaram brigados e sem se falarem durante quase dez anos, embora exilados em uma mesma cidade, Montevideo. Aqui não é o momento adequado para discorrer sobre o que é a oportunidade histórica perdida com a Campanha da Legalidade. Carlos Lacerda debochou da campanha da legalidade considerando-a uma “gracinha trágica’’. Em As palavras e a ação ficou mordido de raiva porque Leonel Brizola ganhou a batalha da comunicação. Inveja de Carlos Lacerda, sentimento que não é diferente dos generais golpistas de 64 perante Leonel Brizola.

Nenhum general anti-Jango teve voz de comando na história do Brasil. O exemplo é a vaca fardada, o general Olímpio Mourão que entrou em cena no comando do Exército precipitando-se de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro sem gasolina nos tanques e caminhões, conforme Darcy Ribeiro.

A fraqueza de vontade remete à pergunta: o que é o homem colonial?

Bautista Vidal na área da tecnologia deu ênfase ao conceito de Ortega y Gasset; o homem colonial ignora o espaço e o tempo em que vive. É explorado para enricar a metrópole, por isso é que nós somos pobres.

O complexo cultural de inferioridade colonial abordado por Nelson Werneck Sodré em 1966 foi o ponto de partida para a reflexão marxista que culminou em O Conceito de Tecnologia de Álvaro Vieira Pinto. O mais notável professor do ISEB investigou o que é do ponto de vista das ideias a área colonial e subdesenvolvida do mundo.

Atenção: ele desceu o sarrafo na tal da inteligência artificial.

A cibernética é a ideologia dominante do capitalismo monopolista, cujo efeito é manter a “vassalagem cultural” da “consciência periférica”, ou seja, perpetuar a subserviência colonial que justifica a exploração do trabalho do “povo pobre”, o qual sempre se faz acompanhar pelo fascínio da superioridade cultural metropolitana sobretudo por parte das elites letradas. André Gunder Frank nomeou essa burguesia que não tem nada de nacional de “lumpemburguesia”. A perspectiva é ser cada vez mais “lumpem” no decurso do tempo. Reparem a safadeza ética da burguesia bolsonara que compra tudo de fora para revender aqui dentro.

A crítica cinematográfica marxista de um Walter da Silveira na Bahia dos anos 50 gerou o cinema de Glauber Rocha, para quem o intelectual colonizado não é senão um plagiário, superficial, com uma falsa e equivocada imagem de si mesmo. Em geral é um narciso pimpão e babaca que não sabe um nome de cipó, como dizia meu amigo mineiro Marcelo Guimarães.

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